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A experiência hacker no berço da cibercultura

SUBJETIVIDADE E DISCURSO NA CIBERCULTURA

2.4 A experiência hacker no berço da cibercultura

Como define Manuel Castells (2003), os hackers são “produtores/usuários” da Internet, isto é, foram agentes diretos no desenvolvimento da rede mundial de computadores. Peritos em programação, os hackers participaram do (e se constituíram no) projeto da Arpanet, uma rede de computadores montada por uma agência de pesquisa em 1969 nos Estados Unidos e considerada um “embrião” da Internet. A Arpanet foi parte de uma estratégia militar de defesa dos norte-americanos e se justificou pela necessidade de descentralizar as informações, para o caso de algum ataque nuclear da então União Soviética. Entretanto, como pondera Castells (2003), o projeto ia muito além de uma tática de defesa. Havia o desejo de estimular a computação interativa e a partilha entre diversos centros de pesquisa. Se por um lado, a Guerra Fria forneceu o apoio governamental e a demanda pelo desenvolvimento tecnológico; por outro, o projeto conquistou relativa autonomia frente à inteligência militar. Como pontua Castells (2003), esse projeto se formulou a partir de uma mistura improvável: a intersecção entre big science (investigações científicas que envolvem projetos de alto investimento), pesquisa militar e cultura libertária. Envolvia, portanto, universitários de pós-graduação, agregando valores da comunidade acadêmica e dos estudantes da época.

As identidades hackers se fabularam nas redes de comunicação dos laboratórios norte- americanos de pesquisa, onde programadores manifestaram valores de sua geração através de formas de linguagem que emergiam paulatinamente nesse momento histórico. Esse contexto remonta, assim, a conjuntura das universidades norte-americanas das décadas de sessenta e setenta e o discurso em voga da contracultura. Sabemos que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, eclode uma atmosfera de repulsa aos regimes totalitários, estimulando valores como a liberdade individual e de expressão. Em linhas gerais, chamamos de contracultura um estilo

de mobilização social diferente da prática política tradicional que se firmou nos anos sessenta, em que a juventude se apresenta como categoria política. Segundo Pereira (1986), o termo contracultura começou a circular na imprensa norte-americana e, uma vez que as mídias cresciam exponencialmente, rapidamente propagou-se e tornou-se uma designação comum. Os questionamentos afetaram os jovens e a vida urbana de vários países, através da contestação a valores da cultura ocidental e da propagação de signos de rebeldia frente a esses valores. As revoltas se manifestam também nos campi universitários, culminando na radicalização do movimento estudantil internacional, cujo marco é o Maio de 68 na França (PEREIRA, 1986).

Os hackers não eram exatamente ativistas da contracultura, mas vivenciaram os valores amplamente difundidos nos campi universitários à época, notadamente a valorização da liberdade individual como resistência ao controle exercido sobre as pessoas por instituições e órgãos governamentais. Os valores constitutivos da geração penetraram na cultura dos grupos hackers. É interessante apontar aqui, para retomar em posterior, como o termo “livre” se tornou mote de manifestações políticas associadas aos hackers, como o software livre e, depois, a cultura livre. Veremos mais adiante que o Movimento do Software Livre embasa seus princípios a partir da postulação de “quatro liberdades”.

Embora os jovens que integravam a Arpanet não fizessem parte da contracultura, suas idéias, e seu software, construíram uma ponte natural entre o mundo da big science e a cultura estudantil mais ampla que brotou nos BBSs e na rede Usenet News. Essa cultura estudantil adotou a interconexão de computadores como um instrumento da livre comunicação e, no caso de suas manifestações mais políticas (Nelson, Jennings, Stallman), como um instrumento de libertação, que, junto com o computador pessoal, daria às pessoas o poder da informação, que lhes permitiria se libertar tanto dos governos quanto das corporações (CASTELLS, 2003, p. 26).

Um dos alvos da contracultura era a estrutura hierárquica de pensamento predominante nas universidades. Como nota Pereira (1986), os campi universitários reuniam jovens em discussões e questionamentos que alargavam o espaço de sua formação, antes mais restrito ao núcleo da família. Os hackers encontraram nas novas formas de comunicação e partilha de conhecimento um lugar de resistência. Contra os estratos hierárquicos de saber, o trabalho hacker é calcado na organização informal e no conhecimento horizontal. Nos laboratórios de pesquisa, o trabalho era uma construção coletiva. À época, o software não era ainda patenteado, de modo que os programas eram construídos de forma colaborativa. Acreditava-se que o desenvolvimento descentralizado da comunicação, através das redes de computadores,

era uma possibilidade de autonomia frente às formas centralizadas de gerir conhecimento, praticadas nas instituições e corporações.

Como menciona Castells (2003), a prática de cooperação, como também o deleite da criatividade, foram valores presentes na emergência dos grupos hackers, cuja meta era a inovação tecnológica. O exercício da cooperação se dá através da partilha de conhecimento: o hacker sente satisfação em redistribuir o saber com seu grupo e, assim, demonstrar seu engenho, uma vez que este é o maior símbolo de status. Assim, dividir o conhecimento constitui uma prática das comunidades hackers, em que os grupos comungam projetos coletivos, adquirindo costumes de organização informal. Do mesmo modo, o trabalho é horizontal, uma vez que a hierarquia só é aceita na medida em que origina produtividade ao grupo. Assim, a liderança é resultado do trabalho de destaque na criação tecnológica, jamais por exercício de propriedade ou poder institucional.

Contudo, é preciso abrir algumas ressalvas quando se fala em constituição identitária hacker, uma vez que os modos de subjetivação vivenciados por esses grupos não se cerceiam em condições homogêneas, tampouco estáveis. Assim, cercá-los em definições fechadas é apagar a diversidade existente entre seus grupos. Com o desenvolvimento das redes, os hackers seguiram tendências diversas, ramificando-se em diferentes grupos e comunidades (hackitivismo, cyberpunk, etc.). Do mesmo modo, com a internacionalização da rede de computadores e a proliferação dos seus valores, é possível afirmar que as distinções se multiplicam, uma vez que diferentes realidades locais negociam e pleiteiam sentidos na apreensão das práticas e nos modos de subjetivação. Ou seja, como o próprio Castells (2003) salienta, a experiência hacker em países da América Latina, por exemplo, pode exigir diferentes usos da criatividade, a fim de responder às necessidades locais.

Mas o que é comum à cultura hacker, em todos os contextos sociais, é a premência de reinventar maneiras de se comunicar com computadores e por meio deles, construindo um sistema simbólico de pessoas e computadores em interação na Internet (CASTELLS, 2003, p. 45).