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Acontecimento discursivo, pensar o conceito

COPYLEFT, UM ACONTECIMENTO DISCURSIVO

3.1 Acontecimento discursivo, pensar o conceito

No seio do tempo contínuo dos presentes encadeados (Cronos), insinua-se constantemente o tempo amorfo do acontecimento (Aion), com seus paradoxos, sua lógica insólita, jamais sacrificada em proveito de alguma coerência superior

Copyleft, all right reversed, o enunciado teve sua primeira aparição nas cartas trocadas entre o

hacker Richard Stallman e o artista e programador Don Hopkins, um homem imaginativo, que se especializou em computação gráfica e interação homem-computador. A sentença foi associada à Licença Pública Geral (GPL), alternativa às práticas do copyright, e se tornou lema do Movimento do Software Livre, motivando até hoje grandes polêmicas em torno da politização das tecnologias na sociedade. O enunciado – que propõe um trocadilho com a proposição copyright, all right reserved – desencadeia uma rede de outras formulações, de modo a desestabilizar certa regularidade discursiva em torno do estatuto do autor e dos direitos de cópia. É oportuno questionar, e assim o fazemos, sob que condições de produção emerge, como se torna legível e se desdobra em outros; bem como sondar as demandas políticas e culturais que tornam possível sua irrupção. Para a AD que trabalhamos, o acontecimento discursivo é sempre sísmico, faz vibrar a memória, recupera, desloca e atualiza sentidos, margeando outros enunciados. Com o fito de analisar o acontecimento discursivo do copyleft, propomo-nos a refletir acerca desse conceito.

O conceito de acontecimento discursivo é da terceira época da AD, fase de revisão das suas bases teóricas e de reformulação do objeto de análise. O discurso foi pensado, a princípio, nos contornos da forma-partido, em que predominavam as recitações de palavras de ordem, os mecanismos de repetição e paráfrase. Portanto, a análise da estrutura se sobrepunha à do acontecimento. Entretanto, as transformações na esfera pública e a disseminação da fala política nas cidades e nas mídias produzem discursos fragmentários, pulverizados no corpo social. A necessidade de analisar a fala ordinária motivou a AD a volver subsídios teóricos capazes de dar conta do singular, do heterogêneo e do acontecimento. Ocorre, portanto, uma mutação no objeto de análise, que culmina no delinear de novos gestos metodológicos. Como indicam Guilhaumou e Maldidier (1994), enquanto a AD focou exclusivamente o discurso doutrinário, não precisou diversificar seu arquivo. A partir do momento em que se depara com regimes múltiplos de produção, circulação e leitura, é motivada a ampliar seu campo de investigação. O conceito de acontecimento discursivo sobrevém como uma perspectiva que o campo encontra de captar o discurso entre estrutura e acontecimento. Como nota Possenti (2004, p. 17), “pode-se considerar o acontecimento como o que foge à estrutura, ou a uma rede causal, ou a uma origem”. Contudo, é certo, escapar à estrutura não quer dizer correr livremente.

Um dos fatores que caracterizam essa geração da AD é a aproximação com postulados da Nova História. A publicação do livro História e Linguística, em 1973, de Régine Robin, demarca a composição de um grupo de historiadores empenhados na reformulação do objeto discursivo: J. Guilhaumou, Régine Robin e Denise Maldidier. Esse grupo produz intervenções decisivas nas configurações metodológicas da AD, sobretudo na interface com a história. Com efeito, essas contribuições se realizam num momento importante na AD, uma vez que se molda um novo olhar sobre o corpus a partir da problematização do arquivo. A diversidade de dispositivos textuais já não permite um trabalho sobre o corpus fechado e a remissão a um exterior discursivo. Como arremata Sargentini,

A noção de arquivo possibilita, portanto, que se passe de uma perspectiva de análise que se centrava, até então, na busca do sentido no discurso doutrinário e institucional para uma perspectiva de análise que focaliza uma história de leitura dos textos (SARGENTINI, 2008b, p. 107).

A complexão do arquivo – sua tomada como categoria conceitual – repercute na AD, uma vez que se relaciona a outros conceitos que se formulam, como o de acontecimento discursivo.

A reflexão acerca do acontecimento é, também, fundamental às reformulações empreendidas no campo da Nova História39. Pertencentes a um terceiro momento da “Escola dos Annales”, os novos historiadores desconstruíram determinadas perspectivas tradicionais da História, dirigindo suas críticas, sobretudo, à concepção do tempo histórico centrado na longa duração, nas grandes narrativas e no encadeamento causal dos fatos. Contra a concepção de um tempo linear, aposta-se na investigação da descontinuidade, postulando-se que há diferentes tipos de duração do tempo histórico e múltiplas camadas de acontecimentos. Há acontecimentos que não gozam da mesma visibilidade que outros, pelo menos não quando ocorrem: por exemplo, a passagem de monarquia à república é mais evidente quando irrompe do que o crescimento de uma população. Entretanto, a depender do que se investiga, esse segundo fator pode importar mais do que o primeiro. Assim, elucida-nos Foucault (apud POSSENTI, 2004), o maior consumo de proteínas pelos europeus no século XIX, vital à saúde, faz compreender a

39 Em francês, Nouvelle Histoire: remete à terceira geração da Escola dos Annales, com expoentes como Jacques

Le Goff, Pierre Nora, Michel de Certeau. Introduz perspectivas à História baseadas em noções que recusam as concepções tradicionais de tempo histórico linear, da teleologia e da causalidade. Instauram, portanto, mudanças metodológicas, novas abordagens que se interessam pela descontinuidade, pela dispersão e pelas múltiplas temporalidades.

questão da longevidade. É função do pesquisador seguir os vestígios dos acontecimentos difusos e escavar suas camadas, em busca das séries que precisa restituir.

Não apenas o tempo histórico, mas também o texto histórico foi posto em xeque. A crença na neutralidade do documento histórico como matéria-prima do historiador é questionada, a favor de uma compreensão discursiva do texto histórico.

Se há um efeito de “realidade” criado no texto histórico, ele vem de procedimentos discursivos, de formas linguísticas que constroem legitimidade no interior de uma instituição social e que produzem a ilusão da objetividade. Trata-se, portanto, de um agenciamento de signos que, ao produzir “efeitos de verdade”, levam uma sociedade a interpretar-se e a compreender-se através da interpretação (GREGOLIN, 2004, p. 166).

Essas duas guinadas – em torno do tempo e do texto histórico – abrem novas abordagens para a questão do acontecimento. A compreensão discursiva do texto histórico desarruma o sistema de causalidade entre palavras e coisas, entre o documento e a representação dos fatos. Assim também, dizer que o tempo histórico não obedece a uma escala evolutiva significa prestar atenção às derivas do tempo, dispor de subsídio conceitual para compreender a descontinuidade, e não circunscrever as relações de causa e efeito.

Foucault (2005a) pondera que o documento não interioriza uma verdade, não espelha uma tradução imparcial dos fatos. Cabe ao investigador considerar a multiplicidade de documentos, situar camadas de acontecimentos, estabelecer séries e critérios de periodização.

Na história tradicional, considerava-se que os acontecimentos eram o que era conhecido, o que era visível, o que era identificável direta ou indiretamente, e o trabalho do historiador era buscar sua causa ou seu sentido. A causa ou o sentido estavam essencialmente escondidos. O próprio acontecimento era basicamente visível, mesmo se ocorria não se dispor de documentos para estabelecê-lo de uma forma inquestionável. A história serial permite de qualquer forma fazer aparecer diferentes estratos de acontecimentos, dos quais uns são visíveis, imediatamente conhecidos até pelos contemporâneos, e em seguida, debaixo desses acontecimentos que são de qualquer forma a espuma da história, há outros acontecimentos invisíveis, imperceptíveis para os contemporâneos, e que são de um tipo completamente diferente (FOUCAULT, 2005b, p. 291).

O “novo arquivista”, como o designa Deleuze (2005), recusa a linearidade do tempo histórico, desbravando caminhos metodológicos para alcançar o discurso em seu estado de acontecimento. A arqueologia foucaultiana trata o acontecimento de modo diferente das

análises históricas tradicionais. Não se trata, decerto, de descrever um fato, e sim de reconstituir atrás do fato uma rede de discursos, poderes, estratégias e práticas. Conforme Revel (2005), o acontecimento se constitui como cristalização de complexas determinações histórias que Foucault opõe à ideia de estrutura.

Uma vez suspensas essas formas imediatas de continuidade, todo o domínio encontra-se, de fato, liberado. Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados os escritos), em sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. Antes de se ocupar, com toda certeza, de uma ciência, ou de romances, ou de discursos políticos, ou da obra de um autor, ou mesmo de um livro, o material que temos a tratar, em sua neutralidade inicial, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam (FOUCAULT, 2005a, p. 29-30).

Com efeito, a abordagem realizada por Foucault acerca do acontecimento difere dos historiadores tradicionais na medida em que, enquanto estes vasculham no acontecimento sua origem e sua causa, o método foucaultiano não pergunta pelo que está na essência do acontecimento. Em outra perspectiva, interroga acerca dos estratos de acontecimentos em meio a um campo associado. Quando define o acontecimento discursivo, o filósofo começa a fazê-lo por denegação, afirmando o que não é: o acontecimento não é uma coisa, nem um objeto, tampouco substância, qualidade ou processo. Destarte, trata-se de analisar os acontecimentos a partir dos múltiplos processos que lhes compõem, e não como um fato institucional ou efeito de ideologia (FOUCAULT, 2003).

Conforme comenta Pedro Luis Navarro-Barbosa (2004), Michel Foucault isola o enunciado, menor unidade do discurso, a fim de realizar a descrição dos acontecimentos discursivos. Assim, estes não se esgotam nem na língua, nem no sentido, mas se efetivam segundo sua existência material: o que foi realmente dito, em condições específicas de produção, a partir de um suporte, lugar e data. O acontecimento se inscreve no campo da memória, margeado por outros enunciados que o antecedem e o seguem, exercendo-se segundo jogos enunciativos que o repetem, transformam ou atualizam.

O programa de Foucault torna-se, portanto, a análise de diferentes redes e níveis aos quais alguns acontecimentos pertencem. Essa nova concepção aparece, por exemplo, quando ele define o discurso como uma série de acontecimentos, colocando-se o problema da relação entre os

“acontecimentos discursivos” e os acontecimentos de uma outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais) (REVEL, 2005, p. 13).

O método de Foucault propõe, então, analisar conjuntos finitos de acontecimentos a partir de um campo discursivo em que enunciados se relacionam com outros enunciados, inscrevendo- se num domínio de memória. Na década de oitenta, na empreitada de suas revisões conceituais, a AD faz trabalhar essa perspectiva de acontecimento discursivo em seu repertório. Guilhaumou e Maldidier (1994) demonstram que o conceito de acontecimento se aplica às análises quando a noção de situação de enunciação se torna impertinente, uma vez que esta não permite interpretar os lugares enunciativos em uma descrição dos enunciados. Para a AD, esclarecem Guilhaumou e Maldidier (1994), o acontecimento discursivo se distingue tanto da notícia, quanto do acontecimento construído pelo historiador, pois que se apreende na conexão de enunciados que se entrecruzam em determinado momento. Assim, no sistema geral do arquivo, enquanto o tema é para o analista o conjunto de possibilidades atestadas em um recorte histórico específico; “o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possibilidades, inscrito o tema em posição referencial” (GUILHAUMOU; MALDIDIER, 1994, p. 166).

Com efeito, tem-se que é na linguagem que se faz urdir a memória, sendo essa tessitura, pois, matéria-prima da história. O conceito de memória discursiva, elaborado por Jean-Jacques Courtine (2009a) em sua tese sobre o discurso comunista endereçado aos cristãos, abre vias para analisar como a memória intervém na atualidade do acontecimento, cujo efeito se realiza na relação entre interdiscurso e intradiscurso. À vista disso, remata-se que compreender a espessura discursiva da memória é analisar como os sentidos se repetem, refutam, esquecem e atualizam no fio da navalha da linguagem.

Em 1983, realiza-se um colóquio que reúne investigadores em torno do tema “língua e história” na Escola Normal Superior de Paris, que culminou na publicação da sessão temática

Papel da Memória (2007), cuja preocupação capital é a produção da memória e, por

conseguinte, a inscrição dos acontecimentos na memória (como são absorvidos ou produzem rupturas). Na ocasião, Michel Pêcheux (2007) comenta as conferências de Pierre Achard, Jean Davallon e Jean-Louis Durand. Interessa-nos, precisamente, as colocações que elabora acerca da irrupção do acontecimento discursivo e sua dinâmica no complexo jogo da memória.

Ao retomar tópicos da fala de Pierre Achard, Pêcheux (2007) tece considerações acerca da memória discursiva, perscrutando como funciona o acontecimento. Por memória discursiva entende uma materialidade complexa fundada em uma dialética da repetição e da regularização. A cada vez que sobrevém um acontecimento, faz-se trabalhar a memória discursiva, através da restauração dos implícitos (pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc). A regularização discursiva é o que forma as condições de legibilidade e se efetiva através de remissões, retomadas e efeitos de paráfrase. Essa regularização está sempre por um fio, a cada vez que o acontecimento irrompe. Este pode ser sorvido à série, mas também é capaz de lacerar a estabilidade e instaurar uma nova série. Ocorre qual um jogo de forças na engrenagem da memória quando da intervenção do acontecimento: busca-se negociá-lo, fixá-lo à rede de paráfrases, sorvendo-o (quando não o dissolvendo). Tenciona-se abrandar seu furor, acossar seu potencial de ruptura, circunscrevê- lo à série.Ao passo que sua irrupção reanima os implícitos, o acontecimento é tomado como acidental e descontínuo (PÊCHEUX, 2007). Já a repetição é postulada como um efeito material que cria comutações e variações, produzindo através das recorrências vulgatas parafrásticas. Contudo, assinala Pêcheux (2007), ao retomar Jean-Marie Marandin, a recorrência do enunciado também pode gerar efeitos de opacidade. Isto é, pode caracterizar uma divisão da identidade material da palavra, fazendo trabalhar o jogo da metáfora através de outra articulação discursiva.

A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (PÊCHEUX, 2007, p. 56).

No mesmo ano de 1983, Pêcheux publica O discurso: estrutura ou acontecimento, em que analisa o anunciado on a gagné, quando da vitória de François Mitterrand à presidência da França, em 1981. Pêcheux (1990) demonstra como a eclosão do grito on a gagné, entoado a favor do triunfo do líder da esquerda, na Place de la Bastille, é um deslocamento de uma manifestação própria às torcidas esportivas para o campo da política. A cobertura que a grande mídia produz do acontecimento deflagra um processo de transformação do discurso político na sociedade mediada pela comunicação de massa. Na transmissão do acontecimento, circulam séries de enunciados que reiteram a vitória de Mitterrand através da apresentação de

números e porcentagens, surtindo um efeito de evidência dos sentidos. Entrementes, a materialização do enunciado on a gagné – linguisticamente marcado pelo pronome indefinido na posição do sujeito e pela ausência de complemento verbal –, é carregada de opacidade. Destarte, o que se retém da análise de Pêcheux é o problema da equivocidade que trabalha o acontecimento discursivo. Pêcheux (1990) postula, ainda, o acontecimento discursivo como o ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória.

Partindo da premissa pêcheutiana, tomamos a sentença do copyleft como um acontecimento discursivo que faz trabalhar uma memória (a invenção do autor na modernidade) no encontro com uma atualidade (a crise desse dispositivo de autoria na contemporaneidade). Acionamos as contribuições de Foucault acerca da descrição dos acontecimentos discursivos, a fim de reter uma análise do copyleft que investigue os múltiplos processos que o desencadeiam – Foucault (2003) chama esse procedimento de “desmultiplicação causal” –, esquivando-se da cilada de tomá-lo como um fato determinado por uma instituição, suporte ou ideologia. Efetivamente, no encalço de sua análise, acionamos numerosos fatores que, se tomados isoladamente, nada explicam. Todavia, é na sua confluência – no encontro entre essas variáveis – que está uma possibilidade de leitura do acontecimento. Como elucida Foucault (2003), não é suficiente descrever um fato, mas desvelar, reconstituir atrás do fato, a rede de discursos, poderes, estratégias e práticas. Notamos que três principais eixos colocam o dispositivo da autoria que vigorou na modernidade no fio (da navalha) do discurso: a irrupção de campos de saber que produzem uma nova inteligibilidade acerca do que é a autoria; a emergência de um novo suporte de produção, difusão e consumo de obras; as formas de subjetivação, poder e resistência que se inventam nesse contexto histórico. Evidentemente, são motes que não teremos condições esgotar; e nem é essa nossa pretensão. Procederemos de modo a fazer trabalhar esses eixos no esclarecimento de nossa questão: em que medida podemos afirmar que o copyleft é um acontecimento que deflagra a crise do dispositivo de autoria que predominou na idade moderna?