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Embates discursivos, jogos enunciativos: software livre e inclusão digital

EMBATES DISCURSIVOS EM TORNO DA INCLUSÃO DIGITAL

1.5 Embates discursivos, jogos enunciativos: software livre e inclusão digital

As aproximações entre a Análise do Discurso e o método arqueológico de Foucault encontram aporte na tese de Jean-Jacques Courtine no início da década de oitenta. Contudo, como ele assevera, “reler Foucault não é ‘aplicá-lo’ à AD, é fazer trabalhar sua perspectiva no interior da AD” (COURTINE, 2009a, p. 82). A arqueologia foucaultiana propõe um método que ausculta as condições históricas e discursivas que constituem os sistemas de saber. Com isso, diferencia-se tanto de uma análise da língua enquanto conjunto de regras que permite o

desempenho dos dizeres, quanto de uma análise conteudista que procura o sentido oculto de um texto (a interpretação como alegoria: o que se queria dizer quando isso foi dito). Para propor conceitualmente o enunciado, Foucault o distingue da frase (unidade gramatical) e da proposição (unidade lógica). Portanto, toda formulação possui um nível enunciativo, que difere tanto do gramatical quanto do lógico.

Compreender o nível enunciativo de uma formulação é perscrutar as condições históricas que lhe regulam no campo em que se efetua. De maneira que a função enunciativa existe na medida em que relaciona unidades de significação a um campo de emergência (todo enunciado se inscreve em um domínio associado). Assim também, a função enunciativa estabelece uma relação específica com o sujeito. Não se trata do sujeito gramatical, tampouco de uma subjetividade psicológica. Como postula Courtine (2009a), interessa a categoria de

posições de sujeito: os lugares que o indivíduo pode e deve ocupar para ser sujeito.

Os enunciados pertencem a um domínio no qual se apoiam e se distinguem de outros enunciados, constituindo jogos enunciativos. De modo que o enunciado jamais é neutro e independente, sempre ocupa um lugar numa série de outros enunciados, posicionando-se num ponto definido, mas nunca é uma coisa dita de maneira definitiva: está sempre sujeito a uma dinâmica de modificações, deslocamentos, estratégias.

[...] o enunciado, ao mesmo tempo que surge em sua materialidade, aparece com um status, entra em redes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações possíveis, se integra em operações e em estratégias possíveis, se integra em operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga. Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de rivalidade (FOUCAULT, 2005a, p. 118-119).

Destarte, todo enunciado se inscreve em um campo enunciativo, um domínio associado no qual se estabelecem redes interdiscursivas de formulações. Como esclarece Courtine (2009a), é nesse ponto que a arqueologia foucaultiana contribui no sentido de indicar procedimentos metodológicos capazes de romper com o postulado da homogeneidade no tratamento do corpus na AD. Ao se inserir em redes, o enunciado tanto pode acionar formulações dominadas pela mesma formação discursiva, como também pode entrar em relação com outras formações discursivas, através de antagonismos, mas também de aliança ou recuperação. Tem-se que as

condições de produção podem ser, concomitantemente, homogêneas e heterogêneas em relação à sequência discursiva em questão.

Os embates discursivos em torno da relação entre inclusão digital e software livre tramam um complexo campo de jogos enunciativos. Distinguem-se duas posições enunciativas que se reconhecem como antagonistas: o Movimento do Software Livre e a empresa Microsoft. Todavia, observamos que o duelo travado por essas posições está constantemente a disputar poder e a negociar sentidos acerca da inclusão digital no país. Vejamos, a seguir, uma sequência de enunciados em que o tema do nacionalismo é acionado pelas diferentes posições-sujeito, a fim de justificar distintas opções tecnológicas para a implementação da inclusão digital.

Acima, temos uma peça publicitária que estava disponível no site da Microsoft Brasil no ano de 2006, em que o enunciado em destaque “tecnologias de mãos dadas com o Brasil” produz efeito de aliança entre a empresa e o interesse nacional. A seguir, temos a representação da Microsoft como sujeito ativo do desenvolvimento tecnológico do país, marcada sintaticamente no enunciado “A Microsoft Brasil apoia a indústria nacional de softwares e desenvolve parcerias com comunidades, universidades, organizações e empresas para aumentar a competitividade tecnológica do país”. Sintaticamente, a indústria nacional se posiciona como objeto, e não como sujeito desse desenvolvimento. No mesmo enunciado, concorrem tanto o discurso nacionalista como o de mercado, uma vez que há tanto a validação do interesse nacional, quanto a referência à “indústria” do país, bem como se apela a um

Disponível em: <http://www.softwarelivre.org/news/2479>. Acesso em: 15 jun. 2004.

jargão peculiar ao discurso de mercado, “competitividade”. Há, portanto, o reconhecimento da valorização do Brasil, mas esta se representa pela via do aquecimento do mercado.

Notemos na sequência como o discurso nacionalista é mobilizado de forma similar pelo MSL no ano de 2004, entretanto, a Microsoft aparece como antagonista do interesse nacional. A seguir, temos a notícia, veiculada no ano de 2004 no portal http://www.softwarelivre.org, do processo judicial movido pela Microsoft contra Sérgio Amadeu, liderança do Movimento no país e encarregado pelo Governo de implementar o software livre nos órgãos federais. No título da notícia, através de um procedimento de sinédoque, não é nem a identidade civil do ativista que aparece, nem o nome do Movimento que defende, mas todo o Governo Brasileiro é nomeado como vítima da ação da empresa.

Portanto, faz-se uso da mesma estratégia da Microsoft na peça publicitária analisada acima (o agenciamento do discurso nacionalista), com o fim de produzir o pertencimento e a identificação do leitor-brasileiro em geral para a causa do Movimento.

Se por um lado, MSL e Microsoft pactuam um tácito acordo em torno da mobilização do discurso nacionalista; por outro, disputam avessas verdades acerca da sustentação desse discurso. Ocorre que a partilha de táticas similares não revela uma casualidade, e sim uma alteridade, um atravessamento do discurso do outro na formulação dos enunciados. Com efeito, não é o acaso que faz convergir o nacionalismo como ponto de partida das duas posições discursivas que ora se enfrentam. Assim, tanto nas formulações dos ativistas do software livre, quanto na produção de enunciados da Microsoft, observamos o atravessamento de temas de distintos lugares do discurso: o nacionalismo, o mercado, a democracia, etc. São temas que, por se associarem a determinados valores em voga, produzem verdades na

sociedade contemporânea, estão constantemente nas mídias e, portanto, garantem credibilidade ao que está dito.

Conforme postula Jean-Jacques Courtine (2009a), nos domínios de saber de uma formação discursiva, materializam-se contradições advindas de antagonismos, de elementos de saber antagônicos que operam. Em outros termos, uma formação discursiva é sempre perseguida pele seu outro. Assim, formam-se os enunciados divididos: na contradição que liga os processos discursivos inerentes a formações discursivas antagônicas. De acordo com Courtine, a forma do enunciado dividido é sempre: P {X / Y}, onde X e Y são posições referenciais no contexto da formulação P, ocupadas por conjuntos de elementos que assumem valor antagônico no interior de um dado processo discursivo. Temos, então, que nos embates discursivos entre a Microsoft e o Movimento do Software Livre, as duas posições são atravessadas, em suas formulações, por elementos de saber da outra. Assim, temos que há uma base de formulação que diz: o capital estrangeiro (a Microsoft) explora o Brasil. Como pondera Courtine, “a noção de base de formulação remete à existência de elementos pré- construídos ao discurso” (COURTINE, 2009a, p. 195). A partir dessa base de formulação, multiplicam-se dispersas formulações no processo discursivo.

de mãos dadas com o

MICROSOFT BRASIL intimida, processa, explora, vicia o

Como demonstra Courtine (2009a), o funcionamento polêmico do discurso político é constituído por marcas de rejeição, que são formas linguísticas de refutação do discurso do outro. Para apreender discursivamente essas marcas, ele perscruta as formas de refutação, identificando três: a refutação completa (ou explícita), a refutação por denegação e a refutação por inversão. Conforme explana, a refutação por denegação incorpora o saber do outro a partir de uma negativa, designando-o. Já a refutação por inversão atua na fronteira entre os antagonismos, subvertendo o fio discursivo de uma formação discursiva antagônica. Interessa-nos, particularmente, compreender como funcionam essas marcas no interior do processo discursivo que estamos analisando. Na formulação “Tecnologia de mãos dadas com o Brasil”, em que a Microsoft se identifica com essa Tecnologia e, portanto, faz deslizar esse

sujeito da formulação “Tecnologia” para o agente “Microsoft”, a empresa positiva, na formulação, uma refutação por inversão. Assim, refuta por inversão a base de formulação que indicamos. De modo que, A Microsoft está de mãos dadas com (e não explora) o Brasil.

Com efeito, a empresa faz uso de estratégias discursivas que refutam a base de formulação das sequências discursivas do Movimento do Software Livre. Com isso, emprega o sintagma inclusão digital, atribuindo-lhe outros sentidos, que não a luta contra a propriedade intelectual do software. Atuando no Brasil em parceria com o Comitê de Democratização da Informática (CDI), agrega ao nome da empresa a narrativa historiada pela ONG, volvendo outra memória para a significação do sintagma. Como podemos ver a seguir, o CDI dedica páginas da sua história, publicada no aniversário de uma década da ONG, à parceria estabelecida com a empresa de softwares.

Uma das principais protagonistas da revolução digital a que o mundo assiste, a Microsoft está escrevendo outro importante capítulo na história das transformações sociais. Trata-se do esforço global de promoção da inclusão digital das populações menos favorecidas que a empresa empreende em parceria com organizações não-governamentais. Para aqueles que desconhecem essa faceta social da Microsoft, é importante dizer que não é de hoje que a empresa promove iniciativas do gênero. Seu engajamento em ações voltadas à inserção e ao desenvolvimento social remonta a 1983. O apoio às ações que promovam o desenvolvimento social, a propósito, está expresso na própria missão da empresa: “Ajudar pessoas e negócios a realizarem seu potencial pleno” (CDI, 2009, p. 5).

CDI: dez anos de conquistas sociais. Disponível em: <http://api.ning.com/files/UuiVZ5UxczFzhGGy-

O*Gqs0TkQnlEuXFWR9fDVfcL9*vTYZDpIzcpFGLdULW65763rw5D3it7UtspLY8ulxLpxYrj78Zlx CA/CDI_10anos_de_conquistas_sociais.pdf>. Acesso em 05 fev. 2010.

Os traços indígenas da criança fotografada, bem como a imagem do papagaio, ave associada ao clima tropical, sustentam no imaginário nacional a representação da natureza e da etnia latino-americana. A imagem sobreposta pela inscrição verbal “os avanços da inclusão digital” reitera a associação do sintagma às identidades étnicas, conforme eixo do trajeto temático que já analisamos, bem como sugere a modernização dos povos pela chegada das tecnologias. A formulação “para aqueles que desconhecem essa faceta social da Microsoft...” positiva a presença da voz do MSL no discurso. A Microsoft é construída, ao longo da narrativa, como protagonista desse avanço, associando sua condição proeminente no mercado a de agente de transformação social. Sabemos que o discurso de responsabilidade social das empresas é uma das diretrizes do marketing e seu uso apresenta certa regularidade nas publicidades contemporâneas. Mais adiante, na mesma página, há declarações dos diretores da Microsoft do Brasil, do México, da Argentina e do Chile; países onde a parceria Microsoft-CDI atua.

Ser bom vizinho e contribuir para as comunidades é parte fundamental da cultura da Microsoft. Por isso, desde 1999, a subsidiária brasileira vem investindo fortemente em projetos sociais de grande alcance. Já nessa época, identificamos a seriedade e competência do trabalho desenvolvido pelo CDI e selamos uma das primeiras parcerias sociais da Microsoft Brasil. Este livro é motivo de orgulho para nós, pois retrata mais um passo de sucesso no caminho trilhado pela união das duas instituições (Emilio Umeoka, Diretor- geral da Microsoft Brasil. In: CDI, 2009, p. 5).

Quando a empresa de softwares entrou com processo judicial contra o então presidente do ITI em 2004, os ativistas do MSL depressa fizeram circular uma campanha de protesto intitulada “O Brasil tem direito de escolher”, conforme logotipo a seguir.

Disponível em:

<http://wiki.dcc.ufba.br/PSL/Noticia20040616225911>. Acesso em 5 fev. 2010.

Podemos notar na plasticidade do enunciado o sincretismo, uma vez que verbal e não verbal concorrem na produção de sentidos. O desenho da bandeira do Brasil mobiliza um símbolo nacional, reforçado pelo enunciado “O Brasil tem direito de escolher”. A inscrição verbal insere o leitor nos valores da democracia e faz ecoar a memória recente das lutas do país pelo processo de redemocratização. Essa remissão, à medida que faz lembrar os anos de autoritarismo, produz indignação e sentimento de resistência em parcela da população; memória que é reforçada pelo uso da cor vermelha, associada historicamente aos movimentos de esquerda que lutaram contra o regime ditatorial no Brasil.

Outras formulações se somaram à campanha, produzindo uma sequência de peças publicitárias de protesto, veiculadas em camisas da campanha13. Optando por uma sentença interrogativa, o enunciado “Por que a Microsoft não me processa também?” faz uso de recursos expressivos que produzem uma retórica de indignação: o uso da interrogação como forma de questionamento; a substituição da letra “S” na grafia do nome da empresa pelo sinal do cifrão, que remete simbolicamente ao dinheiro. Na positivação do enunciado, o cifrão produz efeito de crítica a valores capitalistas que privilegiam o lucro acima de tudo. O apelo à forma interrogativa, tal qual a simulação de uma conversação, faz-nos lembrar das ponderações de Courtine (2009a) acerca do diálogo como representação imaginária que, sob a simulação da simetria entre os participantes do diálogo, apaga o caráter desigual da contradição.

13

É possível consultar as estampas das camisas no site oficial da campanha:

<http://wiki.softwarelivre.org/bin/view/Amadeu/Camisa>. Acesso em: 12 maio 2010. Camisa Por que a Micr$oft não me processa também? Disponível em:

<http://wiki.softwarelivre.org/bin/view/Amadeu/Camisa>. Acesso em12 maio 2010.

Na mesma peça, temos também a inscrição “Não use drogas... Use Software Livre!”. A utilização do imperativo em duas formas concorrentes “não use X / use Y” produz um efeito de oposição entre X e Y. Uma vez que o vocábulo “drogas” configura, na materialidade do enunciado, o efeito de sentido de oposição a “software livre”, tem-se que, de acordo com as redes de formulações que produzem esse antagonismo, o termo “drogas” designa, através de efeito metafórico, “software proprietário” (logo, Microsoft). Esse efeito é reforçado na gravura seguinte.

A peça veiculada na camisa atribui uma declaração a Bill Gates, então presidente da Microsoft, segundo a qual ele assumiria que conhece a pirataria do software na China, mas admitiria uma postura permissiva com o propósito de “viciar” os usuários no produto e tirar proveito disso posteriormente.

Apesar de cerca de 3 milhões de computadores serem vendidos a cada ano na China, as pessoas não pagam pelo software. Algum dia eles pagarão, no entanto, já eu eles vão roubá-lo, nós queremos que eles roubem o nosso. Eles se tornarão como que viciados, e então, de alguma forma, nós descobriremos

Camisa Por que a Micr$oft não me processa também? Disponível em:

<http://wiki.softwarelivre.org/bin/view/Amadeu/Camisa>. Acesso em: 12 maio 2010.

como cobrar por ele em algum momento da próxima década (GATES, 1988)14.

O destaque das aspas – em tamanho maior do que a fonte do texto que encerra –, ao mesmo tempo em que configura um recurso usual de diagramação contemporânea de periódicos e peças publicitárias, destaca a presença da voz do outro, realçando sua alteridade. O texto imagético se justapõe à marcação da alteridade, desqualificando-a em tom de denúncia. Com a inscrição verbal “a primeira vai de graça...”, temos a ilustração de um indivíduo recebendo uma injeção que lhe deixa desfigurado (esse estado é representado pelo desenho dos olhos arregalados). A seringa é aplicada pelas mãos de outro indivíduo, que tem no seu braço o símbolo da empresa Microsoft, além de adornar-se com um chapéu com a inscrição do M e, novamente, do cifrão. É possível reparar como o desenho desse indivíduo, que personifica a Microsoft, ganha contornos notadamente distintos nos olhos, cujo traço sugere um olhar de astúcia e vivacidade. A representação encena a relação do traficante com o usuário de drogas, reiterando um discurso bastante conhecido atualmente nos grandes centros urbanos e nas mídias, onde o drama do vício (e do tráfico) de tóxicos se tornou uma ameaça à sociedade. Mesmo o enunciado verbal “a primeira vai de graça” remete ao discurso preventivo que adverte os jovens acerca da astúcia dos traficantes, que os aliciam oferecendo as primeiras doses de drogas, a fim de encurralá-los no ciclo do vício. A peça reformula, pois, o formato das campanhas contra o consumo de drogas, produzindo uma alegoria que desloca a questão do vício do consumo de tóxicos para o vício do consumo de softwares proprietários.

É pertinente notar que o deslizamento de sentidos entre “drogas” e “software da Microsoft” produz um duplo efeito de sentido. Por um lado, remete às drogas enquanto substância entorpecente. Por outro, indica expressão popularmente pronunciada para designar coisa vil, de pouco valor. Pela leitura da sequência, o primeiro sentido é reforçado pela remissão às campanhas antidrogas, através da mobilização de recursos expressivos como: a imagem da aplicação da seringa, a ênfase no vocábulo “vício” e mesmo o enunciado “a primeira vai de graça”. Todavia, o segundo também é sugerido, a fim de provocar a desqualificação do produto. A sobreposição de imagem e inscrição verbal reitera o discurso nacionalista, desta vez sob a ameaça dos interesses do capital estrangeiro (representado pelo cifrão no desenho

14 Referência eletrônica, ausência de página. Declaração atribuída a Bill Gates em circulação na campanha “O

Brasil tem direito de escolher” promovida pelos ativistas do software livre. Disponível em: <http://wiki.softwarelivre.org/bin/view/Amadeu/Camisa>. Acesso em 12 maio 2010.

que personifica a Microsoft). Com efeito, mais uma vez a empresa de softwares é simbolizada como antagonista do país.

O enfrentamento entre a Microsoft e a adoção do software livre pelo Governo Federal culminou, em 2005, no afastamento de Sérgio Amadeu do ITI. Foram muitas as especulações acerca das razões que motivaram esse evento. O fato repercutiu nas mídias, narrando certa desconfiança em face do compromisso governamental com o projeto do software livre. A edição número 1873, de 3 de setembro de 2005, da revista semanal Istoé, traz a matéria intitulada Nem tão livre assim. A conjunção “nem”, linguisticamente marcada na abertura do título, expressa a forma de uma refutação por denegação, uma vez que designa a alteridade através de uma negativa e demarca a fronteira entre formações antagônicas que se enfrentam em embates discursivos. A formulação produz efeito de ironia, explorando a abertura de sentidos que porta o vocábulo “livre” no contexto discursivo. “Livre” designa, historicamente, o Movimento que se coloca em embate. A reportagem narra o afastamento de uma liderança do MSL do Governo, colocando em suspeita os percursos das políticas públicas de inclusão digital que vinham sendo trilhadas. Com efeito – considerando o contexto político vivenciado pelo país com a chegada de um partido de esquerda ao poder e todos os questionamentos acerca das posturas assumidas quando era oposição e quando se faz situação –, a formulação “nem tão livre assim”, ao tempo em que coloca em xeque as incongruências entre esses lugares, reitera a desconfiança diante da eficácia política da esquerda15. Assim, a formulação abre diversas possibilidades de leitura: o Brasil não aderiu tanto ao software livre assim; o governo de esquerda não está tão livre (do lobby da Microsoft, da pressão do capital, etc); mesmo ocupando cargo na esfera administrativa, o MSL não estava tão livre para fazer valer suas decisões no governo, etc.

15

Em capítulo posterior, tratamos do trajeto histórico do MSL, demonstrando que, no contexto em que se constituiu, a Guerra Fria, período de cisão da ordem mundial entre Leste e Oeste, suas formulações foram associadas à posição política de esquerda (copyleft versus copyright, onde left e right espelhavam a cisão política que repartia a ordem mundial nos idos anos oitenta). Tendo em vista esse fio discursivo, é possível observar como essa memória retorna na formulação em análise, reiterando um valor de descrença na eficácia do discurso