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A expulsão de Zaratustra, o bufão moralista e o sepultamento como to-

tomada de consciência (prólogo, §8)

No §8 do Prólogo, deparamo-nos com alguns acusadores de Zaratustra. Esses acusa- dores, que se autodeclaram “os bons e os justos” e também os “fiéis da verdadeira fé”, são representantes de uma moral pretensiosamente absoluta e acreditam ser os possuidores dos valores absolutamente verdadeiros sobre a vida. Acreditando possuírem a verdade e o bem, julgando, através deles, a diferença como erro, falsidade e como mal, os acusa- dores denunciam Zaratustra de perversidade contra moral. Porém, para Zaratustra, toda essa niilista pretensão moral, esperançosa da verdade absoluta, niveladora da mediocri- dade, defensora de valores tradicionais e da igualdade, é apenas “miséria, imundice e reles bem-estar”.

O bufão da torre será o primeiro representante dessa moral niilista a acusar Zaratus- tra. Tal como acusou o equilibrista por sua tentativa de superação, o bufão também se reportará ao profeta em tom moralista, julgando-o como uma ameaça aos valores morais

5 Em sua “Análise simbólica” da figura da morte, Santos deixa apontado que os “mortos são os pretensos vivos

deste mundo” (AFZ. Tradução e notas: Mário Ferreira dos Santos. 6. Ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 36). Isto posto, mortas são a pretensa vida niilista do homem moderno e a pretensa vida do último-homem.

e à verdade do homem vigente, bem como uma ameaça ao povo que segue tanto essa moral quanto essa verdade. Pondo-se Zaratustra a caminhar para fora da cidade com seu companheiro morto às costas, eis que o bufão da torre vem ao seu encontro lhe falar: “Vai-te embora daqui [...], há gente demais que te odeia. Odeiam-te os bons e os jus- tos, chamam-te inimigo e julgam que os desprezas; os fiéis da verdadeira fé também te odeiam, consideram-te um perigo para o povo”.

Naturalmente, o bufão percebe que Zaratustra é um perigo à ordem da cidade, ao bem e ao mal dos “bons” e dos “justos”, bem como um perigo à verdade dos “fiéis da verdadeira fé”. Não à toa, o bufão tem razão. Zaratustra revelará em “Da virtude dadi- vosa”, último trecho da primeira parte de AFZ, a necessidade de sua virtude apresentar- se como “saqueador[a] de todos os valores” e elevar-se “acima do louvor e da censura”6

do homem. Consciente disso, Zaratustra terá por destino combater essa pretensão moral, criadora de “tábuas de valores” que determinam a todos os homens o que seja a virtude, a felicidade, a compaixão, o bem, o mal e a justiça. A partir do que elege como fundamento e princípio metafísico dos valores, a moral tradicional nivela as ações, iguala por baixo a força, tornando-a fraqueza, e conduz a vontade humana à mediocridade. É exatamente contra essa moral que a virtude saqueadora de valores de Zaratustra se dedicará.

Embora tenha sido apontado como alvo do ódio dos “bons” e dos “justos” — os legis- ladores da moral — e alvo dos “fiéis da verdadeira fé” — defensores do racionalismo, dos sistemas e do progresso —, Zaratustra foi poupado de punição por ter sido considerado louco, cômico e pessoa desprezível. Disse-lhe o bufão da torre: “tua sorte foi terem rido de ti; e na verdade falaste como um bufão. Tua sorte foi teres te acumpliciado com esse cão morto; ao te rebaixares assim, te salvaste por hoje”. Após ser ameaçado pelo bufão, Zaratustra parte da cidade levando consigo seu companheiro equilibrista.

Já nos limites da cidade, mais uma vez Zaratustra é chacoteado e acusado moral- mente, no entanto, dessa vez, pelos coveiros que creem ser puros em demasia para cui- darem do sepultamento de um equilibrista imoral que ousou atrapalhar o caminho de alguém melhor, que ousou atrapalhar um homem bom e justo e fiel da verdadeira fé. Emanando pesados gracejos e escarnecimentos, dizem os coveiros: “lá vai Zaratustra ar- rastando o cão morto; ainda bem que Zaratustra se fez coveiro! Porque nossas mãos são limpas demais para essa carniça!”. Desapontado, o profeta não respondeu aos coveiros e se colocou a caminhar por longo tempo em direção à floresta, até que estivesse somente ele e o defunto.

Já dentro do emaranhado da floresta, Zaratustra é acometido por fome e se dirige a uma pequena “casa solitária, onde brilhava um lume”. No interior dessa casa, ele encon- trará, tal como fora no passado, um eremita recolhido ao afastamento dos homens. O eremita ao qual Zaratustra pede para saciar sua fome, um pedido que faz apelo à sabe-

doria daquele que dá por amor, força e virtude7— “Quem nutre o faminto, conforta sua

alma: eis a voz da sabedoria” —, é mais um bom exemplo de indivíduo que se recolhe à solidão por desprezar a fraqueza e a degenerescência moral e fisiológica do homem de seu tempo. Indo para um lugar ermo e de difíceis condições de sobrevivência, o eremita da floresta quer afastar-se da ganância daquele que tem fome, que, “faminto”, “quer rou- bar sempre”, que, “com olhos de ladrão, olha tudo o que reluz; quer afastar-se daquele que, com a avidez da fome, mede ao que tem abundância o que comer, e sempre se ar- rasta em torno da mesa do que dá”8. Esse é o sentido do degenerado, “o que expressa

tal apetite”, o que diz “tudo para mim”, o que “falta a alma que dá”, o que “quer roubar sempre”9. Desejando manter-se longe desse tipo de homem ganancioso, faminto e dege-

nerado, o eremita vai para a solidão da floresta, e, por essa razão, justifica à Zaratustra que “estas são más paragens para os famintos [...] por isso moro aqui. Bichos e homens procuram por mim”.

Após saciar sua fome com “pão e vinho” cedidos pelo eremita, Zaratustra continua seu caminho e, em meio ao esgotamento físico causado pela carga e peso de uma vontade morta que teve de suportar por longo período, se detém embaixo de uma árvore, onde, em seu tronco oco, sepulta o cadáver do equilibrista. Em seguida, deita sob sua som- bra e adormece sobre seus musgos. Não obstante, conjuntamente com o sepultamento do equilibrista, Zaratustra sepultará sua vontade de ter como as vontades decadentes e degeneradas.