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O primeiro companheiro de zaratustra, uma vontade de poder morta (pró-

(prólogo, §7)

Cai a tarde, a multidão se dispersa após o cansaço da curiosidade e o pavor gerados pela morte do equilibrista. Zaratustra, “mergulhado em seus pensamentos”, esquecendo- se do tempo, adentra a noite solitariamente2, sentado no chão da praça, tendo, por com-

panheiro, o equilibrista morto em seus braços. Introspectivo, o profeta lamenta, para si mesmo, o fato de seus discursos de sabedoria não terem alcançado os homens — sendo esse o seu principal objetivo desde o início do Prólogo —, mas porventura somente um cadáver. Porém, de certa maneira, Zaratustra considera que “fez hoje uma bela pesca”, e avalia, então, que sua rede de sabedoria lançada sobre o mar de homens não foi total- mente em vão.

Em seguida, Zaratustra começa uma pequena reflexão sobre a existência humana. “Angustiante é a existência humana, e, até este ponto, desprovida de sentido”. Posto dessa maneira, a citação deixa mostrar que, para Zaratustra, a existência humana é por si só angustiante, pelo simples fato de ser ela trágica (o sem sentido da vida). Segundo o profeta, para que a existência possa ser não só suportada, mas, tão certo, afirmada e potencializada, é de precisão oferecer-lhe um sentido, um objetivo ou uma meta que jus- tifique o esforço dedicado ao próprio ato trágico de existir. E mais, Zaratustra também deixa saltar aos olhos a impressão de que todas as tentativas criadas pelos homens para oferecer sentido à existência foram malsucedidas, exatamente porque avaliaram o sen- tido da existência a partir de um referencial que estava fora do escopo da própria vida, assim, avaliaram e deram um sentido à vida apoiados por um referencial metafísico.

Entretanto, Zaratustra quer “ensinar aos homens o sentido de seu ser”, seja esse ensi- namento o super-homem, “o sentido da terra”. Dessa maneira, o profeta quer reconduzir o sentido da existência humana para a própria terra, para a própria vida terrena, sensível e contraditória, reconciliando o homem novamente à natureza e eliminando, com isso,

2 Mais uma vez a solidão é mencionada como um aspecto importante para constituição individual de Zaratus-

tra, “o solitário”. Ao longo da trama de AFZ, verifica-se constantemente que Zaratustra se recolhe à solidão quando passa por momentos difíceis e quando sua força e vontade estão enfraquecidas. É pela solitária prática de si que o profeta se fortalece.

todas as instâncias mediadoras, pretensiosamente metafísicas, que, inadvertidamente, foram aventadas para darem um sentido suprassensível à existência.

Meus irmãos, permaneceis fiéis à terra com toda a força de vossa virtude! Sirvam ao sentido da terra o vosso amor dadivoso e o vosso conhecimento. A tanto vos rogo e a tanto vos conjuro. Não deixeis fugir a vossa virtude para longe das coisas terrestres e adejar contra as paredes da eternidade! Ai! Houve sempre tanta virtude extraviada! Restitui, como eu, à terra, a virtude extraviada. Sim; restitui-a ao corpo e à vida, para que dê à terra seu sentido, um sentido humano.3

Dessa vez no §7, notamos que Nietzsche/Zaratustra apresenta novamente a superação do niilismo como condição necessária para a possibilidade do super-homem, deixando assim expresso: o super-homem é o “raio da nuvem negra que é o homem”. Logo, o super-homem é aquele raio de energia luminosa que sai necessariamente da negra nuvem do niilismo4.

Inegavelmente, em lamento, Zaratustra percebe que sua mensagem de sabedoria para a existência humana não é acolhida. Desiludido com os homens e mergulhado na calada da noite, tendo por companheiro apenas um defunto, o profeta é acometido por sofri- mento, e pensa: “sombria é a noite, sombrios são os caminhos de Zaratustra” — sombrio, obscuro, perigoso e incerto parece ser o destino de Zaratustra.

Uma existência entre louco e cadáver, acham de Zaratustra, os homens. Sobre essa colocação, para esses homens que creem ter encontrado a segurança, o conforto e a como- didade da existência, somente um louco abandonaria essa condição para arriscar trilhar solitariamente um caminho de imenso perigo e risco de morte. E é tão somente por isso que, para eles, Zaratustra está “a meio caminho entre o louco e o cadáver”. Isto consi- derado, é possível encerrar que o caminho que conduz à busca por superação de si, por afirmação de si como vontade de poder singular, e que, irremediavelmente, conduz ao consequente afastamento dos parâmetros de avaliação moral e niilista da modernidade parecem ser, para os conterrâneos de Zaratustra, loucura e morte certa.

Terminado o momento de solidão com seus pensamentos, Zaratustra, honrando o ato de coragem do equilibrista, se propõe a sepultar seu “companheiro rígido e frio” com suas “próprias mãos”. Do que diz respeito à intencionada atitude de Zaratustra, pensamos poder sustentar a hipótese quanto das possíveis intenções de Nietzsche para com seu protagonista: referente à proposta de sepultamento do equilibrista, Nietzsche parece, antecipadamente, querer apontar para a necessidade mesma de ser seu próprio Zaratustra a quem cabe realizar esse feito; do mesmo modo, parece fazer alusão à tomada

3 AFZ. I, “Da virtude dadivosa”.

de consciência que se abaterá sobre Zaratustra, ainda no Prólogo, sobre a necessidade de procurar novos e diferentes tipos de companheiros. Dando sequência a essa lógica hi- potética, somos de parecer que, se antes de sua morte o equilibrista fora estimado por Zaratustra por ser uma vontade que buscou trilhar o caminho da superação, então, no momento em que jaz morto, no momento em que seu corpo já não possui nenhuma gota de vida, virilidade e energia potente, estamos inclinados à compreensão de que o equi- librista morto é uma indireta alusão ao esgotado niilismo do bem-estar e do conforto do homem moderno, um apontamento ao niilismo do último-homem, o possuidor de von- tade morta e degenerada, tal qual a vontade do equilibrista defunto nesse momento5.

Referente ao que foi posto, ao longo da trama, Zaratustra tomará consciência de que seu ensinamento do super-homem não deve ser dispensado aos homens possuidores de vontade morta, mas sim, está destinado ao homem forte, organizado nos instintos e possuidor de grande saúde. Sendo assim, Zaratustra, o portador da sabedoria sobre a existência humana, o destinado anunciador do super-homem, ele mesmo deve sepultar o objeto de sua tendenciosa e amorosa vontade, ele mesmo deve sepultar e afastar de sua vontade de aproximação os homens degenerados de vontade. Em conclusão, Zaratustra reconhecerá a necessidade de sepultar sua inclinação de ter com vontades mortas e en- fraquecidas, e, por isso mesmo, sepultará com suas próprias mãos o equilibrista morto. Todavia, por enquanto, Zaratustra se propõe a carregar o peso de uma vontade morta como companheira.