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Uma nova verdade: a necessidade de nova companhia (prólogo, §9)

Após muito tempo adormecido — talvez adormecido da verdade que se revelará adi- ante —, Zaratustra acorda e, maravilhado consigo mesmo, ergue-se de súbito, “pois via agora uma verdade nova”. E o que seria ela? Numa fala consigo, ele revelará: “fez-se uma luz em mim: preciso de companheiros vivos não de companheiros mortos ou ca- dáveres, que eu leve comigo aonde eu for”. O morto equilibrista, carga e peso que até pouco tempo atrás carregou para aonde foi, fora a única companhia que Zaratustra con- seguiu pescar do mar de homens depois de suas anunciações. Segundo presumimos, o defunto está aludindo, figurativamente, à companhia de uma vontade de poder esgo- tada de forças, degradada de estímulos e que desaprendeu a querer, uma vontade morta e instintivamente degenerada, uma vontade tal qual a do último-homem. O sono e o des- canso de Zaratustra reestabeleceram suas forças ao ponto de sua consciência lhe revelar que o que precisava era de companheiros vivos, de companheiros em que a vontade de poder ainda expressasse alguma energia e querer. O profeta não deseja mais, por com-

7 Sobre a virtude e sabedoria de dar por amor e por generosidade. (Cf. AFZ. I, “Da virtude dadivosa”). 8 Cf. AFZ. I, “Da virtude dadivosa”.

panhia, homens e vontades que ele possa carregar e destinar seus próprios quereres e caminhos. Zaratustra não quer, pois, aquele que o siga apenas porque quer alguém que lhe ofereça um sentido para a vida, dando-lhe o que desejar e buscar, mas deseja, sim, novos companheiros que o sigam “porque querem seguir a si mesmos”. Zaratustra quer, como companhia, vontades de poder que ainda saibam querer, que ainda possam criar suas metas e objetivos, e, frente a essas múltiplas expressividades de quereres, Zaratustra espera que haja um ponto de interseção com seu próprio querer.

Por consequência da descoberta dessa nova verdade, o profeta se dá conta de que ele não deve procurar por novos companheiros em meio à multidão, dado que a multidão sempre está composta, em sua maioria, de vontades fracas e degeneradas. Segue-se disso que ele não deve tornar-se nem “pastor nem o cão de rebanho”, pois estes conduzem para onde querem a multidão de animais que somente sabe seguir em frente se estiver arre- banhada em seus instintos e vontades. Do contrário, Zaratustra é aquele que como um “bandido”, como um animal de rapina, quer “seduzir e afastar muitos do rebanho”. Es- ses que desejam o arrebanhar dos homens e que desejam conduzir a multidão pelo viés do nivelamento medíocre das vontades — nivelamento que em nada destaca as distinções mais elevadas, que tudo iguala e que tudo coordena em vista do querer geral —, esses, os condutores da medíocre igualação do homem, são os “pastores”, e, eles próprios, “se designam com os bons e os justos [e] como os fiéis da verdadeira fé”. Todos esses tipos, os pastores, os bons e justos, os fiéis da verdadeira fé, os niveladores da vontade, odeiam aquele que vem para contestar seus sistemas, odeiam e consideram criminoso aquele que ameaça suas verdades, sua moral, e que, por isso, quer destruir “suas tábuas de valores”. Essa posta, odeiam Zaratustra porque ele deseja e age em virtude de destruir essas an- tigas tábuas de valores e em virtude de ser criador de novas tábuas. Zaratustra procura agora por companheiros que, tal como ele, sejam possuidores de vontade intelectual cri- adora, procura por “companheiros de colheita: porque nele tudo está amadurecido para a ceifa”. Porém, somente essas vontades criadoras não são suficientes para construir um novo modo de existência em comunidade, percebe Zaratustra. Inadvertidamente, o pro- feta precisa de companheiros mais rudes, combativos e fortes que “sabem afiar as foices”, para que, através delas e de suas vontades agonísticas, possam destruir antigos sistemas morais.

O criador procura companheiros para si e não cadáveres, e bem assim nem re- banhos [vontades niveladas] e nem crentes [vontades esperançosas em além- mundo]. O criador procura companheiros de criação, para que inscrevam novos valores sobre novas tábuas [...]. Mas faltam-lhe as cem foices [...]. Os companheiros que o criador procura são os que sabem afiar as foices. Serão chamados de destruidores e desdenhosos do Bem e do Mal. Mas na verdade

são os ceifadores, aqueles que celebram a festa.10

Essa é a proposta propriamente dita de transvaloração de todos os valores tão almejada por Nietzsche, a qual exige como condição necessária ao ato criativo a destruição das anti- gas tábuas de valores. São a esses novos companheiros transvaloradores que Zaratustra dedicará sua mais nova caminhada — “companheiros de criação [...], companheiros de ceifa e de festa procura Zaratustra: nada tem a ver com rebanhos, pastores e cadáveres”. Com efeito, Zaratustra sepulta de vez sua vontade de ter com a multidão e de ter com as vontades degeneradas as quais ensejam por conservação de si, dado que “uma nova verdade despontou” para ele. “Não devo ser nem pastor nem coveiro. Não quero nunca mais falar às multidões; pela última vez falei a um morto”. O profeta quer unir- se às vontades potentes (aos “criadores” e “ceifadores”), aos individualmente potentes (“aos solitários”), aos que ainda sabem querer (aos que têm “ouvidos para o inaudito”), para que possa dar à luz e trabalhar para a efetividade do super-homem. “O criador, o ceifeiro, o que celebra a festa, a estes quero unir-me: a eles quero revelar o arco-íris e todos os graus do super-homem”. Zaratustra se torna mais forte, mais sagaz, mais seletivo das companhias, mais focado em seu destino e mais audacioso após a revelação dessa nova verdade. Isso é perceptível na última fala emitida pelo profeta no §9: “quero atingir a minha meta, seguir meu caminho; saltitarei por cima dos hesitantes e dos descuidados. E que meu passo seja o seu declínio”.

Certificamo-nos da intenção do profeta de reunir-se aos mais fortes, aos bem-dotados, às naturezas ricas e complexas, às exceções humanas, para criar enfim novas e mais ele- vadas formas de existência em grupo11. Perceptível que o é, essa proposta de Zaratustra

é arriscada e perigosa, pois os subordinados aos instintos de conservação veem aí uma perturbação à ordem existente e, assim, agem para reintegrar ou eliminar os que consi- deram por anormalidades.

10AFZ. “Prólogo”, §9.

11Sobre essa nova necessidade revelada a Zaratustra — necessidade de ter como companheiros vontades mais

potentes, criadoras e agonísticas e de ter de combater e afastar-se das vontades gregárias e de autoconser- vação —, Meca escreve que Nietzsche considerava “claramente redutor pensar na autoconservação como principal, senão único, objetivo da luta pela vida. Sem degeneração (Entartung) do que é fixo e estável não existe a possibilidade do progresso, pois o enfraquecimento do estável é condição para o reforço do novo. O progresso surge do diferente e degenera e perturba a ordem existente. Nesse sentido, Nietzsche defende que o determinante para o progresso não é a luta pela existência, mas aquilo que surge como uma exceção ao sistema uniforme da comunidade que só quer autoconservar-se. [...] Em tal caso, os mais pobremente dotados, ou seja, os que só vivem bem na uniformidade do rebanho e da tribo, subordinam tudo ao instinto de autoconservação. Em revanche, os que são efetivamente fortes e mais bem dotados são os que atuam in- dividualmente e com independência das estruturas impostas pela comunidade e, por isso, são considerados pelo rebanho como uma anomalia ou anormalidade que deve ser imediatamente reintegrada e regularizada, ou até, eliminada. Conclusão: o forte, o mais bem dotado, as naturezas ricas e complexas, os que criam coisas novas são a exceção, enquanto os mais fracos, incapazes de viver sem os esquemas regularizados daquilo que confere estabilidade e fixidez ao sistema social, são os que perduram e se multiplicam” (MECA. Op. Cit., pp. 20-21. Nota: 10).

A partir do que foi apresentado, a pergunta que não quer cessar é: conforme a pro- posta de Zaratustra/Nietzsche, será possível a formação de uma sociedade apoiada na singularidade do ato criativo? Num primeiro momento, pode-se dizer que uma das pre- tensões mais ambiciosas de Nietzsche foi a predição da existência de uma nova cultura constituída por indivíduos de força ativa e vontade afirmativa e criadora. Segundo Ni- etzsche/Zaratustra, esses indivíduos “[darão] à luz uma estrela dançante”12e, também,

precederão e serão condição de possibilidade do homem que estará para além de bem e mal, que estará para além de todo e qualquer tipo de homem já existente esse futuro do homem é o Übermensch, o super-homem. Num segundo momento, pode-se dizer que Nietzsche acreditava mesmo na possibilidade de surgimento dessa nova cultura com- posta por individualidades valorativas distintas, uma possibilidade advinda do próprio curso natural da autossuperação dinâmica de toda a natureza. Nesse ponto, somos instigados por outra questão: como será possível a formação de uma nova cultura (soci- edade) a partir de indefinidas e distintas individualidades valorativas? Acredita-se que uma possível resposta para essa questão possa ser encontrada no próprio desejo de Za- ratustra de ter novos tipos de companheiros: o eremita quer companheiros que o sigam, porque querem seguir a si mesmos. O que parece é que existe um ponto de interseção comum possível às individualidades valorativas desse tipo, dado que aqueles que se vol- tam para si mesmos, acabam por, de alguma forma, voltar-se para Zaratustra. Porquanto, apesar de Nietzsche/Zaratustra incitar a criação singular e individual, ele também pa- rece considerar a possibilidade de encontrar interesses comuns em direção aos quais as singularidades valorativas possam assemelhar-se e dirigir-se. Das deliberações morais em Nietzsche, esse ponto de interseção comum aos indivíduos é o que talvez torne pos- sível uma sociedade, uma cultura e, por que não, uma política de homens afirmativos e criadores.