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A fala e a prosódia materna dirigida à criança cega

3.2 Configurações multimodais na interação mãe-criança cega

3.2.1 A fala e a prosódia materna dirigida à criança cega

Consideremos que a fala materna e suas marcações prosódicas na interação com a criança cega favorece o engajamento da criança na língua. Nesta seção, buscaremos refletir sobre aspectos da fala materna dirigida à criança cega e relacionar essa fala com suas marcações prosódicas características para melhor compreender as correlações entre fala e prosódia na interação mãe-criança cega.

Estudos realizados com mães de crianças cegas sugerem que essas mães têm uma tendência a falar menos com seus filhos, talvez isso explique o comportamento passivo observado nos bebês cegos e o aparecimento tardio de vocalizações nas interações iniciais (BOTEGA; GAGLIARDO, 1998), uma vez que a linguagem é considerada a principal forma de inserir as crianças com deficiência visual nas interações sociais (OLIVEIRA; MARQUES, 2005).

Logo, estabelecer situações de diálogo com a criança cega, falar com ela, tomando-a como interlocutor favorece sua participação na interação e que ela se posicione enquanto falante no diálogo, ocupando turnos discursivos.

A incapacidade da criança cega de perceber o olhar e as expressões faciais maternas, e a mãe, por sua vez, não poder interpretar o direcionamento do olhar da criança para determinado foco de seu interesse, interfere na qualidade da interação mãe-filho, pois essa situação impede a troca de olhares (CUNHA, 1996; AMIRALIAN, 1997). Fraiberg (1979) diz que essa ausência de contato visual pode ser entendida pela mãe como sinal de desinteresse.

Talvez essas questões apresentadas acima, por sua vez, expliquem a tendência materna de falar menos com seus filhos cegos em comparação aos diálogos maternos com crianças não cegas, observada por (BOTEGA; GAGLIARDO, 1998).

Por outro lado, conforme foi constatado no estudo de Oliveira e Marques (2005), em alguns situações, mães adotavam um comportamento diretivo ao interagir com o filho deficiente visual. Elas tendiam a solicitar diferentes respostas verbais das crianças, sem esperar o tempo para cada resposta, gerando um desequilíbrio na interação. Sem espaço para falar durante a interação, a iniciativa de diálogo das crianças deficientes visuais tornava-se dificultosa.

Nesse caso, a mãe já fala demasiadamente, solicitando com frequência respostas verbais da criança, mas sem respeitar o tempo hábil para a criança se colocar enquanto parceiro da interação dialógica. Logo, tanto na situação de não estabelecer diálogo, falando pouco com a criança, quanto na de falar excessivamente sem dar oportunidade à ela de se colocar, o papel da criança cega, enquanto parceiro dialógico, fica prejudicado.

Diante disso, pode-se pensar na relação entre a emergência da linguagem da criança cega e as formas de interação estabelecida da mãe com ela. Por outro lado, em relação à ocorrência de possíveis atrasos de linguagem diante da cegueira, a literatura mostra controvérsias. Alguns autores consideram que a aquisição da linguagem em crianças cegas congênitas não deve ser afetada pela falta da visão. Desse modo, não difere do processo aquisicional de uma criança com visão normal no que diz respeito ao período do surgimento do balbucio e das vocalizações (PÉREZ-PEREIRA, 1991; OCHAITA; ROSA, 1995; PREISLER, 1995; BOTEGA; GAGLIARDO, 1998; ORTEGA, 2003; OLIVEIRA; MARQUES, 2004, 2005) . Outros estudos apontam a existência de atrasos de linguagem na criança cega, seja em relação ao uso das formas lingüísticas mais simples como o balbucio até às aquisições linguísticas mais complexas (MAGALHÃES, 2000; MILLS, 2002; COBO; RODRÍGUES; BUENO, 2003; COSTA, 2005). Apesar dessa divergência de concepção, parte dos pesquisadores não descartam a contribuição das interações sociais vivenciadas pela criança cega no processo de aquisição da linguagem, uma vez que os parceiros interativos podem criar vias alternativas à visão, o que pode evitar ou eliminar a ocorrência de atrasos de linguagem (OCHAITA; ROSA, 1995; MAGALHÃES, 2000; MILLS, 2002; ORTEGA, 2003; OLIVEIRA; MARQUES, 2004, 2005).

Tomamos as interações mãe e filho cego como alicerce para a aquisição linguística infantil. Nessas situações, a fala materna ora pouco ora bastante presente foi marcada por configurações prosódicas características (falsetto, fala infantilizada, marcação enfática e ritmo, por exemplo) conforme constatamos em estudos anteriores (FONTE, 2006a, 2006b, 2006c).

Nesses trabalhos supracitados, antes de a criança cega começar a ocupar seu lugar de falante no diálogo, a mãe marcava o lugar discursivo da criança na interação dialógica, falando por ela com o uso e uma fala infantilizada e do falsetto. Logo, essas configurações prosódicas possibilitam a inserção da criança na língua, assim como destaca Cavalcante (1999). No fragmento abaixo, pode-se visualizar essa funcionalidade da prosódia na fala materna.

Cena interativa: mãe dando banho na criança cega no tanque (fala infantilizada – falsetto em todo o discurso materno)

(...) Ô titia tô tumandu banhu nu teu tanqui vissi titia? (...)

(1 ano, 10 meses e 15 dias)

A fala materna dirigida à criança cega sofreu modificações prosódicas ao longo do tempo, o falsetto passou a ocorrer com menor frequência e deixou de vir acompanhado pela fala infantilizada. Gradativamente surgiu uma nova configuração prosódica, o uso da ênfase, que também marcou a posição da criança no diálogo, dando-lhe voz, conforme podemos perceber nos recortes discursivos a seguir (FONTE, 2006a 2006b, 2006c, 2009a, 2011a ).

Cena interativa: Mãe dando banho na criança (falsetto)

Turno 1: ai qui água gostosa minha mãi (...)

(ênfase)

Turno 11: vê qui água gosto::sa minha mai (...) (2 anos e 25 dias)

Logo uma trajetória singular foi delineada nos dados de interação entre a mãe e o filho cego, diferentemente do estudo de Cavalcante (1999), nos episódios interativos entre a díade mãe e criança cega, conforme encontramos nos trabalhos (FONTE, 2006a, 2006b, 2006c, 2009a, 2011) a trajetória da fala atribuída foi mais extensa, uma vez que, no período dos 2 anos e 25 dias de vida da criança cega, este tipo de fala ainda estava presente no discurso materno. Os dados sugerem que essa trajetória mais extensa da fala atribuída, utilizada pela mãe na interação com seu filho cego, tem relação com a concepção materna atrelada da criança cega como um bebê, em decorrência do sentimento de superproteção da mãe diante da limitação visual do filho.

Conforme exposto, o uso do falsetto e da fala infantilizada, e em momento posterior, da ênfase esteve presente na fala materna para dar voz à criança, ou seja, engajá-la na interação dialógica através da fala atribuída. Essas configurações prosódicas também

foram usadas em outros contextos interativos, assumindo papéis diferentes e outros parâmetros prosódicos marcaram presença em diferentes contextos interativos entre a mãe e a criança cega. Entre eles, o ritmo para integrar gesto e voz em um único sistema, a cadência de fala lenta, a ênfase e o falsetto associado a uma intensidade fraca e contornos entonacionais descendentes enquanto guia para a criança cega locomover-se e orientar-se no espaço físico (FONTE, 2006a).

A fala materna endereçada à criança cega foi caracterizada por uma riqueza de traços prosódicos, que foram superdimensionados em comparação com a interação da mãe com o filho não cego. Essas marcações prosódicas assumiram diferentes papéis de acordo com a situação interativa (FONTE, 2006a, 2006b, 2009a, 2011a).

Entre esses papéis, a prosódia com suas diferentes configurações, ora marcou o lugar da criança cega no diálogo, ora correlacionou gesto e voz como um sistema unificado; e ora funcionou como um guia para a criança cega se locomover e se orientar no espaço físico, serviu como organizador espacial, ou melhor, como pista de referência para a localização espacial da criança (2006a, 2006b).

Para a criança cega, é importante usar a linguagem de forma a informar sobre a cena interativa, seja as características dos objetos manipulados ou o contexto situado, uma vez que a linguagem é elemento integrador das percepções táteis, auditivas, olfativas, gustativas para a criança desprovida de visão, que ajuda a interpretar os significados de suas próprias ações (COBO; RODRÍGUES; BUENO; 2003).

Outros trabalhos (MAGALHÃES, 2000; BRUNO, 2006; POYARES; GOLDFELD, 2008) compartilham com Cobo, Rodrígues e Bueno (2003) a ideia de que é importante informar e descrever sobre as características físicas, formais e funcionais dos objetos.

Além da importância da fala do outro, diante da falta de visão, a criança cega também sente necessidade de falar para descrever as coisas que não vê e de manusear os objetos para reconhecimento. Assim, na cegueira, o reconhecimento visual é substituído pelo tátil e pela linguagem do outro (POYARES; GOLDFELD, 2008).

Nesse tópico, vimos a relevância da fala materna com suas marcações prosódicas características para a criança cega, seja para contextualizar a interação, descrever os objetos manipulados, seja orientá-la no espaço físico, seja para inseri-la na linguagem, marcando seu lugar no diálogo.

Concebemos que a fala com suas marcações prosódicas funciona como um marcador multimodal fundamental na díade mãe-criança cega. Interessa-nos, neste momento,

discutir as particularidades da gestualidade nesta díade peculiar. Com base na perspectiva de McNeill (1985, 2000) e Kendon (2000), que a fala e os gestos fazem parte de uma mesma matriz de significação, a seguir teceremos considerações sobre os gestos na interação mãe- criança cega.