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Implicações da cegueira em cenas de atenção conjunta: o que se diz?

A atenção conjunta tem sido predominantemente estudada pela via visual. A maioria dos pesquisadores interessados na atenção conjunta tende a relacionar essa temática com a visão. Para eles, as capacidades da atenção conjunta são vistas como dependentes da informação visual, mediadas pela visão. Entre esses pesquisadores percorremos os trabalhos de Bruner (1975a, 1975b, 1983), Butterworth (1995), Corkun; Moore (1995), Tomasello (1995, 2003), Carpenter; Nagell; Tomasello (1998), Carpenter; Tomasello (2000), Goodwin (2003b), Brooks; Melzoff (2005), Miguens (2006), Kaplan; Hafner (2006), Akhtar; Gernsbacher (2007), Melzoff; Brooks (2007), Mundy; Newell (2007), entre outros.

Saindo da perspectiva da atenção conjunta visual, interessa-nos, neste momento, pensar sobre as implicações da cegueira em cenas de atenção conjunta para compreender de que maneira as capacidades de atenção conjunta são desenvolvidas diante da ausência da visão. Há uma lacuna de estudos que explique essa questão. Por outro lado, desde a década de 80, há explanações que propõem que, mesmo na ausência visual, a atenção conjunta ocorre, conforme os estudos de Mulford (1983) Baron-Cohen (1995) e Bigelow (2003). Esses autores sugerem que a atenção conjunta em crianças cegas pode estar prejudicada, com modificações ou atrasos evidentes em comparação a crianças videntes.

Bigelow (2003) destaca que atenção conjunta não depende da visão para ocorrer, mesmo assim há um atraso e dificuldade de crianças cegas desenvolverem atenção conjunta, afirmando a importância da visão em seu desenvolvimento.

Segundo a autora, o início da dificuldade de atenção conjunta na cegueira relaciona-se ao prejuízo que essa deficiência sensorial repercute na habilidade/capacidade para detectar o foco de atenção dos outros e nas relações espaciais entre o eu, o objeto e o outro.

Baron-Cohen (1995) acredita que representações triádicas, essenciais para a configuração da atenção conjunta, são construídas com mais facilidade na modalidade visual. Apesar disso, em crianças cegas congênitas a atenção conjunta pode ser desenvolvida construindo as representações triádicas via toque ou audição, configurando a atenção conjunta tátil ou auditiva.

Em relação às formas alternativas de atenção conjunta e a sua possibilidade diante da ausência da visão, Preisler (1995) contribuiu ao observar que os pais da criança cega em geral, interpretavam sua atenção tátil em direção aos brinquedos ou outros objetos de um modo semelhante como os pais interpretam a atenção visual das crianças videntes para os brinquedos.

Anteriormente aos autores supracitados, Mulford (1983) constatou que a criança cega tem um número mais limitado de formas para direcionar a atenção de seu parceiro para um determinado objeto em comparação a crianças não cegas que podem indicar seu foco de atenção pela direção do olhar ou pelo gesto de apontar. No caso das crianças cegas, isso não é possível. Dessa forma, essas crianças usam outras formas de atenção não-verbal como o tocar. Em algumas situações, elas trazem o parceiro até o objeto. Mills (2002) acrescenta que as crianças cegas costumam usar a linguagem para atrair a atenção do interlocutor, já as crianças que vêem utilizam recursos não-verbais.

Entre os autores apresentados, Bigelow (2003) proporcionou uma contribuição relevante às explanações da atenção conjunta na cegueira, uma vez que dedicou um estudo longitudinal a essa temática, no qual observou duas crianças canadenses (uma delas dos 13 aos 21 meses e a outra dos 23 aos 30 meses), ambas do sexo masculino com cegueira total congênita, sem deficiência mental ou outra sensorial associada. As crianças cegas foram filmadas em sua casa com a presença da mãe e de um experimentador familiar em situações de interações sociais e de brincadeiras com objetos, de tal forma a investigar como e quando a atenção conjunta surgia nessas crianças.

Bigelow (2003) elegeu comportamentos considerados relevantes para atenção conjunta em crianças cegas, que foram divididos em três categorias: aqueles preliminares para atenção conjunta, os que poderiam ser liberalmente interpretados como atenção conjunta, e aqueles que eram mais conservadoramente sugestivos de atenção conjunta.

Em relação aos comportamentos preliminares de atenção conjunta, foi evidenciado o uso de adultos como instrumento social para localizar objetos desejados pelos infantes. Além disso, também foram realizadas ações instrumentais, como rejeitar um objeto

ao segurá-lo rapidamente e ainda comportamentos autoestimulante, como agitar a cabeça (BIGELOW; 2003).

Já os comportamentos liberalmente interpretados como atenção conjunta indicavam comportamentos ambíguos de atenção conjunta, uma vez que não há certeza de que se tratava de uma atenção mútua. Um exemplo desse tipo de comportamento foi seguir instruções verbais dos adultos para encontrar objetos. Não se pode classificar com clareza esse comportamento como característico da atenção conjunta, uma vez que pode não estar focado no adulto como parceiro da interação, caso o infante esteja usando a linguagem dos adultos apenas como auxílio para suas próprias atividades (BIGELOW, 2003).

Por outro lado, quanto aos comportamentos de atenção conjunta conservadoramente interpretados, Bigelow (2003) observou que foram considerados indicadores mais próximos à atenção conjunta, uma vez que as ações das crianças mostravam maior consciência do papel do adulto na sua interação mútua com objetos.

Na produção científica brasileira, há lacuna referente aos estudos longitudinais e em situações naturalísticas que procuram investigar a relação da atenção conjunta no âmbito da cegueira.

No Brasil, Sousa, Bosa e Hugo (2005) propuseram investigar os comprometimentos da habilidade de atenção compartilhada e o estilo materno de interação em crianças com desenvolvimento típico e crianças com deficiência visual. Realizaram um estudo, no qual foi registrada em vídeo uma sessão da interação mãe-criança em laboratório. Os resultados desse estudo mostraram que duas das crianças com deficiência visual congênita apresentaram mais comprometimentos de habilidade de atenção compartilhada comparadas às crianças com desenvolvimento típico. Essa tendência pode ser justificada pelo fato de a ausência do olhar trazer dificuldades ao compartilhamento de experiências da díade mãe- bebê. Além disso, atividades de atenção compartilhada podem ocorrer com menos frequência na criança cega, conforme acontece quando há uma maior frequência de diretividade materna na interação com a criança.

No estudo de Sousa, Bosa e Hugo (2005), na interação com a mãe, a exploração dos objetos pelas crianças cegas ocorreu pelo uso de modalidades verbais, como comentários e perguntas, e não verbais de atenção compartilhada, como orientação da cabeça/corpo em direção ao campo visual materno e entregar/colocar o objeto no campo visual da mãe.

Baron-Cohen (1995), Bigelow (2003) e Sousa, Bosa e Hugo (2005) compartilham a ideia de que a atenção conjunta em crianças cegas é desenvolvida por vias não-visuais como a audição e o tato. Logo, para interpretar o foco de atenção dos outros, crianças cegas

dependem primariamente da informação auditiva e tátil. Para atrair a atenção dos outros, elas fazem uso do toque e da fala.

Corroboramos essa premissa de que toque e fala funcionam como recursos para atrair a atenção dos outros, Fonte e Cavalcante (2010) realizaram um estudo de natureza observacional com propósito de analisar comparativamente cenas de atenção conjunta entre mãe e seus filhos gêmeos, cego e vidente decorrentes de brincadeira e manipulação de objeto. Essas cenas foram registradas em vídeo no ambiente domiciliar da mãe. Os dados mostraram que tanto na cena interativa com o filho vidente como naquela com o filho cego, a mãe buscou direcionar o foco de atenção das crianças por solicitações verbais enquanto manuseava o objeto, deslizando-o no chão por exemplo. Mas, no segundo caso, a mãe colocou a mão da criança sobre o objeto enquanto deslizava-o. Nesse sentido o toque foi incluído para que a criança cega percebesse o objeto e o seu movimento na interação.

Esse estudo preliminar descrito acima de se pensar sobre a atenção conjunta na cegueira, reforça a relevância desta tese, focada em uma investigação do funcionamento da atenção conjunta na interação mãe-criança cega por meio de um estudo longitudinal, realizando no ambiente domiciliar, focando situações naturalistas, contribuindo, nesse sentido, com dados e análises inéditos de uma díade mãe-criança brasileira.

Neste capítulo, tratamos de questões da cegueira, contemplando inicialmente nas discussões suas particularidades, conceitos e classificações referentes à sua limitação visual. Em momento seguinte, tecemos considerações sobre a fala e a prosódia materna, a gestualidade e o estatuto do toque enquanto estatuto do olhar. Por fim, trilhamos por pesquisas para refletir sobre a repercussão da cegueira em cenas de atenção conjunta. A seguir, apresentaremos os caminhos metodológico deste estudo longitudinal, descrevendo o nosso corpus, a história da criança cega, as legendas adotadas para a transcrição dos dados e ilustraremos em tabela a disposição dos planos de composição da atenção conjunta, que usaremos para organização e análise dos dados singulares e longitudinais de uma díade mãe- criança cega, de forma a compreender o funcionamento da atenção conjunta nessa díade particular.

CAPÍTULO IV

4. Caminhos metodológicos

Na trajetória desta tese, percorremos diferentes caminhos focando em um tipo de estudo propício para a compreensão a atenção conjunta de uma díade singular enquanto funcionamento processual. A coleta desses dados está respaldada nas normas éticas de pesquisa científica e sua transcrição seguiu convenções específicas para facilitar a análise proposta. Descreveremos a seguir o tipo de estudo e os caminhos metodológicos percorridos.

4.1 Tipo de Estudo

Esta tese consiste em um estudo de caso de natureza longitudinal, do tipo naturalístico e de caráter qualitativo, com uma díade mãe-criança cega. Optamos por esse tipo de estudo para facilitar nossa compreensão do processo de mudanças qualitativas no decorrer das cenas interativas de atenção conjunta entre a mãe e a criança cega, uma vez que nosso enfoque será no funcionamento de atenção conjunta desta díade particular, levando em consideração os elementos multimodais (fala e prosódia, olhar, gestos, com a inclusão do toque) enquanto pistas para seu estabelecimento ou manutenção.

Os sujeitos que participaram desse estudo foram os mesmos acompanhados na pesquisa do mestrado, elegendo a mãe e o filho cego, sem patologias associadas à deficiência visual. Vale salientar que os sujeitos do mestrado foram a mãe e os filhos gêmeos, um cego e o outro vidente, acompanhados ao longo de seis meses.

O período das filmagens foi estendido e os dados longitudinais tiveram abrangência de aproximadamente um ano. Desse modo, o corpus foi constituído por interações entre a mãe e a criança cega em ambiente domiciliar, que foram videografadas por meio de uma câmera JVC modelo VHS doméstica com duração média de 15 a 30 minutos cada uma, em intervalo semanal, quinzenal ou mensal, aproximadamente, totalizando 5 horas, 19 min e 19 segundos, o tempo de filmagem. Adotamos essa variação por possibilitar acampanhar as mudanças qualitativas na interação de contextos de atenção conjunta. Os períodos entre um registro em video e outro ao longo do tempo aproximado de um ano