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2.2 A dimensão da gestual da linguagem

2.2.2 O tocar como linguagem

O toque, enquanto linguagem, aciona a modalidade tátil no diálogo entre interlocutores, e articulado, com a visão ou a audição, possibilita a percepção de informações táteis e de outros recursos como os gestos pela visão ou a fala com sua riqueza prosódica através da audição.

Segundo Palacios (1995), as modalidades perceptivas funcionam de maneira coordenada entre si, uma vez que a percepção da criança é intermodal, as informações da realidade são integradas através de diferentes modalidades sensoriais. Desse modo, conforme propõe Turkewitz (1994), Flavell et al. (1999) e Shaffer (2005), a percepção intermodal envolve mais de uma modalidade sensorial para captação das informações de objetos e eventos.

Além da noção de multimodalidade, ou seja, a língua enquanto instância multimodal, no qual fala e gesto/tocar formam um sistema integrado e indissociável, trazemos nesse tópico a noção de intermodalidade, que propõe a integração de mais de um canal sensorial para a captação das informações do ambiente, já que tais informações são múltiplas, demandando da percepção e acesso de mais de um sentido. Como estamos lidando/trabalhando com dados longitudinais de uma criança com um dos sentidos, a visão ausente, é importante compreender que outros sentidos são acessados nas diversas cenas de atenção conjunta, das quais a criança participa.

Cosnier (1977, 1996, 2004) destaca que a comunicação humana contempla elementos verbais e não verbais (mímicas faciais, gestos e mudanças posturais), sendo

atravessada por diferentes canais sensoriais: auditivo, visual, olfativo e tátil. Assim, as trocas interativas apresentam caráter multicanal e multimodal.

A noção de a comunicação ser multimodal e multicanal pode estar atrelada ao fato de a linguagem mesclar elementos de diferentes modalidades, verbal e não verbal (COSNIER, 1977, 1996, 1997, 2003, 2004), que são percebidas pelo sujeito por diversos canais sensoriais (COSNIER, 1977). Além disso, as informações sensoriais são associadas ou articuladas simultaneamente ao som e imagem, toque e imagem, ou combinações ainda mais elaboradas relacionadas ao cheiro, imagem, toque e som (BEE, 2003).

Nesse sentido, determinado objeto presente no espaço pode ser percebido pela interseção dos sistemas sensoriais, audição, visão, tato, olfato e paladar, é passível de ser ouvido, visto, tocado e, talvez, cheirado e saboreado. Mas, mesmo sendo percebido pelas relações intermodais, pela articulação entre as modalidades sensoriais, tal objeto é apreendido de forma unificada (WALKER-ANDREUS, 1994).

Flavell et al. (1999) observaram que, com aproximadamente três a quatro meses, os bebês são capazes de perceber imagens e sons como integrantes de um mesmo evento quando eles estão sincronizados no tempo. Desse modo, pode-se pensar em uma percepção intermodal visual-auditiva. Além disso, eles são capazes de fazer uso de informações visuais e táteis simultaneamente, configurando uma percepção intermodal visual-tátil.

Os bebês cegos não podem captar as informações visuais, já que a visão ausente não pode ser integrada aos demais sentidos, garantindo uma percepção intermodal visual- auditiva ou visual-tátil, como no desenvolvimento típico infantil. Esses bebês podem usar outros sentidos, a capacidade perceptiva articulada com mais de um sentido pode existir, como a percepção intermodal áudio-tátil, por exemplo. Então, na ausência ou no funcionamento inadequado de alguma modalidade sensorial, como, por exemplo, a visual, a interação com pessoas e objetos pode tornar-se efetiva pelo uso de outras modalidades sensoriais, como a audição e o tato.

Neste sentido, a audição possibilitaria detectar sons emitidos, permitindo que o indivíduo reconheça a voz do interlocutor e as características prosódicas da fala, como entonações, variações de altura e de velocidade, entre outras, que conforme vimos, podem apresentar múltiplas facetas, ora como pista do contexto interativo ou afetivo, enquanto papel de atrair ou manter a atenção da criança ou como via privilegiada de inserção da criança na língua. Já o tato favoreceria o contato físico com o interlocutor e com os objetos externos, possibilitando a captação de suas informações. Focaremos neste momento as contribuições do tato no processo interativo, tomando-o enquanto linguagem.

Montagu (1988) afirma que o significado original do termo tato está relacionado ao sinônimo de toque, contato, ou seja, ao ato de tocar ou encontrar. Jütte (2008) propõe que a pele funciona como o ponto de encontro das qualidades dos objetos referentes ao sentido tátil. Desse modo, podemos pensar que a pele seria o tradutor de tais qualidades.

Diferentemente do sentido da visão, que permite ao indivíduo perceber ou captar informações de objetos localizados distantes de si, o tato é considerado um sentido proximal, pois depende do contato físico direto do objeto ou pessoa com o corpo, só é possível conhecer o objeto pela exploração manual ou interagir por meio do toque com uma pessoa quando a localização do objeto/pessoa estiver dentro do alcance da mão. Logo, o toque acontece apenas quando há um contato físico real com algum objeto ou pessoa (JAMES et al., 2006; MILLAR, 1997; KASTRUP, 2007; BATISTA, 2005; CHEN; DOWNING, 2006).

Nota-se uma diferenciação nas naturezas de estímulos percebidos pela visão e aqueles captados pelo tato (MILLAR, 1997). A visão apreende informações sobre tamanho, forma, cor e movimento rapidamente (CHEN; DOWNING, 2006), esse sentido é essencial para capturar a informação sobre as características físicas do objeto, como formato e tamanho. Enquanto o tato é mais eficiente para captar informações sobre as propriedades materiais do objeto (aspereza, dureza e temperatura aparente) (KLATSKY; LEDERMAN, 2003a, 2003b). JAMES et al. (2006) ressaltam que características aparentes do objeto, como pegajoso ou escorregadio são somente percebidas pelo tato, já as cores podem ser percebidas apenas visualmente.

Chen; Downing (2006) lembram que há conceitos que são de fácil compreensão pelo uso da modalidade visual, mas difíceis de reconhecer pelo toque; como aqueles relacionados às expressões faciais e às ações físicas. Para que a criança compreenda tal contexto interativo permeado por tais situações, há adaptações táteis típicas para guiá-la através de ações especificas ou movimentos (orientação de mão sob a mão).

Focalizando as possibilidades de conhecer objetos pelo sistema tátil, Montagu (1988), Hatwell (2003), Batista (2005) e Tiest; Kappers (2008) propõem que esse sistema sensorial possibilita a captação das propriedades físicas e espaciais dos objetos/ambiente, como temperatura, textura, formato, tamanho e relações espaciais, como sua localização e direção dos objetos, por exemplo. Além de considerar algumas dessas propriedades como percebíveis pelo toque, outros autores (LEDERMAN, 1997; KLATZKY; LEDERMAN, 2003b; JAMES et al., 2006; BELARMINO, 2008; LEDERMAN; KLATZKY, 2009; LEDERMAN; KITADA; PAWLUK, 2010) apontam que o peso pode ser percebido na manipulação do objeto.

Para que essas propriedades do objeto sejam percebidas tatilmente é necessária a realização de movimentos exploratórios e da síntese mental decorrente no processo perceptual (HATWELL, 2003). Chen e Downing (2006) destacam que a captação de informações por meio do tato necessita de mais tempo para serem integradas, pois envolve um processo sequencial de imagens táteis para que seja formada a imagem do objeto. As imagens táteis precisam ser sintetizadas para a integração e a compreensão das informações captadas.

Tomando o tato como modalidade sensorial que favorece a interação dialógica entre mãe e filho e o ato de tocar como linguagem configurada nessa interação, reportamos a diferentes autores (MONTAGU, 1988; GUERRERO; DEVITTO; HECH 1999; JONES, 1999; CHEN; DOWNING, 2006) que se dedicaram ao estudo do toque, mostrando a contribuição do tato para o desenvolvimento infantil ou para a relação mãe-criança.

Para Montagu (1988) o toque tem sido considerado a primeira forma de que os seres humanos dispõem para comunicar-se, quando diz que a pele é considerada o sistema de órgãos mais importante do corpo e o primeiro meio de comunicação do ser humano. De acordo com a evolução dos sentidos, o tato ou sistema tátil foi o primeiro a surgir e a entrar em atividade, a tornar-se funcional no ser humano. Desse modo, as primeiras percepções do bebê sobre a realidade são captadas pelo tato.

Guerrero, Devitto e Hech (1999) também propõem que o toque é um canal relevante de comunicação, sendo uma das mais básicas necessidades do ser humano. Pensando sobre a funcionalidade do toque mencionadas pelos autores, vemos que o ele promove o contato, a interação, o diálogo. Conforme afirma Jones (1999), o toque favorece a relação entre as pessoas, e ainda, o contato corporal, que é viabilizado pelo toque corpo a corpo. É considerado por Machado e Winograd (2007) como uma condição basilar para o desenvolvimento de movimentos, gestos e a interação com as pessoas. Nessas colocações, destaca-se o toque como recurso de linguagem nas interações.

Esse contato corporal entre mãe e bebê tem sido considerado por Machado e Winograd (2007) a primeira forma de comunicação estabelecida entre eles. Além disso, as informações captadas pelo bebê por meio da pele proporcionam o conhecimento do meio externo e as sensações de prazer ou desprazer. O mundo é percebido pelo bebê através de suas sensações corporais. Logo, é relevante que a mãe proporcione tais relações.

Chen e Downing (2006) também consideram a importância do contato pele a pele proporcionado em rotinas diárias (amamentação/ alimentação, troca de roupa, carregar a criança nos braços, etc) para o desenvolvimento emocional, social, comunicativo e cognitivo infantil.

Em relação aos cuidados maternos do bebê, dos quais Winnicott (1983) destaca o

holding materno, no qual o ato de carregar, de pôr o bebê no colo, promove a sensibilidade

cutânea (tato e temperatura) do bebê e funciona como forma primordial de demonstração de amor, de afeto.

Em suma, na interação mãe e bebê, o contato corporal com a mãe constitui a primeira linguagem do bebê e funciona como forma de entrar em contato com o ser humano. O uso do corpo como linguagem pelo bebê possibilita a expressão de seus sentimentos e emoções. O autor sugere que uma estimulação tátil apresenta significado fundamental nos relacionamentos emocionais e no desenvolvimento humano e o simples gesto do tocar corresponde a verdadeira voz da sensação, do sentimento. (MONTAGU, 1988). Assim, uma estimulação tátil adequada durante a infância associada aos outros canais sensoriais é importante para o desenvolvimento emocional e social do sujeito.

Nota-se que, nos primeiros meses após o nascimento, as percepções táteis, visuais, auditivas, gustativas estão sendo organizadas pelo o bebê. A partir disso, ele começa a diferenciar-se do mundo. “A diferenciação do si- mesmo em relação ao mundo dos objetos é uma conquista notável e para sua consecução o tato desempenha um papel de destaque”, uma vez que a percepção de si mesmo tem grande influência de experiências táteis (MONTAGU, 1988, p. 242).

Nesse sentido, vivenciar o próprio corpo sinaliza a existência do ser, o perceber-se no mundo. Por meio do tato, é possível construir a consciência do mundo (ANDRADE, 2008) e a consciência do eu (BELARMINO, 2008). Logo, o tato favorece a constituição da imagem corporal pelo sujeito e sua percepção dos objetos, percebendo a si mesmo como instância distinta dos objetos.

De acordo com os papéis que desempenham, Montagu (1988) distingue três formas de toque, o social, o passivo e o ativo. O toque social envolve o tocar em situações sociais, o qual estimula os vínculos sociais, a dependência e a integridade social. O toque

passivo está relacionado ao contato da pele do sujeito com um agente externo, como por

exemplo, uma superfície áspera que é deslizada sobre dedos imóveis. O toque ativo, também conhecido pelo termo haptico, envolve o contato pele-objeto, a exploração e a manipulação efetuadas pelo toque do indivíduo. Neste tipo de toque, tem-se a estimulação dos sistemas receptores nos músculos, tendões e articulações, ou seja, o sistema cinestésico21.

21 responsável pela consciência da postura corporal e possibilita a percepção do movimento ou repouso do corpo.

Mais recentemente, Chen e Downing (2006) retomam a reflexão e a contribuição do estudo das três formas de toque, pontuando situações diferenciadas que envolvem cada tipo nas interações com a criança.

É nas interações com a mãe ou cuidador que o toque social é primeiramente encontrado. Nessas interações iniciais, essa forma de toque é desenvolvida em jogos interativos, como fazer cócegas na barriga, por exemplo, e nas rotinas de cuidado, como pentear o cabelo. Esse tipo de toque favorece o estabelecimento de ligações e relações emocionais, podendo abranger o toque ativo, quando a criança toca outra pessoa, ou o passivo, no qual é tocada por outrem. No primeiro caso, caracteriza-se como toque social passivo, quando a criança recebe uma massagem, abraço ou tem seu cabelo penteado por outra pessoa. O toque social é considerado ativo quando a criança cumprimenta um amigo, dando tapinhas na sua mão, abraça os pais ou cuidador ou penteia o cabelo do irmão (CHEN; DOWNING, 2006).

Em relação ao toque passivo e o ativo, Lederman (1997) reflete sobre esses termos relacionado-os às condições de toque em que o indivíduo tem ou não tem controle sobre o processo de tocar, respectivamente. No toque passivo, o indivíduo não tem controle sobre as informações sensoriais recebidas, enquanto que no toque ativo, o indivíduo tem controle sobre as informações sensoriais selecionadas.

Pensando na criança e sua relação com toque passivo, Chen e Downing (2006) acrescentam que, além de ocorrer quando a pele da criança entra em contato com alguma pessoa ou objeto, pode ocorrer quando alguém a toca, fornecendo uma informação como pressão ou temperatura que pode ser despercebida ou proporcionar uma sensação agradável ou dolorosa. Um exemplo do tipo de toque que pode ser utilizado nos cuidados diários como pentear o cabelo, conforme já mencionado.

Entretanto, em contextos diários, há predominância do toque ativo (KLATZKY; LEDERMAN, 2003b). Para sua realização, é preciso que a criança possua controle motor nos braços, mãos, e dedos ou pés, que os movimente com independência e ativamente, sendo capaz de manusear e explorar os objetos ou pessoas, de tal forma a facilitar sua identificação e reconhecimento (CHEN; DOWNING, 2006). Klatzky; Lederman (2003b), Hatwell (2003) e Drewing (2008) também consideram que o controle dos movimentos exploratórios faz parte do toque ativo.

Dentre os toques ativos que as crianças realizam, Chen e Downing (2006) citam o explorar o ambiente para localizar o brinquedo desejado e o estender as mãos para tocar pessoas para atenção ou interação.

Nesse sentido, o toque ativo substitui o olhar diante da localização de algo interessante no ambiente à medida que a criança explora com as mãos o ambiente objetivando sua localização e ainda substitui o olhar dirigido ao outro para iniciar uma interação ou chamar sua atenção, já que o tocar no parceiro também funciona para atrair sua atenção ou para convidá-lo para a interação.

De acordo com os autores supracitados, as diferentes formas de toque permeiam as interações das quais a criança participa ao longo da vida e o toque ativo, que é intencional, tem papel de destaque para a interação e a captação das informações do que se toca, ou seja, do que se procura conhecer, uma vez que o toque revela as propriedades diversas do foco da atenção tátil.

Diante disso, propomos que o gesto de tocar envolve linguagem, uma vez que o sentido do tato possibilita a construção do apontar exploratório ou tátil que, assim como os demais gestos de apontar, tem estatuto linguístico, o que os diferencia, é apenas sua configuração.

Neste capítulo, tecemos considerações sobre a multimodalidade, o uso da fala com os papéis diferenciados de suas marcações prosódicas, a diversidade da linguagem gestual, incluindo os gestos e o tocar enquanto linguagem. No próximo, situaremos essas temáticas no campo da cegueira, dentre as quais discutiremos o estatuto do toque na criança cega, finalizando com reflexões sobre as implicações da cegueira na atenção conjunta, foco desta tese.

CAPÍTULO III

3. Cegueira, linguagem e interação

Neste capítulo, entraremos no estudo da cegueira, buscando refletir sobre essa deficiência sensorial e sobre a linguagem enquanto funcionamento multimodal, situando questões da prosódia e gestualidade no contexto de interação mãe-criança cega.

Inicialmente, contextualizaremos brevemente a cegueira enquanto deficiência visual, procurando compreender seu conceito e classificação, de forma a conhecer o perfil da criança, objeto de estudo desta tese.

Em seguida, discutiremos as configurações multimodais na interação mãe-criança cega, incluindo considerações e análises sobre a fala materna e suas marcações prosódicas, a gestualidade e o estatuto do toque na díade mãe-criança cega.

Para concluir o capítulo, considerando que ainda é uma área de estudo incipiente e é o ponto central desta tese, dedicaremos o último tópico a uma breve reflexão das implicações da cegueira para a atenção conjunta, assumindo a premissa de que a fala e o toque configuram essa cena.