2.3 Definibilidade
2.3.1 A Falha do Teorema de Beth
N´os mostraremos a seguir que o Teorema de Beth falha para LFP com prova de nossa autoria5. Para tanto, provaremos que existe uma S ∪ {P }-teoria de
LFP que define P implicitamente mas n˜ao define P explicitamente. Sejam Sar, φar e φ como no Exemplo 2.1. Seja P um s´ımbolo predicativo un´ario.
Definimos o conjunto dos termos canˆonicos de Sar como sendo o conjunto
TC := {n = σ . . . σ| {z }
n
0|n ∈ N }.
Para cada subconjunto T de TC, definimos a teoria
Γ(T ) = {φar ∧ φ} ∪ {P (t)|t ∈ T } ∪ {¬P (t)|t /∈ T }.
Obviamente Γ(T ) ´e satisfat´ıvel para qualquer conjunto de termos canˆonicos T . Vejamos o seguinte lema.
Lema 2.5 Γ(T ) define P implicitamente.
4Cf. 2.
5Durante todo esse trabalho, citamos diretamente a fonte de todos os resultados que
n˜ao s˜ao de nossa autoria. Quando se tratar de resultados de autoria de desconhecida, tamb´em resaltaremos esse fato ou indicaremos onde encontrar uma prova para o mesmo. Todos os demais resultados s˜ao de nossa autoria. Mesmo se n˜ao estiver expl´ıcitamente discriminado com express˜oes do tipo “esse resultado ´e de nossa autoria.” Normalmente, escrevemos “mostraremos,” “provaremos,” etc., e n˜ao sendo expressamente discriminada outra fonte, o leitor poder´a concluir que o resultado ´e nosso.
CAP´ITULO 2. L ´OGICA DE MENOR PONTO FIXO 30 Prova. Seja A um modelo de φar ∧ φ. Conforme observado anteriormente,
A´e isom´orfico ao modelo padr˜ao da aritm´etica. Segue que A = {tA
|t ∈ TC}.
Seja T ⊆ TC um conjunto de termos canˆonicos. Seja (A, P) modelo de Γ(T ).
Se t ´e um termo canˆonico, ent˜ao tA
∈ P se, e somente se, t ∈ T . Sejam P e P′ tais que (A, P) |= Γ(T ) e (A, P′) |= Γ(T ). Um termo canˆonico t ∈ TC
´e tal que tA
∈ P se, e somente se, t ∈ T se, e somente se, tA
∈ P′. Logo,
P = P′.
Observe tamb´em que se T e T′ s˜ao conjuntos de termos canˆonicos tais que
T 6= T′ e (A, P) |= Γ(T ) e (A, P′) |= Γ(T′), ent˜ao P 6= P′. Portanto, se φ(x) e φ′(x) s˜ao defini¸c˜oes expl´ıcitas de P com rela¸c˜ao a Γ(T ) e Γ(T′), respectiva-
mente, ent˜ao φ(x) 6= φ′(x), pois caso contr´ario essas duas f´ormulas definiriam
o mesmo predicado em A. Observe ainda que a quantidade de conjuntos de termos canˆonicos diferentes ´e ℵ1. Entretanto, o alfabeto Sar ∪ {P } ´e finito,
e cada f´ormula de LFP ´e finita. Segue-se ent˜ao que a cardinalidade do con- junto de defini¸c˜oes expl´ıcitas ´e ℵ0. Com essas observa¸c˜oes n´os provamos o
seguinte teorema.
Teorema 2.6 (Falha do Teorema de Beth) O Teorema de Beth n˜ao va-
le para LFP.
Prova. Suponha the LFP possui a propriedade de Beth. Ent˜ao para to- dos conjuntos de termos canˆonicos T , Γ(T ) |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)) para al- guma defini¸c˜ao expl´ıcita φ(x) de P . Como a cardinalidade do conjunto das partes do conjunto de termos canˆonicos ´e ℵ1 e a cardinalidade do con-
junto de f´ormulas ´e ℵ0, existem dois conjuntos de termos canˆonicos T e
T′ e uma f´ormula φ(x) tais que T 6= T′ e Γ(T ) |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)) e
Γ(T′) |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)). Mas, como vimos, isso implicaria em T = T′, chegando a uma contradi¸c˜ao. Logo LFP n˜ao possui a Propriedade de Beth.
No teorema anterior, as teorias Γ(T ) s˜ao infinitas. Poder´ıamos nos per- guntar se o Teorema de Beth valeria caso nos restring´ıssemos a teorias finitas. Entretanto, isso n˜ao ´e verdade e podemos utilizar um resultado de Hodkinson em [Hod93] para mostrar isso.
Em [GS96], Gurevich e Shelah introduzem certas estruturas em um de- terminado vocabul´ario Sm chamadas mult´ıpedes. Essas estruturas possuem
as seguintes caracter´ısticas (entre outras—para a defini¸c˜ao dos mult´ıpedes e suas propriedades veja [Hod93, GS96, DHK95]):
1. existe uma f´ormula µ em l´ogica de primeira-ordem cujos modelos finitos s˜ao exatamente os mult´ıpedes de cardinalidade ´ımpar;
CAP´ITULO 2. L ´OGICA DE MENOR PONTO FIXO 31 2. todo modelo de µ possui um conjunto de elementos (que chamaremos
de espinha) linearmente ordenado por uma rela¸c˜ao bin´aria <∈ Sm;
3. todo modelo de µ que possui espinha finita ´e finito.
Gurevich e Shelah mostraram em [GS96] que n˜ao existe uma f´ormula φ(x, y) na l´ogica infinit´aria Lω
ω1ω que defina explicitamente uma ordem linear
em cada mult´ıpede ´ımpar. Assim temos:
Teorema 2.7 (Gurevich e Shelah) N˜ao existe f´ormula φ(x, y) de Lω ω1ω
que define explicitamente uma ordem linear na classe dos mult´ıpedes fini- tos e ´ımpares.
Entretanto, em [DHK95], Dawar et al. mostraram que existe uma sen- ten¸ca λ(≺) no alfabeto Sm ∪ {≺} em l´ogica de primeira-ordem que define
implicitamente uma ordem linear ≺ na classe dos mult´ıpedes ´ımpares. Teorema 2.8 (Dawar et al.) Existe uma senten¸ca λ(≺) em l´ogica de pri-
meira-ordem que define implicitamente uma ordem linear ≺ na classe dos mult´ıpedes finitos ´ımpares.
Hodkinson ent˜ao exibe uma f´ormula δ(<) na l´ogica Lω
ω1ω que afirma
que a ordem < possui tamanho finito. Isso garante que a espinha de cada mult´ıpede modelo de µ ´e finita e, portanto, o pr´oprio mult´ıpede modelo de µ ´e finito. Logo, a f´ormula µ+ = µ ∧ δ(<) possui como modelos exatamente os
mult´ıpedes ´ımpares (isto ´e, define a classe dos mult´ıpedes ´ımpares). Segue-se ent˜ao que µ+ ∧ λ(≺) define implicitamente ≺ em Lω
ω1ω, mas, pelo Teorema
2.7, Lω
ω1ω n˜ao possui defini¸c˜ao expl´ıcita para ≺ com rela¸c˜ao a µ
+∧λ(≺). Da´ı,
Hodkinson conclui que a l´ogica infinit´aria Lω
ω1ω n˜ao possui a Propriedade de
Beth.
Aqui, utilizaremos a estrat´egia de Hodkinson para provar o mesmo teo- rema para LFP. Para provarmos que LFP tamb´em n˜ao possui a Propriedade de Beth, mesmo nos restringindo a teorias finitas, mostraremos que δ(<) pos- sui equivalente em LFP. Juntando isso ao fato de que LFP, considerando-se apenas modelos finitos, est´a contida em Lω
ω1ω (no sentido de que para toda
f´ormula em LFP existe uma em Lω
ω1ω com os mesmos modelos finitos—para
demonstra¸c˜oes desse resultado veja [Hod93, EF95]), concluiremos que LFP n˜ao possui a Propriedade de Beth.
Corol´ario 2.9 A prova de Hodkinson de que o Teorema de Beth falha para Lω
ω1ω pode ser adaptada para mostrar que o mesmo teorema falha para LFP.
Mais ainda: existe uma teoria finita de LFP que define um predicado im- plicitamente mas n˜ao existe defini¸c˜ao expl´ıcita para esse predicado em LFP com rela¸c˜ao `aquela teoria finita.
CAP´ITULO 2. L ´OGICA DE MENOR PONTO FIXO 32 Prova. Considere a seguinte f´ormula no alfabeto Sm∪ {P }:
φ(P, x) := M e(x) ∨ ∃y(P (y) ∧ S(y, x)),
onde as f´ormulas M e(x) e S(y, x) s˜ao as mesmas do Exemplo 2.2. Seguindo um argumento semelhante ao do Exemplo 2.2, ´e poss´ıvel mostrar que a f´ormula ψ′(y) := [lfp
P,xφ(P, x)](y) define o predicado contendo os elemen-
tos que ocupam posi¸c˜ao α na ordem <, para algum ordinal α < ω, quando < ´e interpretada como uma ordem linear (n˜ao necessariamente sobre todo o dom´ınio) com menor elemento e tal que todo elemento, exceto o menor, tem predecessor e todo elemento, exceto o maior, tem sucessor. Seja
φ′′(<) := ∀x∀y((campo-<(x) ∧ campo-<(y)) → (x < y ∨ y < x)), onde campo-<(x) := ∃y(x < y ∨ y < x). φ′′ diz que < ´e total em campo-<
(o conjunto dos elementos que participam em alguma tupla da rela¸c˜ao <). Seja OL′ igual `a senten¸ca OL do Exemplo 2.2 substituindo a subf´ormula correspondente ao axioma de totalidade por φ′′(<). Seja θ′ igual a θ, do
mesmo exemplo, substituindo a subf´ormula OL(<) por OL′(<). De forma
an´aloga ao Exemplo 2.2, a senten¸ca
δ′(<) := OL′(<) ∧ ∃w(M a(w) ∧ [lfpP,xφ(P, x)](w))
define exatamente as estruturas em que < ´e uma ordem linear em campo-< e campo-< ´e finito (pois o ´ultimo elemento da ordem pertence ao predicado [lfpP,xφ(P, x)] e, portanto, ocupa posi¸c˜ao α, para algum ordinal α < ω, na
ordem <). Considerando agora a senten¸ca µ′+ := µ ∧ δ′(<), conclu´ımos que os modelos de µ′+ s˜ao exatamente os mult´ıpedes ´ımpares cuja espinha ´e finita
(pois campo-< ´e exatamente a espinha do mult´ıpede), portanto, µ′+ ≡ µ+.
Logo µ′+ define a classe dos mult´ıpedes ´ımpares finitos e, pelo Teorema 2.8 [DHK95], µ′+ ∧ λ(≺) define ≺ implicitamente (lembre-se que < ´e ordena
a espinha de um mult´ıpede, enquanto que ≺ ordena todo o dom´ınio do mult´ıpede). Como µ′+ ∧ λ(≺) ´e uma f´ormula de LFP, basta mostrarmos que n˜ao existe defini¸c˜ao expl´ıcita em LFP para < com rela¸c˜ao a µ′+∧ λ(≺).
Mas isso decorre imediatamente do fato de que, para toda f´ormula de LFP que somente possui modelos finitos, existe uma equivalente em Lω
ω1ω, junto
com o Teorema 2.7 de Gurevich e Shelah (se existisse uma defini¸c˜ao expl´ıcita ν(x, y) para ≺, nos bastaria tomar a equivalente a ν(x, y), digamos, ν′(x, y),
em Lω
ω1ω para contradizer o Teorema 2.7).
Na verdade, Hodkinson utiliza a senten¸ca µ+∧ λ(≺) para mostrar que a
Propriedade Fraca de Beth tamb´em falha para Lω
CAP´ITULO 2. L ´OGICA DE MENOR PONTO FIXO 33 mesmo para LFP utilizando µ′+ ∧ λ(≺). Vamos primeiramente explicar do que se trata a Propriedade Fraca de Beth. Seja Γ uma S ∪ {P }-teoria de uma l´ogica L. Seja T hS(Γ) := {φ ∈ L|Γ |=Lφ} o conjunto das consequˆencias
de Γ no alfabeto S. O conceito de defini¸c˜ao impl´ıcita exige que, se (A, P) ´e modelo de Γ, ent˜ao P ´e ´unico, ou, em outras palavras, que todo modelo A de T hS(Γ) possa ser expandido para no m´aximo uma estrutura (A, P) que seja modelo de Γ. Ou seja, n˜ao se exige que todo modelo de T hS(Γ)
necessariamente se expanda para um modelo de Γ. Uma defini¸c˜ao impl´ıcita
forte ´e uma defini¸c˜ao impl´ıcita que atende a essa exigˆencia adicional. N´os a
definimos abaixo.
Defini¸c˜ao 2.13 (Defini¸c˜ao Impl´ıcita Forte) Seja L uma l´ogica (ou um
sistema l´ogico). Seja S um alfabeto, P um s´ımbolo relacional e Γ uma S ∪
{P }-teoria de L. Dizemos que Γ ´e uma defini¸c˜ao impl´ıcita forte de P em L
se, todo modelo A de T hS(Γ) expande para exatamente um modelo (A, P) de
Γ.
A Propriedade Fraca de Beth ´e definida assim:
Defini¸c˜ao 2.14 Uma l´ogica L possui a Propriedade Fraca de Beth se, para
toda S ∪ P -teoria Γ de L, se Γ ´e uma defini¸c˜ao impl´ıcita forte de P ent˜ao existe uma defini¸c˜ao expl´ıcita de P com rela¸c˜ao a Γ e L. O Teorema Fraco de
Beth para uma l´ogica L ´e o teorema que afirma que L possui a Propriedade
Fraca de Beth.
Hodkinson mostra que µ+∧λ(≺) ´e uma defini¸c˜ao forte [Hod93]. Analoga-
mente, µ′+∧ λ(≺) ´e tamb´em uma defini¸c˜ao forte de ≺, pois todo mult´ıpede
finito ´ımpar M expande para somente uma estrutura (M, ≺M) modelo de
µ′+∧ λ(≺) (o que garante que M |= T hSm(µ′+∧ λ(≺)) para todo mult´ıpede
finito ´ımpar M) e os ´unicos modelos de µ′+ s˜ao os mult´ıpedes finitos ´ımpares
(o que garante que os ´unicos modelos de T hSm(µ′+∧ λ(≺)) s˜ao os mult´ıpedes
finitos ´ımpares). Ou seja, todo modelo de T hSm(µ′+ ∧ λ(≺)) expande para
exatamente um modelo de µ′+∧ λ(≺). Logo:
Corol´ario 2.10 A prova de Hodkinson de que o Teorema Fraco de Beth falha
para Lω
ω1ωpode ser adaptada para mostrar que o mesmo teorema tamb´em falha
para LFP.
N´os vimos resultados negativos acerca da validade do Teorema de Beth e Teorema Fraco de Beth para LFP. Na pr´oxima se¸c˜ao veremos exemplos em que ´e poss´ıvel obter defini¸c˜ao expl´ıcita a partir de certos tipos de defini¸c˜ao impl´ıcita (que chamaremos de defini¸c˜oes recursivas).
CAP´ITULO 2. L ´OGICA DE MENOR PONTO FIXO 34