Nesta se¸c˜ao, estudaremos a definibilidade de um s´ımbolo predicativo atrav´es da Circunscri¸c˜ao. Isto ´e, estudaremos os casos em que uma circunscri¸c˜ao define o predicado circunscrito.
Em [Doy85] ´e levantada a quest˜ao de quando uma circunscri¸c˜ao define implicitamente o predicado circunscrito. Doyle examina o problema no con- texto da Circunscri¸c˜ao de primeira-ordem [McC80]. Podemos transferir o
CAP´ITULO 3. CIRCUNSCRIC¸ ˜AO 62 problema para o contexto da Circunscri¸c˜ao de segunda ordem como apre- sentada aqui. De agora em diante, assumiremos que apenas um predicado ´e circunscrito em cada circunscri¸c˜ao a fim de simplificar a exposi¸c˜ao do pro- blema. Vejamos o seguinte lema a respeito dos casos em que a Circunscri¸c˜ao define o predicado circunscrito.
Lema 3.13 Seja α(P, Z) uma S ∪ {P } ∪ {Z}-senten¸ca de primeira-ordem. Circ[α(P, Z); P ; Z] define implicitamente o s´ımbolo predicativo P se, e so-
mente se, para toda S-estrutura A existe no m´aximo uma S ∪ {P } ∪ {Z}- expans˜ao A′ que ´e modelo de α(P, Z) minimal com rela¸c˜ao a ≤P;Z.
Prova. Direto da defini¸c˜ao de defini¸c˜ao impl´ıcita.
Doyle lan¸ca a seguinte quest˜ao: quando a circunscri¸c˜ao define implicita- mente o predicado circunscrito, ser´a poss´ıvel substituir o esquema de circun- scri¸c˜ao4 pela defini¸c˜ao expl´ıcita do predicado circunscrito (que, pelo Teorema
de Beth, sempre existe em primeira-ordem) junto com a f´ormula circunscrita? Podemos reformular essa quest˜ao para a Circunscri¸c˜ao de segunda ordem: quando Circ[α(P, Z); P ; Z] ´e equivalente a uma teoria de primeira-ordem e define implicitamente o predicado P , ser´a que Circ[α(P, Z); P ; Z] ´e equiva- lente α mais a defini¸c˜ao expl´ıcita do predicado P ?
Em termos precisos, a quest˜ao de Doyle ´e: se Circ[α(P, Z); P ; Z] ´e equi- valente a uma teoria de primeira-ordem e
Circ[α(P, Z); P ; Z] |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)), onde P n˜ao ocorre em φ(x), ser´a que temos
Circ[α(P, Z); P ; Z] ≡ α(P, Z) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x))? (3.2) Doyle afirma que isso n˜ao ´e verdade. No entanto, o contra-exemplo que ele apresenta n˜ao ´e realmente um contra exemplo. Abaixo, exibiremos um contra-exemplo real, demonstrando a resposta de Doyle.
Exemplo 3.2 Seja φ(<) uma f´ormula de primeira-ordem afirmando que <
´e uma ordem linear na qual todo elemento, exceto o menor, possui um pre- decessor e todo elemento, exceto o maior, possui um sucessor (entretanto,
φ(<) n˜ao determina se < possui maior ou menor elemento). Seja c uma
constante. Seja ψ(c) uma f´ormula de primeira-ordem que afirma que se < possui um menor elemento ent˜ao c ´e o menor elemento de <. Seja P um
4Doyle trabalha com a Circunscri¸c˜ao de Primeira-Ordem, na qual a circunscri¸c˜ao de um
CAP´ITULO 3. CIRCUNSCRIC¸ ˜AO 63
predicado un´ario. Seja θ(P ) a f´ormula de primeira-ordem que afirma que P ´e n˜ao vazio, P possui um maior elemento5 com rela¸c˜ao a < e P ´e “fechado para
baixo” com rela¸c˜ao a < (isto ´e, se P (a) e b < a ent˜ao P (b)). Observe que em todo modelo (A, P) de Circ[φ(<) ∧ ψ(c) ∧ θ(P ); P ] a ordem < possui menor elemento (caso contr´ario seria sempre poss´ıvel escolher uma interpreta¸c˜ao para P menor, pois bastaria escolher um subconjunto pr´oprio de P “fechado para baixo”). Analogamente, se < possui um menor elemento em uma es- trutura A, ent˜ao existe um modelo (A, P) de Circ[φ(<) ∧ ψ(c) ∧ θ(P ); P ]. Facilmente se observa que Circ[φ(<) ∧ ψ(c) ∧ θ(P ); P ] ´e equivalente a
Γ = {φ(<) ∧ ψ(c) ∧ θ(P ),
“< possui menor elemento”,
∀x(P (x) ↔ “x ´e o menor elemento de <”)}.
E f´acil ver que
Γ |= ∀x(P (x) ↔ x = c ∨ x < c).
Entretanto,
Circ[φ(<)∧ψ(c)∧θ(P ); P ] 6≡ φ(<)∧ψ(c)∧θ(P )∧∀x(P (x) ↔ x = c∨x < c).
( ´E f´acil ver que existe um modelo de
φ(<) ∧ ψ(c) ∧ θ(P ) ∧ ∀x(P (x) ↔ x = c ∨ x < c)
no qual a ordem < n˜ao tem menor elemento.)
Mesmo em face dessa resposta negativa, para a classe das senten¸cas bem- fundadas e em circunscri¸c˜oes sem objetos variantes n´os provamos que a equivalˆencia vale. Abaixo definimos a classe das senten¸cas bem fundadas (veja [Lif94]).
Defini¸c˜ao 3.8 Seja α(P, Z) uma senten¸ca da l´ogica de primeira-ordem. N´os
dizemos que α(P, Z) ´e bem-fundada com rela¸c˜ao a ≤P;Z se, e somente se,
para todo modelo A de α(P, Z) existe um modelo B de α(P, Z) P ; Z-minimal e tal que A ≤P;Z B.
Teorema 3.14 Se α(P ) ´e bem-fundada com rela¸c˜ao a ≤P, a circunscri¸c˜ao
Circ[α(P ); P ] ´e equivalente a uma teoria de primeira-ordem e define implici-
tamente o s´ımbolo predicativo P , ent˜ao Circ[α(P ); P ] ´e equivalente a α(P ) mais a defini¸c˜ao expl´ıcita de P .
5Com essa condi¸c˜ao, esse contra-exemplo se aplica tamb´em `a Circunscri¸c˜ao de primeira-
CAP´ITULO 3. CIRCUNSCRIC¸ ˜AO 64 Prova. Seja α(P ) como no enunciado do teorema. Seja φ(x) tal que
Circ[α(P ); P ] |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)). Obviamente todo modelo de Circ[α; P ] ´e modelo de
Γ := α(P ) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x))).
Seja A modelo de Γ. Como A |= α e α(P ) ´e bem-fundada, existe um modelo A′ ≤P AP -minimal de α(P ). Logo A′ |= Circ[α(P ); P ]. Mas nesse caso A′ |=
Γ e, como Γ define P explicitamente, e portanto tamb´em implicitamente, temos PA′
= PA
e portanto A tamb´em ´e minimal com rela¸c˜ao a ≤P, logo
A|= Circ[α(P ); P ].
Vamos relembrar o Exemplo 3.2. N´os exibimos uma f´ormula α(P ) := φ(<) ∧ ψ(c) ∧ θ(P )
tal que Circ[α(P ); P ] define P implicitamente e tal que Circ[α(P ); P ] |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)), onde P n˜ao ocorre em φ(x), mas
Circ[α(P ); P ] 6≡ α(P ) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x)).
Agora, chamamos aten¸c˜ao ao seguinte fato. Uma teoria pode admitir v´arias defini¸c˜oes expl´ıcitas para um s´ımbolo definido implicitamente. Se ao inv´es da defini¸c˜ao φ(x) utilizarmos a defini¸c˜ao φ′(x) := (x = c), n´os temos
Circ[α(P ); P ] ≡ α(P ) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ′(x)).
Fica a pergunta: ser´a que, quando Circ[α(P, Z); P ; Z] define P implici- tamente, existe uma defini¸c˜ao expl´ıcita φ(x) tal que a equivalˆencia 3.2 seja satisfeita? N´os vimos no Teorema 3.14 que se α(P ) for bem-fundada e a cir- cunscri¸c˜ao n˜ao envolver objetos variantes, ent˜ao qualquer defini¸c˜ao expl´ıcita φ(x) para P satisfaz a equivalˆencia 3.2. Mostraremos abaixo que a resposta a essa pergunta ´e afirmativa para qualquer f´ormula α(P, Z).
Primeiramente, vamos demonstrar o seguinte lema a respeito de Circun- scri¸c˜ao quando esta pode ser escrita em primeira-ordem, isto ´e, quando uma circunscri¸c˜ao ´e equivalente a uma teoria de primeira-ordem.
Lema 3.15 Seja α(P , Z) uma S ∪ {P } ∪ {Z}-f´ormula de primeira-ordem, P = P1, . . . , Pn e Z = Z1, . . . , Zm tuplas de s´ımbolos relacionais. Se
M od(Circ[α(P , Z); P ; Z])
CAP´ITULO 3. CIRCUNSCRIC¸ ˜AO 65 Prova. Suponha que existe Circ[α(P , Z); P ; Z] tal que
Circ[α(P , Z); P ; Z] ≡ T hFO(Circ[α(P , Z); P ; Z])
e T hFO(Circ[α(P , Z); P ; Z]) n˜ao ´e equivalente a nenhuma f´ormula φ de pri-
meira-ordem. Sejam P′ = P′
1, . . . , Pn′ e Z′ = Z1′, . . . , Zm′ tuplas de s´ımbolos
relacionais tais que a aridade de Pi ´e igual `a de Pi′ e a aridade de Zi′ ´e igual
`a de Zi, 1 ≤ i ≤ n. Considere a teoria
Θ := T hFO(Circ[α; P ; Z]) ∪ {α(P′, Z′)}.
Obviamente, para qualquer S ∪ {P , Z, P′, Z′}-estrutura
C:= (A, P, Z, P′, Z′),
temos que
C|= Θ sss (A, P, Z) |= Circ[α(P , Z); P ; Z] e (A, P′, Z′) |= α(P′, Z′),
onde P e P′ s˜ao tuplas de predicados em A que interpretam P e P′. Con-
sidere a teoria Θ′ := Θ ∪ {P′ ( P }. Obviamente, Θ′ ´e inconsistente, pois, caso contr´ario, haveria um modelo C = (A, P, Z, P′, Z′) de Θ′ e nesse caso
(A, P′, Z′) P;Z (A, P, Z), contrariando (A, P, Z) |= Circ[α(P , Z); P ; Z].
Por Compacidade da l´ogica de primeira-ordem, seja Θ0um subconjunto finito
de Θ tal que Θ0∪ {P′ (P } ´e inconsistente. Seja
Cα P;Z :=
^
{Θ0∩ T hFO(Circ[α(P , Z); P ; Z])}
uma f´ormula de primeira-ordem. Por defini¸c˜ao de Cα
P;Z, todo modelo P ; Z-
minimal de α(P , Z) ´e modelo de α(P , Z) ∧ Cα
P;Z. Seja (A, P, Z) um modelo
de α(P , Z) ∧ Cα
P;Z. Suponha que (A, P, Z) n˜ao ´e modelo P ; Z-minimal de
α(P , Z). Ent˜ao existe um modelo (A, P′, Z′) de α(P , Z) tal que
(A, P′, Z′) P;Z (A, P, Z).
Mas nesse caso C := (A, P, Z, P′, Z′) ´e modelo de Θ
0∪ {P′ (P }. Absurdo.
Portanto, (A, P, Z) ´e modelo P ; Z-minimal de α(P , Z). Isso significa que Circ[α(P , Z); P ; Z] ≡ α(P , Z) ∧ CPα;Z.
Logo, M od(Circ[α(P , Z); P ; Z]) ´e elementar.
CAP´ITULO 3. CIRCUNSCRIC¸ ˜AO 66 Teorema 3.16 Seja α(P, Z) uma S∪{P, Z}-senten¸ca em l´ogica de primeira-
ordem tal que Circ[α(P, Z)] ´e equivalente a uma teoria de primeira-ordem Γ e P ´e definido implicitamente por Circ[α(P, Z)]. Ent˜ao existe uma defini¸c˜ao expl´ıcita φ(x) de P —onde, obviamente, P n˜ao ocorre—tal que
Circ[α(P, Z)] ≡ α(P, Z) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x)).
Prova. Pelo Teorema 3.15, existe uma S ∪ {P, Z}-senten¸ca de primeira- ordem γ(P, Z) tal que Circ[α(P, Z)] ≡ γ(P, Z). Como Circ[α(P, Z)] define implicitamente P , pelo Teorema de Beth existe uma defini¸c˜ao expl´ıcita ψ(x) de P tal que
γ(P, Z) |= ∀x(P (x) ↔ ψ(x)). (3.3) Seja γ′ := γ(ψ, Z) uma S ∪ {Z}-senten¸ca de primeira-ordem, onde γ(ψ, Z) ´e obtido a partir de γ(P, Z) substituindo ´atomos da forma P (t) por ψ(t). Se A´e um S ∪ {Z}-modelo de γ′, ent˜ao existe um predicado P tal que (A, P) ´e modelo de γ(P, Z)—basta fazer P := {a ∈ A|A |= ψ(x)[a]}. Por outro lado, se (A, P) |= γ(P, Z), ent˜ao A |= γ′—por 3.3. Logo
(A, P) |= γ(P, Z) sss A |= γ′ e P := {a ∈ A|A |= ψ(x)[a]}. (3.4) Seja φ(x) := γ′ ∧ ψ(x). Como γ(P, Z) |= γ′—veja 3.4—ent˜ao
γ(P, Z) |= α(P, Z) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x)).
Seja (A, P) um modelo de α(P, Z) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x)). Se P = ∅, ent˜ao (A, P) ´e modelo P ; Z-minimal de α(P, Z). Se P 6= ∅, ent˜ao existe a ∈ An tal
que (A, P) |= P (x)[a]. Mas como (A, P) |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)), ent˜ao existe a ∈ Antal que (A, P) |= γ′∧ψ(x). Logo (A, P) |= γ′e, como P n˜ao ocorre em
γ′, A |= γ′. Utilizando novamente o fato de que (A, P) |= ∀x(P (x) ↔ φ(x)),
temos P := {a ∈ A|A |= ψ(x)[a]}. Mas como A |= γ′, ent˜ao P := {a ∈
A|A |= φ(x)[a]} = {a ∈ A|A |= ψ(x)[a]}. A partir de 3.4 temos que (A, P) ´e modelo de γ(P, Z) e portanto modelo P ; Z-minimal de α(P, Z). Portanto
Circ[α(P, Z)] ≡ α(P, Z) ∧ ∀x(P (x) ↔ φ(x)).
Na pr´oxima se¸c˜ao, investigaremos o poder expressivo das NATs de Lifs- chitz, que s˜ao generaliza¸c˜oes da Circunscri¸c˜ao.
CAP´ITULO 3. CIRCUNSCRIC¸ ˜AO 67