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A falta do estabelecer contato e do posicionar-se

7 ARGUMENTAÇÃO EM ATIVIDADES DE INVESTIGAÇÃO: os alunos não

7.3 Obstáculos para o desenvolvimento da argumentação

7.3.1 A falta do estabelecer contato e do posicionar-se

Na primeira aula da atividade sobre cálculo do comprimento da circunferência, na turma 902, as alunas Marcella, Júlia, Clara e Mariana iniciaram as medições dos valores do diâmetro e do comprimento, solicitados no roteiro, dos objetos que receberam. Enquanto

153 Marcella realizava esse registro no relatório do grupo, Júlia estava examinando os valores obtidos na tabela e disse em voz alta:

Já achei! Nossa! (Júlia)73

Ela estava se referindo ao item 2 do roteiro, no qual era proposto aos grupos que encontrassem uma fórmula para calcular o valor do comprimento de uma circunferência. Entretanto, Marcella continuou escrevendo o relatório e Clara e Mariana continuaram fazendo medições. Pelo Modelo-CI, é possível notar que Júlia pensou alto, porém, as demais integrantes do grupo não estabeleceram contato com ela, não ocorrendo uma interação que pudesse promover uma situação argumentativa.

Em seguida, a professora se aproximou do grupo para ver o andamento do trabalho.

Até agora, vocês chegaram a alguma conclusão? (Professora) A gente está escrevendo... (Marcella)

Pode colocar ali [Apontando para o relatório.] tudo o que acontece aqui? (Júlia) [A professora balançou a cabeça indicando que sim.] Aí agora pula para a 2. [Se referindo à segunda questão do roteiro.] (Professora)

Eu acho que eu já achei uma. [Se referindo à fórmula para o cálculo do valor do comprimento da circunferência.] Eu não sei se está certo. (Júlia)

Deixa-me ver... (Professora)

Diâmetro elevado a dois, elevado ao quadrado... a não, não é elevado ao quadrado não! É outra coisa que vai dar... (Júlia)

Isso que ela está falando é importante! É uma hipótese. Você tem que anotar aqui. [Apontando para o relatório.] (Professora)

Mas não é elevado ao quadrado! É vezes dois. Não é elevado ao quadrado. É multiplicado por dois. (Júlia)74

Nessa discussão, Júlia apresentou a sua opinião sobre a fórmula para calcular o comprimento de uma circunferência, que seria multiplicar o diâmetro por dois, ou seja, em uma linguagem algébrica, C = 2d, no qual C é o valor do comprimento e d é o valor do diâmetro. A professora tentou incentivar a interação entre o grupo estabelecendo contato com a Júlia e reconhecendo a sua ideia. Ela chamou a atenção do grupo para que as alunas percebessem que uma hipótese havia sido elaborada e que ela deveria ser registrada.

73 Dados da pesquisa. Filmagem e gravação, Aula 2. 74

154 No momento em que Marcella pegou o relatório para registrar a hipótese, Mariana propôs uma ideia diferente ao grupo e a professora novamente chamou a atenção das alunas para uma nova hipótese.

O diâmetro é o dobro mais 2? (Mariana) Ó, isso é outra hipótese... (Professora) É o triplo... (Mariana)

Peraí, Mariana, peraí!Guarda esse negócio aí que você está falando. (Marcella) O que você falou? [se referindo à Mariana] (Professora)

Eu falei que o diâmetro é o dobro mais 2. Mas eu acho que é o triplo. (Mariana) O diâmetro? (Marcella)

Mas é o diâmetro que você quer? (Professora) Não. É o valor do comprimento. (Mariana)

Comprimento? Não estou entendendo nada! (Marcella)

O valor do comprimento... [Mariana é interrompida.] (Mariana) É o triplo do diâmetro! (Clara)75

A primeira hipótese levantada por Júlia, que o valor do comprimento é o dobro do valor do diâmetro, não foi discutida pelo grupo e nem registrada no relatório. Mariana pode ter reformulado a hipótese de Júlia ao dizer que o valor do diâmetro é o dobro do valor do comprimento mais dois. A intervenção da professora nesse momento foi essencial, pois ao chamar a atenção para a confusão entre valor do diâmetro e valor do comprimento no fragmento “Mas é o diâmetro que você quer?”, fez com que o grupo alterasse a hipótese. Além disso, Clara aproveitou a interação para propor a sua ideia.

Nessa situação, o grupo e a professora estabeleceram contato, uma vez que elas prestaram atenção às contribuições das colegas, e, além disso, elas reconheceram as ideias apresentadas. Logo após, Júlia começou a testar oralmente a hipótese da Mariana.

Aqui ó, 3 vezes 6 [valor do diâmetro da lata de tomate retirado da tabela] é 18, mais 2, 20.3 vezes 10 [valor do diâmetro do pote de manteiga], 30 mais 2,32.[Esses casos apresentaram resultados iguais aos da tabela.] (Júlia)

É! (Clara)

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155 3 vezes 6 [valor do diâmetro da tampinha], 18... [A aluna interrompeu a sua fala, pois percebeu que o resultado foi diferente do valor da tabela.] (Júlia)

Esse aqui é 20, gente! Da tampinha azul. Esse aqui já dá... 3 vezes 8 [valor do diâmetro da tampa vermelha] é igual a 24. Por que não precisou de mais 2? (Clara) Vai, Mariana, a sua hipótese... O comprimento.... Como é que é? (Marcella) O valor do diâmetro é triplo do comprimento... Ai meu Deus, peraí! (Mariana) É o triplo mais 2? (Marcella)

Não! É o valor do comprimento... É o triplo do diâmetro. (Júlia) Não o valor do diâmetro... (Mariana)

Mas o valor do comprimento é primeiro! (Júlia)

O diâmetro vezes 3 mais 2 é o valor do comprimento. (Mariana) Tem que começar com o valor do comprimento! (Júlia)76

No momento em que Júlia iniciou o teste da hipótese de Mariana, apenas Clara estabeleceu contato com ela. Inicialmente, ela concordou com a ideia proposta e questionou o valor obtido do comprimento da tampinha na medição, que era 19 cm: “Esse aqui é 20, gente! Da tampinha azul.” Quando ela continuou o teste da hipótese, percebeu que para um caso, da tampa vermelha, o valor do diâmetro multiplicado por 3 dava exatamente o valor encontrado na medição: “Esse aqui já dá... 3 vezes 8 é igual a 24.” E questionou a hipótese: “Por que não precisou de mais 2?” .

Todavia, nenhuma colega se envolveu com o seu questionamento e Marcella se preocupou apenas em registrar a hipótese da Mariana: “Vai Mariana, a sua hipótese... o comprimento... Como é que é?” Marcella e Mariana não se envolveram com o teste realizado oralmente por Júlia e Clara e não houve registro dele no relatório. Esse teste era importante para concluir que a hipótese da Mariana era falsa, porém apenas Júlia conseguiu perceber isso.

Nessa interação, é possível perceber que em alguns momentos as alunas conseguiram estabelecer contato e reconhecer algumas ideias propostas. Entretanto, em nenhum momento as alunas se posicionaram em relação às hipóteses, apresentando argumentos para validá-las. No relatório do grupo, elaborado no primeiro dia da atividade, as hipóteses foram enunciadas, mas sem nenhuma justificativa e conclusão. A ideia de que C = 3d poderia ter sido explorada

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156 pelas alunas, já que é uma boa aproximação para a fórmula correta (C = d), uma vez que o valor de não era conhecido por elas e nem pela turma.

Não foi a ausência de elementos do Modelo-CI que descaracterizaram essa situação como argumentativa, mas a falta desses elementos, sobretudo o estabelecer contato e o posicionar-se, podem ter contribuído para que não ocorresse argumentação nesse episódio.