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A família e a doença

No documento DORES NO CORPO/ DORES NA ALMA (páginas 148-153)

7. O FALAR DO QUE NÃO SE FALA: ACASOS OU ESTUDOS DE CASOS

7.1 AS QUESTÕES E AS RESPOSTAS

7.1.7 A família e a doença

Ademais, ficou também explícito nos depoimentos que quanto mais suporte social, emocional e sexual o sujeito recebe, mais apto estará para enfrentar as situações de estresses e é nesse particular que a família se faz presente. É reforçando ou afrouxando os laços de reciprocidade que as trocas simbólicas ocorrem entre esses dois importantes vínculos, ou seja, o doente e a sua família. Ao responderem sobre o modo como a família se posicionou diante da doença, elas apresentaram os seguintes relatos:

No primeiro momento, eu não tenho nem pai nem mãe né, minhas irmãs todas têm idade, têm seus cuidados, têm sua família, e elas queriam deixar tudo para cuidar de mim, pois achavam que... porque eu sou uma irmã tipo a mãezona, e aí elas diziam prá mim: ah! eu queria que fosse comigo, eu queria que fosse em mim, do que em você. Então no primeiro momento foi terrível pra eles. [...] Olha, a minha família nasceu numa família que não tem demonstrações, não é de muitas demonstrações, e cada um cuida da sua vida. Nós somos sete, mas cada um cuida das suas vida, mas eu entendi que aquilo foi no primeiro momento, foi uma semana, mais ou menos, logo depois eu fiquei sozinha ligavam pra mim, ah, você tá bem,? Tô bem, então não foi uma coisa muito... não é ? (Judite).

A família que me adotou, minha mãe faleceu. Vinte e um anos que ela faleceu e meu pai faleceu o ano passado em abril, um pouco antes de eu descobrir o problema do câncer. [...] hoje eu não tenho mais ninguém. [...] o suporte veio dos meus amigos, colegas de trabalho, meu filho, os amigos de meu filho, eu tenho os colegas de... de acompanhamento de trabalhos religiosos, o pessoal da igreja, o pessoal do Centro ( Lúcia).

A força principal foi meu filho, e meu marido. [...] E até hoje assim é. A família eu optei por não compartilhar com a família o que aconteceu comigo, porque minha mãe é uma pessoa idosa, hipertensa, não tem uma cultura legal para entender que o câncer hoje não é um fim de vida, como no interior muitas vezes achava ainda. É uma mulher do interior, aquela mulher raçuda, e não teria compreensão para entender o que estava acontecendo comigo. Então eu optei em não falar nada com ela pra que não tivesse um problema maior. [...] Toda a família do meu marido me abraçou, me deu colo, foi o que eu precisei que veio do outro lado. Eram pessoas que tinham condições de me suportar no bom sentido, né. Então isso foi a família que ficou comigo, não foi uma ausência, foi uma opção minha (Joana).

Estava separada. Quando meu filho deu a notícia ao pai ele ficou abalado, né? Pôxa, como foi acontecer isso com sua mãe, rapaz? Que foi isso? E ela como é que tá? Ele foi me visitar, foi me ver. Me deu a maior força. Tudo que eu precisasse ele estava do meu lado pra o que der e vier. [...] Foi um apoio. Porque meu irmão me ajudou no que pode né? Quando eu fiz a cirurgia eu fiquei na casa da minha irmã, ela me acolheu. Minha mãe ficou sentida em ter mais um caso na família, porque já tinha tido duas antes de mim e ela... meu Deus por que que está acontecendo isso com minhas filhas, e comigo não tenho nada até hoje? Meu pai também ficou abalado quando soube que era mais uma filha com esse problema (Célia).

Eu não, eu me tranquei. É como eu estava lhe dizendo, eu me tranquei não falei com ninguém. Eu tinha uma pessoa que morava comigo na época e que não estava aqui no Brasil, e que estava com problema no exterior; eu segurei essa informação, ficou entre eu e o médico, somente até que essa pessoa resolvesse esse problema lá onde ele estava e eu falei com ele. Eu falei por telefone, ele veio, mas a minha família mesmo, pai, mãe irmão só soube depois da biópsia pós-cirúrgica. [...] foi exatamente pelo fato d‟eu querer é... é... o melhor pra mim. São pessoas que não têm uma determinada formação e aí iam pensar o pior. [...] Eu me protegi mesmo [...] Exatamente por isso, pra as pessoas não pensarem, ah, ela tá com câncer, ela vai morrer. Eu queria vencer! (Luana).

Tive, mas assim, todo mundo muito reservado. Com muito medo, até mesmo por conta das crianças do que por mim. Aí tá difícil. Talvez tenha me atrapalhado um pouco, porque ficava me perguntando como é que ia ser. Entendeu? Porque eu não via segurança de alguém assumir meus filhos se eu fosse embora (Daniela).

Foi minha irmã. Foi assim é... quando chegou a hora de precisar muito dinheiro, painho fazia de conta que não estava entendendo, sabe, com medo, ele tinha medo da gente não ter dinheiro suficiente. Graças a Deus passei o dinheiro da gente deu, mas eu sentia. [...] Alguns amigos se afastaram, ficaram bem pouco, e os amigos que não se afastaram me deram muita força. E os que se afastaram também afastaram depois, porque aí quem não quis mais aproximação fui eu. [...] Preconceito, medo. As pessoas têm muito medo de câncer. Devido a tanto medo é que o índice de cura não aumenta, as pessoas descobrem que tá, não aumenta não, porque tá aumentando né, mas as pessoas descobrem que tá e escondem de si própria, nem diz aos médicos e fica guardando aquilo...(Vitória).

Ao tentar interpretar esses relatos, constata-se a importância do aspecto social da doença, já que, após a confirmação do diagnóstico de um câncer mamário, essas mulheres ficam expostas a um tratamento mutilante, que requer apoio físico e emocional, acarretando a necessidade de ajuda de outras pessoas. De um modo geral, a família é a eleita para cumprir esse papel.

Penna (2004), ao discorrer sobre a importância da família no apoio a um dos seus membros adoecidos, menciona que essa instância exerce importante papel sobre o curso da doença, podendo interferir, positiva ou negativamente, com as suas ações, na aceitação do tratamento e no modo de enfrentar o sofrimento. Para a autora, por conseguinte, é fundamental compreender a dinâmica familiar inserida dentro do contexto social, histórico, econômico, cultural e moral que cada família movimenta. Considerando essa assertiva, percebe-se o quanto é difícil configurar doença e família dentro de parâmetros estabelecidos. Pertinente parafrasear Balieiro e Cerveny (2004), quando mencionam que “ambas estão imersas em uma história antiga, inseridas em culturas e realidades diversas, emaranhadas com outros sistemas

circundantes e, por isso, devem ser pensadas dentro dessa diversidade” (BALIEIRO & CERVANY, 2004, p. 160).

Nos depoimentos acima se pode conferir essa afirmação, já que, ao analisar as respostas dadas a esse questionamento, cada uma das mulheres entrevistadas narraram a sua experiência familiar diante da doença, demonstrando como esse sistema de interação pode lidar de modo diverso e particular, com a moléstia. Observa-se nesses depoimentos que se, por um lado, o apoio familiar foi crucial para enfrentar a doença, por outro, a exemplo de Luana, a solidão foi a escolha feita pela paciente, na crença de que, se assim procedesse, evitaria as energias negativas, advindas da sua família que, segundo ela, poderia ser vítima, já que a doença traz no seu bojo o estigma da morte e, desse modo, a negatividade dos mais próximos poderia abalar a sua fé e a sua esperança.

Sabe-se que a confirmação do câncer ocasiona de imediato um grande impacto no seio da família. Esse impacto pode originar crises não somente na aceitação do diagnóstico, mas também na adaptação à doença, tanto para a pessoa afetada quanto para a família desse sujeito. No seu depoimento, Judite deixa transparecer essa afirmação, ou seja, se no início toda a família ficou abalada, com o passar do tempo um simples telefonema era suficiente para esse grupo se fazer presente na sua dor, isso porque, após o período do choque oriundo da constatação do diagnóstico, instalou-se a acomodação, e cada um seguiu o rumo da sua vida. Lúcia, mesmo a despeito do apoio filial, menciona que encontrou nos amigos, nos colegas de trabalho e no pessoal da sua igreja o suporte de que precisava para lutar contra o seu sofrimento, demonstrando com isso a importância do ambiente social em que o sujeito está inserido. No caso dessa paciente, por ser adotada e órfã de pai e mãe, o sentido de pertencimento a um grupo familiar estava ausente; entretanto, a rede social que a rodeava foi fundamental para ela nesse momento tão vulnerável. Dessa maneira, é relevante nesta pesquisa acentuar que diferentes grupos podem também ter participação efetiva no apoio ao doente, substituindo até mesmo a família nas tomadas de atitudes. Ao compactuar uma relação de confiança e construção de laços fortes, esses grupos também podem possibilitar que o doente interiorize uma melhor aceitação e adaptação à enfermidade. Desse modo, Joana, mesmo diante do abalo emocional acarretado pela doença, decidiu poupar a mãe e não falar sobre o seu câncer, seja por cuidado à saúde, seja pela ignorância desta na interpretação da doença, admitindo ter feito uma escolha pela não participação da sua família consanguínea. Assim, ela explicita que encontrou no marido e na família dele, ou seja, “no

outro lado”, de acordo com o seu próprio discurso, o verdadeiro apoio para ser suportada e também para suportar as suas dores. Célia, ao considerar seu ex-marido como o seu principal apoio, demonstra que a descoberta da doença origina efeitos desgastantes também para as pessoas mais próximas, porquanto a comunicação da moléstia mobiliza essas pessoas a manifestarem comportamentos de não aceitação referentes às doenças graves. No impacto da notícia, as pessoas que convivem com o doente costumam assumir posição de surpresa em relação ao diagnóstico, sendo comum acharem que aquele fato nunca poderia acontecer com os seus entes queridos. A interpretação desse comportamento talvez se explique na crença arraigada de que o câncer é uma doença fatal cujo fato remete a família a se confrontar, muitas vezes, com a ideia da morte pela primeira vez, deparando-se assim com a certeza da finitude e da limitação do ser humano. Daniela, ao falar sobre a sua experiência familiar e o câncer, admite que esse seu grupo de pertencimento talvez tenha mais lhe atrapalhado do que ajudado. Ela faz essa afirmação baseada nas inquisições que lhe foram feitas, a saber: E agora?Como vai ser? Para essa mulher, tais formulações serviram para lhe lembrar a todo o momento a severidade da doença e a relação desta com a morte. Por ser mãe de dois filhos especiais, via nesses questionamentos um modo equivocado de a sua família se posicionar diante das suas angústias, já que com essas perguntas a ela insistentemente dirigidas, não via segurança de alguém assumir os seus filhos, em caso do seu passamento. Vitória explicita que o apoio dado pela irmã foi importante para ela, entretanto, em relação ao seu pai, isso não aconteceu, pois a sua preocupação maior foi com os gastos financeiros que o tratamento podia acarretar para a família. Por outro lado, tem consciência de que, apesar de ter perdido muitos amigos por preconceito, em decorrência da doença, os que ficaram ao seu lado mostraram que o apoio e a solidariedade também podem vir das instâncias não familiares. O que se pode apreender diante desses depoimentos é que a mulher, ao viver a experiência do câncer mamário, necessita de apoio para suportar a doença; contudo, isso não significa que esse suporte seja concretizado necessariamente e apenas pela família consanguínea. Verifica-se, tanto na prática profissional – por intermédio das narrativas das pacientes atendidas nos consultórios médicos –, quanto nos depoimentos acima transcritos, que outras instâncias, que não as familiares, como os amigos, o grupo religioso, os colegas de trabalho etc. estão também inseridas no universo dessas mulheres, apoiando-as e confortando-as nas suas dificuldades. Isso, entretanto, não legitima em classificar as famílias como “boas ou más”, visto que é impossível fazer esse juízo de valor, sendo elas coesas ou não, porquanto estão inseridas nos seus contextos, nas suas histórias e nas suas narrativas.

Desse modo, estudar a família na contemporaneidade significa fazer uma análise diferenciada, diante dos pressupostos de estudiosos que se debruçaram sobre o assunto, em relação aos diversos modos de viver a vida no âmbito familiar, e em particular nesta pesquisa, em viver a experiência do adoecimento grave de um dos seus membros e as consequências advindas dela.

No documento DORES NO CORPO/ DORES NA ALMA (páginas 148-153)