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A FAMÍLIA E A RELAÇÃO COM O PROCESSO DE APRENDIZAGEM

2 ESCOLA, ALFABETIZAÇÃO E O FRACASSO ESCOLAR

3 FAMÍLIA, ESCOLA E APRENDIZAGEM – O COTIDIANO E O INVESTIMENTO DA ESCOLA E ESFORÇO DA FAMÍLIA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS

3.1 A FAMÍLIA E A RELAÇÃO COM O PROCESSO DE APRENDIZAGEM

O envolvimento da família com os assuntos escolares costuma ser relegado por não suprir satisfatoriamente os propósitos da escola e, assim, se mantém presente o

mito da omissão parental, expresso por Lahire (2004b) e também verificado por

Batista-Carvalho e Silva (2013) e Diogo (2010). Geralmente, profissionais da Educação formal reclamam a ausência familiar nas reuniões, a falta de acompanhamento das tarefas, dentre outras, mas, há pouco conhecimento dos mesmos, por exemplo, acerca

do que as famílias fazem para manter o seu filho presente na escola. Nesse sentido, consolidam-se os intermináveis discursos de que as famílias de classes populares só mandam para escola por causa do bolsa família11, que elas não têm menor interesse,

dentre tantas outras críticas.

Diferentes investigações, internacionais e nacionais, demonstram, desde os anos 1990, que a ‘omissão’ ou ‘indiferença’ dos pais das camadas populares em relação à escola é um mito. Segundo essas investigações, de fato, os agentes escolares, sobretudo os professores, enfrentam reais dificuldades com a ampliação do acesso e com o ingresso de crianças das camadas populares na escola, pois estão, em geral, despreparados para lidar com esse público. Uma das formas de interpretar essas dificuldades é atribuí-las às crianças mesmas e a suas famílias: por um lado, elas teriam deficiências cognitivas e linguísticas; por outro – e é o que nos interessa particularmente aqui – seus pais seriam desinteressados ou omissos em relação à escola, bem como adotariam estilos educativos limitados, que necessitariam ser enriquecidos a fim de assegurar um percurso escolar bem-sucedido (BATISTA; CARVALHO- SILVA, 2013, p. 14).

É importante diferenciar o envolvimento da família na aprendizagem da criança - que efetiva-se de diversas formas, não necessariamente escolares - do envolvimento com a escolaridade, ou seja, com a realização das tarefas, participação nas reuniões etc., mais relevantes para escola. As diferenciações, por vezes realizadas pelas famílias, denotam posturas responsáveis e discernimentos indispensáveis para o processo de aprendizagem. São os chamados pais responsáveis, como bem expressou Diogo (2010, p. 65): “são essencialmente os que comparecem na escola e não se intrometem no território pedagógico do professor”.

Primeira instância de aprendizagem, a família constitui-se como sendo o principal contexto socializador, com dinâmica própria e caracterizada no mundo contemporâneo por variadas composições. Tal instância é influenciada pelo desenvolvimento econômico, político e social (FACO; MEL CHIORI, 2009).

11 O Bolsa Família é um Programa do Governo Federal, gerido pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à fome. O Programa visa atender famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, buscando potencializar o acesso dessas famílias à educação e à saúde. As famílias atendidas recebem benefícios de acordo com a renda mensal e número de pessoas que compõem à família. Ver site do Ministério de Desenvolvimento Social (2015).

[...] a família é um complexo sistema de organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas ligadas diretamente às transformações da sociedade, em busca da melhor adaptação possível para a sobrevivência de seus membros e da instituição como um todo (MINUCHIN, 1985, 1988 apud FACO; MELCHIORI, 2009, p. 122).

Nesse sentido, cada família mesmo representando uma instituição objetivamente definida, apresenta suas peculiaridades, conforme esclarecem os referidos autores, permeada por aspectos que as diferenciam.

Nogueira (2011) elucida, contudo, que as particularidades das famílias não eram consideradas nas pesquisas da sociologia da educação nas décadas de 1950 e 1960, baseadas em análises macrossociológicas que resultavam em generalizações. Os estudos limitavam as famílias às variáveis de renda, grau de instrução, quantidade de filhos etc. Deste modo, as diferenças socioculturais explicavam as desigualdades e as famílias de baixa renda tendiam a serem consideradas as menos capazes no processo de aprendizagem. A dinâmica interna da família não era relevante e, com base na teoria da reprodução, nos anos de 1970, e a importância atribuída ao capital cultural postulada por Bordieu (2004), as referidas variáveis indicavam os grupos familiares que obtinham êxito escolar. Afinal, a própria escola reproduz os hábitos e anseios da elite.

É a partir dos anos de 1980 que se inicia uma mudança no olhar sociológico da educação, ou seja, gradualmente começa a se deslocar para uma análise de aspectos antes não considerados, como a sala de aula, o ensino e a família, rompendo com o modo clássico da “sociologia da escolarização”12 (NOGUEIRA, 2011).

Embora já tenha algum tempo em que essa mudança de perspectiva sociológica vem ocorrendo, ainda é comum referir-se à família como essencial para o sucesso escolar do aluno, conforme enfatiza Diogo (2010), ou mesmo, por serem as responsáveis pela não aprendizagem e pelo quadro de fracasso. Assim, alguns consensos se consolidaram socialmente, como por exemplo, que, quanto maior a relação da família com a escola, maior a possibilidade de sucesso, e que o não envolvimento dos pais é uma das origens dos problemas escolares, de acordo com a

12 Nogueira (2011) enfatiza a transição da “sociologia da escolarização” para a “sociologia das escolaridades”, tendo em vista que a visão clássica dava ênfase às desigualdades tendo como parâmetros estudos macrossociológicos, relegando aspectos particulares, que diferenciam internamente aqueles que pertencem à mesma classe social, por exemplo.

referida autora, que tece significativas reflexões acerca dessas críticas.

Diogo (2010) expõe, primeiramente, a crítica ao funcionamento das famílias. Afinal, é recorrente as queixas de professores que criticam a ausência dos pais no envolvimento com as questões escolares do filho, geralmente seguidos de um tom nostálgico sobre o passado ideal, em que a educação parecia ocorrer com a efetiva participação familiar, o que não é verdade.

Curiosamente, a análise das estruturas familiares do passado revela que essas se caracterizavam por uma elevada instabilidade, sendo muito frequentes as rupturas conjugais e as famílias reconstituídas, devido às elevadas taxas de mortalidade até o século XIX, levando Saraceno e Naldini (2003, p. 43) a afirmar que ‘a família do passado parece ser muito mais instável e sujeita a desagregação, de facto se não em princípio, do que a família contemporânea’ (DIOGO, 2010, p. 75).

Portanto, é infundado recorrer a um passado em que as famílias apresentavam muito mais dificuldades em relacionar-se com a escola ou mesmo manter o filho nela. Estes aspectos mudaram, consideravelmente, conforme a autora citada, tendo em vista um novo lugar ocupado pela escola na sociedade, levando as famílias a reconhecerem a importância da educação e da instituição escolar. A escola altera, de acordo com a autora, a vida cotidiana, com seus horários e atividades que, paulatinamente, reestruturam a rotina familiar.

A investigação sobre as práticas educativas das famílias tem mostrado uma tendência para os pais de hoje pretenderem formar filhos autônomos e responsáveis, a quem explicam, em vez de imporem, ou seja, privilegiando a negociação e a sedução, ao invés do controle, denotando uma evolução histórica no modo de socialização familiar (KELLERHALS; MONTANDON, 1991 apud DIOGO, 2012, p. 76).

Outra crítica exposta por Diogo (2010) diz respeito às desigualdades na relação escola e família, bem apoiadas nas pesquisas de cunho macrossocial. Considera-se as famílias dos meios populares menos envolvidas ou mesmo desinteressadas pelas aprendizagens dos filhos, o que não é verdade. Ao apontar questões como estas, generaliza-se de forma abusiva o envolvimento das famílias com a educação de seus filhos. “[...], é abusivo falar em demissão parental, na medida em que demissão implica uma opção deliberadamente tomada que na realidade não acontece” (DIOGO, 2010, p.

80). Desse modo, a percepção sobre a contribuição da família na aprendizagem acaba se restringindo ao apoio ou não nas atividades escolares.

A referida autora esclarece, ainda, que muitas vezes as famílias não apoiam diretamente, mas investem pagando alguém que acompanhe os trabalhos escolares. Tais investimentos, contudo, costumam receber críticas se não correspondem ao esperado pelo professor, se a tarefa não é realizada corretamente, como ilustra a autora diante de dados de uma pesquisa que realizou: “A mesma mãe confessava: “o pai lê as palavras e ela decora [...] e quando chega à escola esquece tudo. É o que a professora diz: Mas o seu marido é que é o culpado disso. Facilita demais” (DIOGO, 2010, p. 82).

Vimos como a atenção e envolvimento da família não considerado, ou seja, não atende aos requisitos demandados pela escola.

Não se pode afirmar que o envolvimento da família acarretará numa relação causa-efeito, que irá culminar no sucesso escolar, conforme expressa a autora supracitada. Isso porque é a escola a responsável pelo ensino sistemático, são os professores os profissionais formados para lecionar e são os estudantes, as pessoas que desempenham o “ofício de aluno”13.

Corroborando com as reflexões realizadas até o momento, Meirieu (1998, p. 14), esclarece que não se pode deixar o sucesso sobre a sorte de vida de cada criança. Assim, o professor “[...] não apontará, sistematicamente, a falta de trabalho em casa, mas terá, pelo contrário, que se esforçar para disponibilizar aos alunos exercícios estimulantes e acessíveis [...]”. Aquino (1998, p. 184) do mesmo modo salienta:

Ao eleger o aluno-problema como um empecilho ou obstáculo para o trabalho pedagógico, a categoria docente corre abertamente o risco de cometer um sério equívoco ético, que é o seguinte: não se pode atribuir à clientela escolar a responsabilidade pelas dificuldades e contratempos de nosso trabalho, nossos ‘acidentes de percurso’. Seria o mesmo que o médico supor que o grande obstáculo da medicina atual são as novas doenças, ou o advogado admitir que as pessoas que a ele recorrem apresentam-se como um empecilho para o exercício "puro" de sua profissão. Curioso, não?.

13 Diogo (2010) atribui ao estudante também a responsabilidade pelo sucesso escolar, visto que é ele que exerce na escola a função de aluno, aspecto extremamente relevante diante do processo de ensino aprendizagem.

Desse modo, a família tem sua participação, ajuda no processo de aprendizagem, tem importante responsabilidade, mas não pode ser considerada a “culpada” pelos fracassos escolares e muito menos representar um padrão de fracasso devido sua renda ou organização familiar, comumente julgadas por visões macrossociológicas que dispensam um olhar aprofundado na dinâmica interna de cada família, nas realidades que cercam cada estudante independente de suas condições econômicas e sociais.