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parte II − A construção do mercado e suas várias faces

Capítulo 4 − A construção ficcional do mercado

4.1 A ficção e o mercado

Segundo o dicionário, “ficção” é o “ato ou efeito de simular,

fingimento; criação do imaginário, aquilo que pertence à imaginação, ao

irreal; fantasia, invenção” (Dicionário Aurélio, 2004).

Se ficções forem quaisquer produções humanas que representam

a realidade sem contudo interferir materialmente nela, então, qualquer

discurso − melhor, qualquer expressão de linguagem − seria uma ficção. O homem é o único animal que produz ficção. É o único ser vivo

que cria uma aparência de realidade para enganar a si próprio ou a seus

semelhantes. Os outros seres interagem com a realidade material, e só

com ela, ao passo que o homem procura também criar uma espécie de

nova realidade97 − a ficção.

Dessa forma, a ficção cria um espaço “simulador de realidade”

(Zizek, 2003: 9), realizando os desejos inconscientes do homem e

moldando sua vivência aos aspectos oníricos do sonho e da imaginação.

Ao longo da história do pensamento humano, a teoria da

comunicação vem estudando os modos de se delimitar a fronteira entre

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Na ficção, é possível criar uma nova realidade, conforme nossos anseios e satisfazendo a nossas necessidades, mesmo que aparentes.

ficção e realidade98 − o que dá sentido ao problema é a camuflagem do limite entre representação e realidade.

Numa sociedade regida pelas imagens, a ilusão especular da

construção imagética ganha relevância e agrava o problema. Se

nenhuma imagem é o real, como transmitir o real? Se, mesmo na

realidade das imagens, há muita ficção, como transmitir confiabilidade,

com base na interferência da realidade ficcional?

A imagem comunica instantaneamente o complexo de emoções e

significados a ela conexos, num todo indiviso de significados e

sentimentos que não nos permite discernir e isolar o que nos serve.

É a linguagem99 que condiciona o homem, sua forma de agir e de se relacionar com o mundo e com os outros homens – enfim, com a

cultura, tomada em seu sentido mais amplo, como o ambiente construído

pelo homem e que o constrói segundo seus próprios códigos, que agem

sobre os corpos e delimitam seu campo de percepção.

O uso de instrumentos e ferramentas tecnológicas conduziu à

construção e à tentativa de se mostrar o real como ele é, o que acabou

produzindo uma simulação. Entretanto, essa simulação é reificada,

quando se a considera um referente único, ou seja, quando se a toma

pela própria realidade. Esse processo é o que Jean Baudrillard chamou

de hiper-real, um real mais real que o próprio real, posto que se trata de

uma amplificação da simulação que satura a realidade.

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Essa questão é extremamente discutida no filme Matrix e, posteriormente, por Zizek (2003) e outros estudiosos, no livro Matrix – Bem-vindo ao deserto do real (2003).

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A simulação tem características próprias e se assemelha à

imitação, constituindo com esta fenômenos de desvio da percepção:

[...] a imitação nada mais é do que um primeiro passo rumo à metamorfose. Uma forma de transição da imitação para a metamorfose que conscientemente se detém no meio do caminho é a simulação (Canetti, 1995: 370).

Os mecanismos utilizados na expressão da simulação têm

correlação com o avanço dos meios comunicacionais, em especial com o

uso da tecnologia para esse fim. Naturalmente, as formas tradicionais de

representação − as expressões corporal, verbal, escrita etc. − são empregadas em larga escala:

A partir do computador, a simulação se digitaliza, e, nos atuais termos tecnológicos, passamos da dominância analógica à digital, embora os dois campos estejam em contínua interface. Daí decorre a conformação atual da tecnocultura, uma cultura da simulação ou do fluxo, que faz da “representação apresentativa” uma nova forma de vida. Saber e sentir ingressam num não registro, que é o da possibilidade de sua exteriorização objetivante, de sua delegação a máquinas (Sodré, 2002: 17).

Assim como a ficção, um outro texto cultural elaborado pela

inventividade humana é o conceito de mercado.

Como toda criação social, também o mercado é uma relação comunicativa. Não é uma entidade autônoma, mas um ser de ficção, por assim dizer, inventado, alimentado pelas pessoas, pelas sociedades e pelas culturas que o criaram. Ora, se o mercado é uma relação ou uma rede complexa de relações comunicativas, será um exercício de pensamento mágico-mítico acreditar que ele em si possa regulamentar algo, já que sua intencionalidade reside na intencionalidade de seus participantes (Baitello, 2005: 77).

No entanto, como centros formadores de matrizes ideológicas

liberais, as grandes corporações elaboram e disseminam discursos e

interpretações que reforçam diariamente a ideologia segundo a qual cabe

ao mercado a resolução dos problemas de toda ordem. Esses discursos

e essas interpretações exercem um amplo e profundo efeito de

contaminação em todos os setores de produção cultural e ideológica.

Baitello (2005) resume muito precisa e oportunamente a gênese

constitutiva da função e do discurso do mercado. O entendimento e as

tentativas de elevá-lo à condição de ente dotado de vontade e

regulamentação própria são contraditórias com a presença dos

participantes e agentes. Como destaca Arbex Jr.:

Foi por meio desse efeito de contaminação que o discurso- para-o-mercado adquiriu hegemonia ideológica nos anos 1990. O mercado, por meio de instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outras, criou o discurso-para- o-mercado, diariamente reproduzido e multiplicado em escala internacional pelas fontes emissoras de notícia e entretenimento (Arbex Jr., 2001: 76).

Na década de 1990, esse discurso se assumiu como uma

proposição indiscutível e consolidada de um dado axiomático. Fredric

Jameson (2004) nota uma capitulação universal, ainda que quase

imperceptível, face ao discurso orientado para o mercado, que

desautoriza imediata e implacavelmente qualquer tentativa de formulação

alternativa.

As relações comunicativas que constituem o mercado exprimem

uma entidade criada pelo homem para dimensões ocupadas pelas

construções idílicas: “Dizendo de outra forma, o mercado tem o mesmo

status abstrato que deuses e demônios, criados pela imaginação do

homem e alimentados por seus hábitos culturais” (Baitello, 2005: 77).

Esse enredo mercadológico engendra a transformação das

relações sociais e comerciais, ganhando destaque uma nova visão de

mundo, baseada na valorização das imagens e em tudo o que elas

representam.