parte III − O boato e sua função no mercado financeiro
Capítulo 1 − As características dos boatos
1.1 O boato
Entendemos comunicação interpessoal como o conceito gerador
dos boatos, posto que implica a idéia de uma comunicação por interação,
contato ou intimidade.
Segundo Siegfried Hoyler, “do vasto campo das comunicações,
convém termos em mente, a fim de diagnosticá-las e, mais do que isso, a
fim de evitá-las, as comunicações malsãs ou patológicas120. Dentre elas, pontificam, pela freqüência – e não raro pela gravidade das
conseqüências –, os boatos” (Hoyler, 2002: 59).
Entendemos como boato a notícia que, embora nem sempre
corresponda à realidade, é de difícil comprovação e, além disso, de
grande interesse, o que determina sua intensa circulação entre as
pessoas.
Boato seria, enfim, o processo de comunicação oral caracterizado pela repetição de uma notícia que carrega um relato narrativo formal e um comentário pessoal e tendencioso e que será reproduzido de boca em boca, conforme a vontade e escolha do narrador (Caribe, 2007: 36).
Por outro lado, outra definição, que se utiliza da palavra “rumor”,
diz que:
120
O termo “patológico” é usado no sentido de desvio ou interrupção de uma comunicação adequada.
[...] rumores são ondas noticiosas disformes que circulam ao gosto das contribuições coletivas, segundo uma ética bem definida e uma estética muito desenhada, capaz de conter uma variada gama de produtores/fruidores (Iasbeck, 2001: 164).
Em conversas cotidianas, recebemos e transmitimos vasta lista de
boatos, nem sempre inofensivos. Chamaremos de boato ocioso aquele
que faz parte das falas ordinárias e cujo objetivo não é outro se não
trocar gentilezas com amigos ou conhecidos. Ao repassar um boato
ocioso, não se pretende mais do que se pretende com um simples “bom
dia, que bela manhã, não é verdade?”.
Contudo, a prática social que nada expressa em particular, salvo
vagos sentimentos de cortesia para com o interlocutor, substituindo um
incômodo e embaraçoso silêncio, é só uma das formas por que se
processa a troca de boatos.
Longe de ser ociosos, muitos boatos são rigorosamente
intencionais121. Apontam fins determinados e servem a importantes objetivos emocionais122. Nem o receptor, nem o transmissor saberiam dizer qual é a natureza exata desses fins, mas sabem que o boato lhes é
interessante − de alguma maneira, lhes convém. De forma até certo ponto misteriosa, parece acalmar-lhes uma incerteza intelectual e uma
ansiedade pessoal.
Reumaux (1999) comenta algumas variantes de boatos e, entre
seus possíveis sinônimos, adota a palavra “rumor”; quanto a “ruído”,
121
A intencionalidade é uma das principais características do boato financeiro, como veremos.
122
afirma o autor que foi a maneira pela qual “os letrados dos séculos XVII e
XVIII definiram o rumos” (1999: 28). Assim, boato, rumor e ruído seriam
equivalentes, e, neste estudo, se empregará preferencialmente a
primeira.
O boato pode disseminar histórias corriqueiras e sem qualquer
relevância, assim como pode obter grande repercussão e causar furor.
No percurso entre a partida e a chegada de um dito, existe outro
fator peculiar: o interesse pela divulgação de boatos ligados às próprias
pessoas a quem se os conta. Assim, a cada repetição, o boato ganha
mais força e poder de convencimento, pois cada um seleciona a seu
modo o quê e para quem o transmite. As características comuns a todos
os boatos são a propagação pessoa a pessoa e sua assombrosa
velocidade de circulação.
A classificação de Reumaux (1999: 18) postula ainda dois
elementos que compõem o boato, o relato da “notícia” exposta num
contexto e a narração ou o comentário pessoal que o relato suscita no
momento em que é reproduzido. É este segundo elemento que permite a
introdução de um relato-notícia em que se propaga um boato − a colocação simultânea de um relato e de uma narrativa problematiza a
questão de se chegar ao esclarecimento de uma possível verdade.
Acrescentemos também o boato eletrônico, aquele que se propaga
pela rede mundial de computadores, a internet. Os boatos midiatizados
incluem todos os que se veiculam em meios de comunicação impressos,
Por tratar dos boatos transmitidos pela mídia é que escolhemos,
além da observação em campo, estudar alguns registrados
jornalisticamente pela imprensa em meios de comunicação social. São
boatos noticiados nas partes especializadas dos jornais. É o estudo do
boato e de sua repercussão no mercado financeiro.
Os boatos são muito variados. Às vezes, dão um certo colorido a
uma conversa ociosa; outras, desencadeiam torrentes de violência. Às
vezes, circulam em âmbito restrito; outras vezes, entre milhões de
pessoas. Às vezes, surgem e logo se desgastam; outras, desafiam o
tempo, cristalizando-se em lendas imorredouras. Quer seja, porém, fugaz
ou duradouro, limitado ou abrangente, o fato é que o boato, como
fenômeno essencialmente social, existe em qualquer cultura123.
Os imperadores da antiga Roma reconheciam a importância dos
boatos a ponto de nomear “delatores” cuja missão era se misturar com a
“gente da rua” e levar ao palácio imperial a voz do povo. As histórias do
dia eram tidas como excelente barômetro dos sentimentos populares. A
qualquer momento, os delatores podiam lançar uma contra-ofensiva de
boatos, para atender aos objetivos dos imperadores. Vê-se que a guerra
psicológica não é tão nova assim!
O episódio do incêndio de Roma, no ano de 64 de nossa era,
proporciona-nos um exemplo interessante. Segundo análises das provas
históricas, a plebe admitiu e difundiu o boato de que Nero, soberano
123
Ele expressa uma forma de comunicação presente em todas as civilizações e pode ser considerado “a mais antiga mídia do mundo”, de acordo com Kapferer (1993).
certamente não muito popular, se não tinha dado início ao incêndio, tinha
pelo menos cometido a aberração bárbara de se deleitar com ele,
compondo uma ode às chamas devoradoras. De nada valia a Nero o fato
de que o boato fosse infundado. Em sua defesa, lançou mão do
contraboato, fazendo circular a notícia de que os cristãos, talvez ainda
mais aborrecidos do que ele, é que tinham ateado fogo à cidade.
O boato levou Sócrates à morte, acusado de perverter os jovens
de Atenas e incitá-los à rebelião. Durante a Idade Média, as guerras
religiosas − as cruzadas − eram sustentadas por relatos exagerados de milagres, feitiçarias, pilhagens e boatos.
A comoção ocasionada por um boato às vezes é tanta, que o descontrole acerca da situação informacional de um povo pode atingir estágios irreversíveis de alcance. Isso se dá porque o boato é um processo diferente de reação e pertenceria ainda ao mundo do imaginário verbal (Reumaux, 1999: 26).
As situações de guerra apresentam excelentes condições para a
disseminação de boatos124 (Allport, 1948). A natural reserva das autoridades em revelar planos táticos e estratégicos, a dúvida
generalizada sobre os números e fatos apresentados pela imprensa, o
natural estado de excitação de toda a população, sua maior integração,
em face de perigo iminente, a infiltração inimiga e muitos outros fatores
fazem das situações de guerra ocasiões propícias ao surgimento e ao
desenvolvimento de boatos.
124
O início do estudo sistematizado do boato nos EUA se fez sobre os campos da II Guerra Mundial (Allport e Postman, 1948).