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4. Notas sobre a literatura policial no Brasil

4.4. A ficção policial, convenção terrível, perversa, compulsiva

Em um artigo publicado em junho de 1941, Otto Maria Carpeaux transcreveu uma frase que encontrou na capa de um livro de Edgar Wallace (1875-1932), talvez o mais fértil escritor inglês, tendo publicado centenas de livros, roteiros de filmes, contos, peças teatrais etc. Ela dizia:

“Os romances policiais são lidos por ministros e banqueiros, por professores de medicina e mestres-escola, por anciões e costureirinhas, por homens e mulheres de toda classe.”

Carpeaux avaliou que o editor de Wallace “disse[ra] uma verdade”, admitindo que o romance policial era mesmo “uma força”; não uma força “artística” ou “moralizadora”, mas uma “força econômica.” Depois de imaginar toda a cadeia produtiva do romance policial (autor, editor, leitor, datilógrafos, máquinas, escritórios), comparou esse “ramo da economia nacional [...] à fabricação de meias de seda ou dos medicamentos antigripais.” A essas afirmações, diz o ensaísta,

“Podemos acrescentar-lhes o caso de Aristides Briand, que lia apaixonadamente durante toda a sua vida um único romance policial, sempre o mesmo, porque quando terminava a leitura, havia esquecido o começo; e poderíamos ajuntar também o caso de Paul Erlich, que, excetuando-se as revistas e os livros médicos, lia somente romances policiais. Tais fatos nos poupam, a nós pobres mortais, confissões desagradáveis.”375

Alcance penetrante, indústria (da cultura) lucrativa e sucesso comercial da ficção policial, que, diferentemente das meias de seda e dos antigripais, envergonha e produz remorso nos adeptos da dita “alta cultura.” Eis uma das definições daquilo que os especialistas chamam de subliteratura, literatura trivial, de mercado, de entretenimento, paraliteratura ou, finalmente, literatura de massa, associada à indústria cultural que nasceu e se consolidou entre fins do século XIX e a primeira metade do século XX.376

Não é raro encontrar comentários assemelhados a este escrito por Otto Maria Carpeaux, que atestam ao mesmo tempo a popularidade da ficção policial e algum sentimento de culpa por ler (em geral avidamente) esse tipo de (sub)literatura: “Não é sempre, mas [...] gosto de ler novelas policiais, confesso;”377 ou “para esses que viviam

sobressaltados, [...] trazemos consolo. Voltamos a ser intelectuais. Ler romances policiais não é [mais considerado um] sintoma de fraqueza mental [...] ou de analfabetismo.”378

Esse posicionamento da intelectualidade precisa ser avaliado de maneira mais aprofundada. Por ora, iremos apenas dizer que dele decorrem duas importantes implicações: o descaso (acadêmico) diante desse tipo de narrativa e a falta de interesse e entendimento de uma parte significativa da experiência cultural, afetiva e intelectual de homens e mulheres que viveram no século XX.

375 CARPEAUX, Otto Maria. “Filosofia do romance policial”. O Estado de S. Paulo. 22 jun. 1941. p. 4. 376 As reflexões sobre o tema são diversas como em ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo:

Perspectiva, 2001; SODRÉ, Muniz. Teoria da literatura de massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978; PAES, José Paulo. “Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: O mordomo não é o único culpado)”. In: A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 25-38; REIMÃO, Sandra. Mercado editorial brasileiro: 1960-1990. São Paulo: ComArte/Fapesp, 1996.

377 MARTINS, Luís. “O romance policial”. O Estado de S. Paulo. 16 nov. 1948. p. 9. 378 SHAW, Paul Vanorden. “O romance policial”. O Estado de S. Paulo. 19 set. 1947. p. 16.

Para tratar da primeira implicação, devemos voltar ao nosso ponto de partida – O mistério. É provável que a avaliação apressada da obra possa ter derivado desse menosprezo diante de seu aspecto prosaico e inexpressivo. Talvez a crítica tenha reconhecido a ausência de herdeiros de O mistério e, portanto, a virtual impossibilidade de montar uma cronologia satisfatória partindo dessa obra, se analisada com vagar. Ou, ainda, a análise pode ter se mostrado simplória demais, maçante até: diante da presença de elementos básicos da fórmula da ficção policial, abrevia-se a análise alargando a definição do gênero, de maneira que a obra passe a integrar o cânone, ainda que de forma canhestra. Afinal, essa última é a operação com que os estudiosos da cultura invariavelmente se deparam ao enfrentar o dilema da cópia cultural pelo viés de Silvio Romero.379 É, também, uma acomodação daquela “cordialidade oficializada” de que

lembrou Luiz Costa Lima, que nos torna avessos a buscar discrepâncias e alternativas em relação ao modelo (teórico) preliminar e importado porque o horror à realidade local nos enclausura em uma torre de marfim.380

Entretanto, ainda que se admita que essas razões sejam procedentes, a justificativa pode ser mais produtiva se tentarmos sair da armadilha teórica por meio de uma alternativa metodológica.

Parece haver uma tendência da crítica em reiterar o papel inovador da literatura – Franco Moretti fala em “‘ousadia’ retórica” –, tendo em vista sua potencialidade em “derrubar as relações de poder da ordem simbólica;” a crítica tende também a desprestigiar a retórica não audaciosa, que instaura o consenso por meio da convenção.381 (Sintomaticamente, uma outra designação dada à literatura de massa é literatura convencional, que se constrói com base em fórmulas dadas de antemão.382) No dizer de Moretti, o conceito de convenção

“é [...] fundamental porque indica quando uma forma assumiu uma raiz social definitiva, penetrando na vida cotidiana, animando-a e organizando-a de maneira cada vez mais imperceptível e regular – e, portanto mais eficaz. Mas, ao mesmo

379 Conforme análise de SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: Que horas são? Ensaios. São

Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 29-48.

380 LIMA, Luiz Costa. “Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil” In: Dispersa demanda.

Ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p. 10 e seguintes.

381 Franco Moretti utiliza o conceito de retórica enfatizando seu caráter social, como fundadora de valor:

“A retórica tem um caráter social, emotivo, partidário, em suma, um caráter avaliador. Persuadir é o contrário de convencer. A meta não é determinar uma verdade intersubjetiva, mas obter apoio para um sistema específico de valores”. In: MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade: ensaio sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 16. Grifos do autor.

382 CAWELTI, John G. Op. cit. (1976). Ao longo do livro, Cawelti utiliza o termo formulaic literature

como conceito principal e controlador da sua exposição, mas também usa as palavras conventional

tempo, é um conceito que reforça uma dura desilusão, porque despe a existência histórica de sua abertura à mudança, e a forma estética de sua pureza original.”383 Nessa passagem, Franco Moretti não se refere apenas à literatura de massa, mas vale a pena lembrar que essa regularidade (quase) imperceptível dos produtos culturais é um tema caro à história cultural do século XX em diante, e impõe questões metodológicas relevantes, debatidas pelo mesmo Franco Moretti na obra A literatura vista de longe e por Krzysztof Pomian, como decorrência das reflexões elaboradas por Fernand Braudel.384 No mais, Moretti critica a história literária – que em geral manteve-se puramente évenementielle, diz o autor –, cuja pesquisa empírica contribuiu apenas para identificar em quais aspectos as obras-primas fogem da norma (ou gênero), e não como elas instauraram estabilidade histórica: “Será que O aprendizado de Wilhelm Meister ‘desfamiliariza’ as convenções do Bildungsroman? [ou] com este romance, Goethe as descobre e torna-as reproduzíveis?”385 Essa posição “subalterna e marginal” do gênero

deriva da insistência da crítica em evitar o conceito de convenção. Para ele, tratar dos gêneros literários

“Significa redirecionar as tarefas da historiografia literária e a imagem da própria literatura, encerrando ambas na ideia de consenso, estabilidade, repetição e até de mau gosto. Significa, em outras palavras, transformar o maior dos paraísos – o paraíso da ‘beleza’ – numa instituição social como as outras.”386

Então, para avaliar O mistério e seus assemelhados com mais acuidade, teria sido necessário resignar-se diante do inferno do feio, do repetitivo e enfadonho e do clichê medíocre, e encontrar neles significados nada banais, que podem ser surpreendentes mesmo. O resultado dessa reavaliação de sentido, como afirma Moretti, não é de todo previsível. Mas podemos admitir desde já que, em nosso caso particular, ela levaria ao menos à alteração dos marcos da história da ficção policial de matriz brasileira consagrados pela crítica nacional.

Para precisar melhor e viabilizar a guinada teórica delineada por Franco Moretti, ele propõe que os críticos concentrem sua atenção “em algumas ‘dominantes’ retóricas principais,”387 como a decifração de pistas ou o desenlace elucidativo da ficção policial,

383 MORETTI, Franco. Op. cit. (2007), p. 25.

384 MORETTI, Franco. A literatura vista de longe. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2008. p. 29 e

seguintes; POMIAN, Krzysztof. “A história das estruturas”. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 97-123; BRAUDEL, Fernand. “A longa duração”. In: _____. História e

ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1982. p. 7-39. 385 MORETTI, Franco. Op. cit. (2007). p.27.

386 Id., ib., p.26. 387 Id., ib., p.30.

e as articule a fenômenos extraliterários, como, por exemplo, a decifração de pistas e a popularização da ciência na Europa ocidental a partir da segunda metade do século XIX. O resultado dessa operação não seria, como amiúde se proclama, a afirmativa “verdadeira, mas banal” de que a atuação do detetive é resultado da popularização da ciência; mas que essas dominantes retóricas pressupõem, como hipótese a ser verificada,

“que a ‘ciência’ se identifica com uma ideologia organicista baseada no ‘bom senso’ de que as diferenças de status não podem ser alteradas; que o fim do romance policial esboça uma imagem de temporalidade na qual a ‘ciência’, em vez de ser uma atividade que exija algum tipo de ‘avanço’, desempenha um papel estabilizador, garantindo a imutabilidade de uma dada ordem social ou, pelo menos, reduzindo suas mudanças a um mínimo.”388

Caberia, então, à pesquisa empírica responder a esse tipo de provocação. O próprio Franco Moretti empreendeu tal esforço no artigo “Pistas”, publicado originalmente em 1978 como introdução a um volume sobre a ficção policial clássica.389

Se essas afirmativas ajudam a justificar que uma avaliação mais cuidadosa da literatura convencional pode nos ajudar a entender melhor um determinado fenômeno cultural e as pessoas nele envolvidas, todavia é preciso ir mais além. Para voltar, pela última vez, a O mistério, sabemos que seria necessário readequar tanto as dominantes retóricas principais (uma vez que não há desenlace elucidativo, mas cômico) quanto o fenômeno extraliterário (já que o processo de modernização nacional é desajeitado, para dizer o mínimo) e repensar a hipótese a ser verificada. De todo modo, a provocação é instigante.

Mais do que uma atitude condescendente dirigida a esse tipo de narrativa de consumo rápido, é preciso lembrar que a maior parte das obras de ficção produzidas e consumidas foram esquecidas, permanecem empoeiradas em estantes ou simplesmente não foram conservadas e desapareceram. Em uma palavra, entraram em extinção.390 O campo literário tomou forma com base em reduzidíssima quantidade de obras que se adaptaram e deixaram descendentes, e foram transformadas em narrativas canônicas. Embora possuam importância decisiva na história literária e das sociedades, essas obras modelares exibem apenas uma parcela da experiência humana com a ficção. É evidente que voltar o olhar à narrativa ligeira não significa invalidar essa tradição crítica, mas

388 Id., ib., p. 35. Grifo do autor.

389 Id., ib., p. 155-184. Moretti também indicou caminhos possíveis em “The Slaughterhouse of Literature”.

In: Modern Language Quarterly, vol. 61, n. 1, mar. 2000. p. 207-227 e “A Tale of Two Cities”. In: _____.

Atlas of the European Novel: 1800-1900. Londres: Verso, 1998. p. 75-140. 390 Cf. as reflexões de Franco Moretti em Id. Op. cit. (2008). p. 117-122.

desvelar aspectos desse complexo sistema coletivo composto de histórias que, hoje, podemos julgar chatas, cafonas e mesmo ilegíveis.