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Medeiros e Albuquerque, um dos autores de O mistério, foi um entusiasta da ficção policial. Como vimos, com o pseudônimo “&”, ele assinou nove dos 47 capítulos do livro, incluindo o de número um, “que serviu apenas para tirar a fieira...” e incentivar os amigos a completar o enredo.443 Ele persistiu na empreitada mais algumas vezes, descrevendo crimes ocorridos em “Implacável” e “Crime impunido” e com os contos “O assassinato do general” e “Se eu fosse Sherlock Holmes,”444 mais próximos da fórmula

típica das narrativas policiais canônicas.

Além dele, encontramos os volumes de João de Minas, Armando Caiuby, Frank Arnaud ou Marcos Spinelli, que escreveram histórias que se passam em cidades brasileiras.445 Doryol Taborda assinou com seu nome de batismo dois volumes de ficção policial editados em 1940. Hildebrando de Lima, sob o pseudônimo de Jack Hall446, escreveu três romances policiais e o já citado Jeronymo Monteiro, que escreveu romances protagonizados por um detetive que teve longa vida no rádio. Os três narraram histórias ambientadas em outros países, com protagonistas assemelhados a Sherlock Holmes, Hercule Poirot, o célebre detetive criado por Agatha Christie, e, no caso de Monteiro, com pitadas de Samuel Spade, protagonista de diversos livros escritos por Dashiell Hammett. Dificilmente saberemos se outros escritores brasileiros fizeram o mesmo, escondendo o nome verdadeiro para dar maior verossimilhança à história (Joe Jordan narrando um conto policial “de ambiente paulistano”447 não soa muito “real”) ou se o pseudônimo ajudava esses autores a evitar maiores constrangimentos.448 A literatura policial é lida, em geral não é relida, e seu papel barato e de baixa qualidade desmancha- se no tempo e na lembrança do leitor (e infelizmente também dos nossos acervos).

443 ALBUQUERQUE, Paulo Medeiros de. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1979. p. 205.

444 Os três primeiros contos citados estão em MEDEIROS E ALBUQUERQUE, J.J.C.C. O assassinato do general. Rio de Janeiro: Benjamin Costallat & Micolis, 1926 e o último em id. Se eu fosse Sherlock Holmes.

Rio de Janeiro: Guanabara, s/d. (1932?).

445 Verificar as referências bibliográficas para essas obras a seguir, na seção “Fontes”.

446 SANT’ANA, Moacir Medeiros de. Hildebrando de Lima e o romance policial brasileiro. Catálogo da

exposição biobibliográfica, realizada pelo Arquivo Público de Alagoas, 5-9 nov. 1984. Maceió: Arquivo Público de Alagoas, 1984. p. 3 e seguintes.

447 Descrição do Suplemento em Rotogravura de O Estado de S. Paulo. 5 set. 1936. p. 10.

448 Conforme comentários a respeito de Hildebrando de Lima elaborados por SANT’ANA, Moacir

Medeiros de. Op. cit., p. 3 e seguintes e sobre Pagu escritos por FERRAZ, Geraldo Galvão. “A pulp fiction de Patrícia Galvão”. In: GALVÃO, Patrícia (Pagu) como King Shelter. Safra macabra: contos policiais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. p. 3-4.

Além dos livros, revistas de baixo preço também eram objeto dos olhares atentos de gente que gostava de narrativas cheias mistério. Caius Martius (pseudônimo de Cláudio de Mendonça) produziu mais de cinquenta contos para a revista Vida Policial (1925-1927). No seu conjunto, esses contos constituem um material rico que precisa ser avaliado com mais vagar por pesquisadores.

A Vida Policial era certamente séria demais para meninos que ainda aprendiam a ler. Para eles, havia a alternativa da revista Detetive, inspirada no modelo francês, que chegava às bancas quinzenalmente.449 Talvez estes meninos gostassem dos contos policiais que haviam sido escritos por King Shelter, pseudônimo de Patrícia Galvão, a Pagu. Além da Detetive, uma profusão de revistas vendidas a mil-réis invadiram as bancas, publicando mensalmente uma centena de traduções de contos e romances curtos para o português, e também “contos policiais brasileiros.”450 As revistas mais “sérias”

(leia-se, mais “caras”) parecem não ter conseguido ficar de fora desse movimento, e também traduziam contos ou romances policiais, seriados ou não.451

A revista Sherlock, em especial, promoveu um concurso com seus leitores, e premiou e publicou diversos contos policiais ambientados no Brasil. Como vencedores ou destaques deste concurso, vemos dois nomes relativamente reconhecidos nos meios jornalísticos como o de Amador Cysneiros e de Edgar de Carvalho, mas também de pessoas que eram apenas leitores aficionados e escritores em potencial, cujas biografias se perderam com o passar do tempo.452

Questões de gosto à parte, estas são histórias que tentaram, com maior ou menor sucesso, levar a sério a fórmula típica das narrativas policiais, e que não perdiam verossimilhança porque o tiro “atroou os ares calmos” do “coração de São Paulo” e não de Londres ou Nova York.453 Embora essas obras não tenham sido analisadas para esta

449 Dados sobre a revista Detetive extraídos de pesquisa realizada pela autora no jornal O Estado de S. Paulo, no acervo da Biblioteca Nacional e com base no artigo de CARDOSO, Athos Eichler Cardoso. “As

revistas de emoção no Brasil (1934-1949): o último lance da invasão cultural americana”. In: Anais do

XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, 2009. Disponível em

http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-1833-2.pdf. Acesso em 1 jul. 2016. A revista francesa deve ter chegado ao Brasil por volta de meados dos anos 1930; a versão brasileira nasceu em 1936 e circulou ao menos até 1963.

450 Dados sobre peças e revistas retirados de pesquisa realizada pela autora nos jornais O Estado de São Paulo, Folha da Manhã e Folha da Noite, entre os anos de 1920 e 1960. Em especial, a revista Sherlock e

a X-9 publicaram contos “brasileiros”.

451 Ver, por exemplo, “A peruca rubra”. Vamos ler. 6 set. 1947. p. 16-21. A revista possuía uma seção

intitulada “O club do crime” em que publicava traduções de contos policiais.

452 Conforme os números 1 a 9 da revista Sherlock. São Paulo/Santos, 1937.

pesquisa, eles ampliam um pouco a lista de obras que conformam a nossa incipiente “tradição nacional” de histórias policiais (e o campo de pesquisa...).

Como vimos, apesar destas evidências, uma parte da crítica nacional insistiu na ideia de que em um país como o Brasil seria inviável criar uma tradição literária policial. Até Jeronymo Monteiro afirmou “não haver no Brasil tensão e atmosfera para o desenvolvimento de uma estória policial.”454 Nesse mesmo tom, Luís Martins perguntava-se, em 1948 e, novamente em 1953 e em 1954, por que o gênero policial não florescera no Brasil. Encontrou resposta na ideia de que “a novela policial só pode medrar em países de tendências fundamentalmente democráticas,” onde existam “instituições políticas e jurídicas [que] se baseiam em normas essencialmente democráticas.”455 Suas

ideias encontravam ressonância na imprensa do Rio de Janeiro em um artigo de jornal escrito por Valdemar Cavalcanti, em uma nota escrita por Túlio Montenegro no Jornal de Letras, e antes deles, em Howard Haycraft, crítico norte-americano.456

Para eles, o problema era de verossimilhança: no Brasil, em uma história policial, “haveria, quando muito, uma trágica descrição de espancamentos, interrogatórios, torturas físicas e notícias berrantes nos jornais de escândalo.” E segue: “A polícia começaria prendendo todos os suspeitos. E o romance acabaria na terceira página.”457 Luís Martins conhecia e gostava muito dos contos de Luiz Lopes Coelho, o que por si só poderia invalidar a sua hipótese.458 Mesmo assim, a constatação é de fundo, parece ter confirmação histórica, possui argumentos fortes e empenho crítico, e merece ser investigada por pesquisadores.

454 Assim lembrado por REY, Marcos (pseud. Edmundo Donato). “Vicissitudes do gênero policial no

Brasil”. O Estado de S. Paulo. 25 jul.1982. p.177.

455 MARTINS, Luís. “Introdução” In: Id. (ed.). Obras-primas do conto policial. São Paulo: Martins, 1954.

p. 10 e 7, respectivamente; id. “Romance policial (Uma teoria possível). O Estado de São Paulo. 16.nov.1948, página ilegível. id. “O mundo do crime”. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 19 fev. 1953. p. 6.

456 Não encontramos os artigos de Cavalcanti nem de Montenegro, mas o livro de Haycraft está disponível

para leitura em versão eletrônica. HAYCRAFT, Howard. Murder for Pleasure: The Life and Times of the Detective Story. Nova York: Appleton-Century, 1941. e-book. Ver especialmente o capítulo 15, intitulado “Dictators, Democrats, and Detectives”.

457 MARTINS, Luís. Op. cit. (1954), p. 9. Algo semelhante é dito por Frederico Branco ao resenhar A morte no envelope: “o tal dr. Leite e suas deduções podem ser desde já enterrados, pois ainda que sejam

verossímeis em Baker Street e circunvizinhanças, são inconvenientes na Brigadeiro Tobias, onde a borracha suplanta, com vantagem tamanha, o raciocínio...” BRANCO, Frederico. “A morte no envelope.” O Estado

de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 1957. s/p.

458 Luís Martins e Luiz Lopes Coelho eram amigos. Martins sabia que Coelho vinha fazendo incursões pelo

gênero policial, escrevendo histórias policiais “brasileiras”, e incluiu o conto “Ninguém mais se perderá por Luba”, de autoria de Coelho, na antologia de contos policiais que ele organizou. Cf. MARTINS, Luís.

Como vimos, no entanto, no Brasil o livro não foi a primeira via de acesso às narrativas policiais, nem a mais popular. Gênero resiliente, a ficção policial se espalhou por outras mídias, enchendo os olhos e os ouvidos de quem gostava de uma boa história de mistério.

Para além da letra impressa em papel, a ficção policial atingiu grande número de espectadores por meio dos filmes exibidos nos cinemas das maiores cidades brasileiras. Os filmes, sobretudo os que vinham dos Estados Unidos, desde os anos 1910, invadiram as telas com seus detetives e criminosos, acostumando o espectador, mais do que qualquer outra mídia da época, à narrativa própria e convencional da ficção policial.459 Ao menos desde 1920, artistas encenavam nos palcos textos escritos por autores bissextos ou desconhecidos, muitos deles inacessíveis ao pesquisador atual, que tinham como tema assuntos ou dramas policiais. Não sabemos se elas eram protagonizadas por detetives que permaneceram anônimos em nossa memória, mas sabemos que, em meados dos anos 1930, surgiram companhias de teatro especializadas no gênero policial que encenavam peças com direito a crime, investigação e desenlace surpreendente.460 Algumas dessas peças, como as de José Grillo ou de Antonio Peixoto, foram preservadas e estão disponíveis em nossos acervos. O cinema e o teatro não estavam no escopo da nossa pesquisa, mas eles tiveram papel fundamental na difusão da narrativa convencional e formular da ficção policial.

No rádio, além de Jeronymo Monteiro, Aníbal Costa e Heloisa Lentz de Almeida, Berliet Júnior, Hélio do Soveral e Jorge Marinho criaram esquetes originais ou adaptações livres de narrativas canônicas. Vimos que essas narrativas se transformaram em peças de radioteatro muito populares, algumas delas com direito a resenha semanal na revista especializada Cine-Rádio Jornal. Infelizmente, poucos trechos gravados desses programas estão disponíveis ao pesquisador atual. Mas os fragmentos que chegaram até nós são “audíveis”, seja porque foram preservados em nossos acervos como por sua capacidade de, ainda hoje, divertir e permitir o ouvinte desfrutar o mistério e o suspense.

Por isso, o acesso às peças de radioteatro foi realizado quase exclusivamente por meio do estímulo visual, com a leitura dos originais preservados pelo DIP. A análise destas peças nos demonstrou que a linguagem radiofônica exigia dos autores alguma

459 Ver a segunda parte da tese de FREIRE, Rafael de Luna Freire. Carnaval, mistério e gangsters: o filme

policial no Brasil (1915-1951). Tese de Doutorado – UFF-RJ, Rio de Janeiro, 2011. p. 140 e seguintes.

460 Ver, por exemplo, O Correio Paulistano, 12 ago. 1938. p. 6, que, em nota, menciona uma peça policial

readequação em relação ao sistema formular da ficção policial, que eles conheciam (ou apenas intuíam, naqueles anos de 1930) a partir da leitura de livros e revistas e dos filmes. O tempo limitado de irradiação dos programas associado ao elenco e ao orçamento restritos obrigaram-nos a criar adaptações ou histórias escritas especialmente para o rádio com um número pequeno de personagens, cenas e diálogos. Além disso, era preciso cuidar para que os silêncios fossem significativos – que eles dissessem alguma coisa – e que as cenas fossem especialmente dinâmicas. A documentação utiliza o termo “profusão de movimento,” mas, sabemos, não se tratava apenas de um deslocamento espacial de personagens e objetos no palco acústico, mas de dinamismo sonoro: sons ativos e expressivos, como os “sons da noite” em meio ao “silêncio da noite” de Heloisa Lentz de Almeida ou os múltiplos diálogos no parque de diversões de Aníbal Costa.

Das peças de radioteatro policial emergiram de maneira cristalina os elementos centrais do sistema formular da ficção policial. Heloisa não podia perder três minutos para recriar uma descrição de Watson sobre o frio que fazia lá fora ou sobre a aparência penosa da vítima injustiçada. Por razões óbvias, Aníbal Costa não fez supressões como Heloisa, mas ele cuidou para que os sons, os ruídos e os diálogos que ele previu em suas peças fossem fontes de informação ao ouvinte (e ao detetive) para desvendar um mistério. Ele, por exemplo, precisava da arruaça do baile de carnaval para dizer ao ouvinte que o dominó assassinado não podia ser reconhecido pelos amigos sentados na mesa ao lado. Uma arruaça que só pode ser reconhecida por meio de sons é de simples recriação no rádio, logo não se perde tempo com o ruído incidental. Pelo contrário. Ganha-se tempo ao suprimir um eventual narrador explicando que começaram as marchinhas e o salão todo se levantou para dançar e cantar ao som de Grau dez, de Lamartine Babo.

Como vimos, a ficção policial tende à estrutura relativamente rígida e ao conto.461 No radioteatro policial, com algumas variações mais ou menos bem-sucedidas, tanto a estrutura quanto o mundo fechado da história policial são levados às últimas consequências (digamos que o conto policial é reduzido à peça radiofônica policial), sem, no entanto, aparentar rigidez, especialmente nos casos em que os sons, ruídos e silêncios são empregados com habilidade. Por estas características, pudemos considerar que o radioteatro policial contribuiu para que se criasse uma tradição nacional de autores de ficção policial livre das “amarras” do melodrama e do romance de costumes, assumindo um formato cada vez mais próximo do seu sistema formular típico.