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2. LITERATURA, CASO DE POLÍCIA (1942-1944)

2.1 RELAÇÕES COM O ESTADO NOVO E SUSPEITAS DO DOPS ‘Asseguraram me que o senhor é comunista’.

2.2.1 A ficha de Erico Veríssimo no FBI: O resto é silêncio

Propaganda Anti-americana aparece no mais recente romance do sujeito, ‘O resto é silêncio’. (...) Propaganda declarando o mal do Pan- Americanismo é atualmente objeto de acalorada discussão em Porto Alegre e região. (...) Opiniões expressas não são consideradas as do autor, mas meramente de personagem ficcional.55

FBI, arquivo 40-10. Capa da investigação, 17/05/1943.

Nos anos 1940 Erico Veríssimo esteve numa posição singular de relacionamento com os governos vigentes, tanto em seu país quanto no vizinho norte-americano. Crítico do Estado Novo, escrevia romances situados na sua contemporaneidade e que falavam da realidade brasileira, dentro da vertente do “romance social”. Ao mesmo tempo em que recebia prêmios literários do governo, era chamado ao DOPS para esclarecimentos sobre sua posição política. Pacifista e relator bem- humorado da Política de Boa Vizinhança, como vimos, foi convidado pelo Department of State em 1941 para conhecer o país dentro dos esforços de aproximação entre os futuros aliados. O fruto da viagem foi a publicação brasileira de seus olhares sobre a realidade social, desta vez estadunidense. Dois anos depois ele iria para a Universidade da Califórnia lecionar sobre literatura brasileira (e sobre o Brasil). A hipótese que isto suscitou para nós, no âmbito desta pesquisa, foi a de que não teriam passado despercebidas aos olhares oficiais essas andanças culturais do escritor. Andanças geográficas, entre Brasil e Estados Unidos, e políticas, circulando sobre terreno paradigmático para ambas as nações, já que acabavam naturalmente por levantar questões: o que é o Brasil? Quais seus problemas? E os dos Estados Unidos? As palavras de Veríssimo, públicas, encontravam-se justamente dentro do diálogo entre os países; o autor desempenhava um papel de intérprete cultural, e num momento bastante especial – quando Brasil e Estados

                                                                                                               

55 “SYNOPSIS: Anti-American propaganda appearing in subject’s recent novel

‘O resto é silêncio’. (...) Said propaganda decrying the evils of Pan Americanism presently subject of heated discussion in and around Porto Alegre. (...)Opinions expressed not believed to be those of author, but merely those of fictional character.” (As traduções de trechos dos documentos do FBI serão de

Unidos estavam sendo enfaticamente “apresentados” um ao outro através de novas lentes, e incentivados a darem-se as mãos. Se a polícia política de Vargas quis informar-se melhor sobre as ideologias que orientavam esse formador de opinião, pudemos imaginar que para o governo dos Estados Unidos alguma atividade análoga pudesse ter acontecido.

Em setembro de 2010 foi requisitado ao FBI, no âmbito da presente pesquisa, a ficha de Erico Veríssimo, sem saber-se ao certo se esta existia. Por meio do Freedom of Information Act (FOIA), o processo foi relativamente simples – bastou o envio postal de uma cópia da certidão de óbito do romancista anexada ao formulário padrão de solicitações. Nove meses depois, em junho de 2011, nossa hipótese se confirmou: recebemos, no Departamento de História da UFSC, um envelope contendo 34 páginas das investigações sobre Erico Veríssimo feitas pela polícia de Franklin D. Roosevelt. (Vide anexo VII).

As investigações sobre Erico Veríssimo por parte do FBI aconteceram entre maio de 1943 e agosto de 1944, e depois de maneira mais pontual em janeiro de 1952 e novamente em julho de 1953. Estes períodos correspondem aos dois momentos em que Veríssimo foi aos Estados Unidos para trabalhar, primeiro lecionando literatura brasileira na Universidade de Berkeley, Califórnia (1943-1946), e depois na direção da Departamento de Assuntos Culturais da União Pan- Americana, na Secretaria da Organização dos Estados Americanos, em Washington (1953-1956). No total, as investigações geraram 45 páginas, das quais apenas 34 foram liberadas para esta pesquisa após análise da CIA (Central Intelligence Agency)56. Destas 34, finalmente 27 são legíveis ou não estão censuradas com tarjas brancas, faixas colocadas sobre palavras ou frases para que assim não apareçam nas cópia feitas. A parte do material que interessa aqui é aquela referente à primeira investigação, já que o recorte da pesquisa exclui a década de 1950 por se tratar de uma conjuntura muito diferente nos Estados Unidos, no Brasil e nas relações entre ambos. Felizmente, a maior parte das páginas ilegíveis são referentes à investigação de 1953, além de se poder deduzir que trata-se meramente da cópia dos arquivos de 1943.

                                                                                                               

56 A agência foi criada apenas em1947, a partir da inteligência da Segunda Guerra. É interessante o mero fato de que a CIA, no ano de 2011, julgou necessário manter ainda confidenciais certas páginas sobre o caso de Veríssimo de quase setenta anos atrás.

Os documentos sobre Veríssimo são classificados no cabeçalho ora como “Brasil – propaganda”, ora como “Atividades subversivas” ou “Atividades comunistas”, sendo que as duas últimas categorias são usadas como sinônimos, já que aparecem como títulos de textos que são idênticos, simplesmente copiados e encaminhados. Para cada arquivo, há um código alfanumérico, sendo que os primeiros dois números designam o caráter da investigação. O número do arquivo de Veríssimo é “64-HQ-24153”. “64” é o código para casos do que a listagem do FBI chama “foreign miscellaneous”. O caso, portanto, não é nem tão grave como um de código “65”, que representaria “espionage”, e nem tão inofensivo como um caso identificado com o código “63”, que seria sobre “miscellaneous – non-subversive”.57

A documentação consiste principalmente de correspondências entre os agentes e a direção do FBI, além de um encaminhamento das conclusões para o Office of the Coordinator of Interamerican Affairs, uma ficha da Imigração e um telegrama endereçado ao próprio Veríssimo que foi confiscado pelo Office of Censorship. Diferentemente do caso de Paulo Rizzo, em que as cartas eram endereçadas simplesmente a “FBI, diretor”, nessa investigação boa parte da correspondência possui destinatário nominal: ou de um agente codificado para J. Edgar Hoover, ou de J. Edgar Hoover para Nelson Rockefeller (e outros), ou define-se como memorando geral para a polícia. Essa correspondência direta entre Hoover e Rockefeller é especialmente interessante, já que revela uma relação próxima entre o chefe de polícia e o responsável pelas relações culturais inter-americanas. Rockefeller foi em grande medida o representante oficial da Política de Boa Vizinhança no campo cultural, como vimos, promovendo viagens como a de Veríssimo, apoiando produções da Disney para a América Latina, entre muitas outras ações. É relevante, portanto, esse documento que mostra como tal braço da boa vizinhança estava sendo informado pela polícia política.

Cada folha do dossiê que nos foi enviado, além de conter no centro da página a cópia das palavras originalmente datilografadas pelos agentes na época da investigação, carrega diversos carimbos e anotações, feitos nas décadas seguintes. Temos em cada pedaço de papel, portanto, registros de cuidado com o conteúdo que ali se encontra, feitos ao longo de diversas épocas. No topo das cartas que o diretor Hoover escreve a

                                                                                                               

57 A listagem de códigos está disponível em: http://www.fbi.gov/foia/current- fbi-file-classification-list-1st-quarter-fy2008.

dois colegas em maio de 1943, por exemplo, lê-se “PERSONAL AND CONFIDENTIAL”, sendo que a palavra “confidential” foi riscada à mão com um X, em outro tempo.

Alguns dos casos do arquivo apresentam um carimbo da CIA preenchido com o número de referência de quem o consultou nos anos que seguiram a investigação. O caso de maio de 1943, por exemplo, tem ao lado do texto original rabiscos ilegíveis, um que data de 1958 e outro, de 1974. No fim da página, um quadro do formulário a preencher aponta se há cópias do documento no consulado de Porto Alegre, em Washington ou no Rio de Janeiro. Adiante, no relatório dos oficiais do escritório de controle de viagens internacionais de setembro de 1943, há abaixo do texto original um carimbo que avisa: “COPIES DESTROYED 1961”. Verticalmente, ao longo da mesma página, vemos o que se parece muito com a assinatura de Erico Veríssimo, em letra cursiva muito grande, escrita a lápis.58 Além desse tipo de informação, há na documentação outros escritos da mesma forma externos ao conteúdo da investigação em si. Mesmo que a maioria sejam rabiscos ilegíveis, percebe-se, pela datação e variedade de caligrafias, um rastro de leituras que evidenciam que cada página circulou consideravelmente antes de ser organizada e enviada para o departamento de História da UFSC em 14 de junho de 2011.

A cópia do formulário do Office of Censorship, de agosto de 1944, mostra o texto padrão que seguia em letras pequenas ao fim da folha. Diferente do texto datilografado que preenche o formulário, o trecho padronizado vem em letras impressas por meio tipográfico, dizendo:

AVISO ESPECIAL – A informação anexada foi adquirida a partir de comunicações privadas, e seu caráter extremamente confidencial deve ser preservado. A informação deve ser confiada apenas àqueles oficiais para quem a ciência da mesma for necessária para o prosseguimento da guerra. Em hipótese alguma deve ser distribuído ou copiado ou ser a informação utilizada em processos judiciais ou de qualquer

                                                                                                               

58 Podemos nos peguntar: do que se trata essa assinatura? Teria Veríssimo lido o relatório e confirmado as informações sobre sua família e a viagem, como hoje alguém assina um boletim de ocorrência? Ou a assinatura foi anexada posteriormente?

outra forma pública sem que haja expresso consentimento do Diretor de Censura.59 (FOIPA n° 1156463-000, p. 25) .60

Esta interceptação dos correios brasileiros pela censura estadunidense era provavelmente algo recente. Um ano e meio antes desta censura da correspondência para Veríssimo, a 27 fevereiro 1943, circulou pela embaixada estadunidense no Brasil um relatório em que consta o item “Implementação de censura de cartas e telegramas no Brasil sob direção americana”61, revelando assim parte dos tramites para estabelecer tal sistema de censura. revelando parte dos tramites para estabelecer tal censura.

Nosso governo estava muito desejoso de estabelecer, sobre as linhas americanas, uma censura da correspondência e mais tarde uma censura telegráfica no Brasil. O Departamento requisitou que a Embaixada faça as sondagens apropriadas neste sentido. A Embaixada foi bem-sucedida ao convencer o Governo Brasileiro de que isto era em prol da nossa mútua vantagem. Subsequentemente, o Sr. Dudley Haskell, do Office of Censorship, e o tenente George Rases, U.S.N, vieram ao Brasil e receberam liberdade para organizar e controlar os serviços de censura dos correios e telégrafos pelo Departamento de Correios e Telégrafos. Cópias de todos os assuntos de interesse que passarem pela rede de correios e telégrafos do Brasil serão imediatamente disponibilizados à Embaixada Americana e outras agências governamentais nesse país.62 (NATIONAL ARCHIVES, p. 452).

                                                                                                               

59

The attached information was taken from private communications, and its

extremely confidential character must be preserved. The information must be confided only to those officials whose knowledge of it is necessary to prosecution of war. In no case should it be widely distributed, or copies made, or the information used in legal proccedings or in any other public way without express consent of the Director of Censorship.

60 Federal Bureau of Investigation, United States Department of Justice, Subject: Veríssimo, Erico Lopes. FOIPA [Freedom of information/privacy acts] n° 1156463-000. Doravante citado apenas como: FOIPA n° 1156463-000.

61

“Setting up of mail censorship and telegraphic censorship in Brazil under

american direction.”

62 “Our government was very desirous of establishing, along American lines, a

postal censorship and later a telegraphic censorship in Brazil. The Department recuested the Embassy to make appropriate soundings in this matter. The

A carta censurada presente na documentação do FBI era de Catharino Azambuja, de Cruz Alta-RS, para Erico Veríssimo, em Hollywood. Enviada a 7 de agosto, foi analisada pelo FBI em 20 de agosto. Veríssimo estava nos Estados Unidos havia mais de um ano e lá permaneceria por mais um. O conteúdo da carta e o motivo de sua apreensão são assim explicados:

Escritor, comentando de maneira sarcástica sobre visita de Manoelito Dornelas, chefe do DIEP brasileiro - provavelmente o Departamento de Imprensa e Propaganda-, fala de sua recepção ostentosa por parte da cidade, Cruz Alta, e sua palestra na conferência que foi o motivo de sua visita. O escritor diz - de acordo com tradução - : '... Eu sei que Manoelito disse em conversa que sua conferência foi inspirada por ti (o destinatário). (...) Na fala ele atacou os americanos, os filmes americanos, e não sei o que mais, e disse que não o fazia em seu nome, Manoelito, somente, mas a pedido da pessoa mais amada desta terra, Erico Verissimo. [sublinhado na documentação original]. Deburgo me contou isto e adicionou: o Manoelito está comprometendo o Erico. Eu disse ao Deburgo que iria comunicar isto a ti...63 (FOIPA n° 1156463-000, p. 25).