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1. ÉRICO VERÍSSIMO E A BOA VIZINHANÇA (1941) O TEMPO E O AUTOR

1.1.3 Os escritores no contexto

Diante da polarização discutida anteriormente, que muda a política no mundo todo e acarreta desconfiança e investigação policial, assim como novas medidas de difusão cultural, o debate entre os escritores e intelectuais do período oferece um ponto de vista enriquecedor, tendo sido os anos 1930 a década de um romance “participante, social e realista.” (CANDIDO, 1972, p. 47). Lê-se na obra de Erico Veríssimo A volta do gato preto, de 1946, que analisaremos adiante:

Não me parece que a um escritor – principalmente quando se trata, como no meu caso, dum romancista – caiba a responsabilidade de oferecer soluções, planos e remédios

para a salvação nacional do domínio da política e da economia. (O ficcionista raramente sabe o que diz quando entra nesse terreno...). Há, porém, uma responsabilidade muito séria a que ele não deve fugir. É a de ver a realidade com os olhos claros e a apresentá-la com verdade e franqueza em suas histórias, apontando direta ou indiretamente os males sociais e procurando, como diz Arthur Koestler, ‘criar uma necessidade de cura’ (VERÍSSIMO, 1987, p. 498).

Voltando ao início da geração literária à qual pertence Veríssimo, Luís Bueno conta-nos como, em 1933, em poucos meses a expressão “romance proletário” passa a ser, segundo ele, obrigatória no debate político da literatura. O marco foram as publicações quase simultâneas de Cacau, de Jorge Amado, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, e Os Corumbás, de Amando Fontes, sendo que este último seria considerado o “grande romance do ano”. Além disso, “Nesse momento se rotinizará uma leitura dos novos livros, por parte da crítica, que partirá da adesão ou não de seu autor ao romance proletário.” (2006, p. 160).

Em sua História do romance de 30, Luís Bueno identifica no período de 1933-1936 o auge do romance social. Erico Veríssimo funda sua carreira então, e sua viagem a partir da qual é construído Gato preto em campo de neve tem motivações profundamente entrelaçadas à política internacional. E esta, por sua vez, como vimos, encontra-se num momento emblemático entre a crise do liberalismo e a ascensão de regimes autoritários de esquerda e de direita. Além disso, veremos que Veríssimo, como os escritores de sua geração, acabará por falar, em seu livro de viagem para o exterior, da realidade brasileira.

Jorge Amado abriu o volume de Cacau com a seguinte nota: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?”. Assim foi que, em forma de pergunta, o livro de 1933 colocou o “romance proletário” como alvo de debate fecundo na literatura da década. (BUENO, 2006, p. 160). A categoria “proletário”, neste contexto, deve ser entendida como bastante inclusiva, abrigando camponeses, mendigos, enfim, os pobres. (Ibidem, p. 163), e o destaque às massas em seus dramas coletivos não era a única característica do romance, mas tinha também como importância o “ar de revolta”, a inclinação direta ao engajamento na revolução. (p. 162).

Em suma, segundo Alberto Passo Guimarães, o romance proletário é uma espécie de necessidade histórica por ser a forma que

quadra bem a um capitalismo decadente e tem que ter os seguintes elementos: valorização da massa, rebeldia, descrição veraz da vida proletária. (BUENO, 2006, p. 164).

Antônio Cândido fala de uma literatura empenhada, caráter que acompanharia a literatura brasileira desde a sua formação, uma vez que a partir do tempo da Independência a atividade literária é percebida como esforço de construção do país. A posterior “tomada de consciência” dos autores quanto ao seu papel estava associada a uma intenção de “escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam”. (CÂNDIDO, 2006, p. 26). Nesse romance de 1930 de que falam os autores, a escolha de como mostrar a realidade brasileira, naturalmente, variou.

Diante dos mesmos problemas da situação brasileira, houve escritores, principalmente católicos, que não viam como solução nem o socialismo nem o liberalismo, e faziam uma literatura intimista, e não voltada para a realidade social. Eles acreditavam estar o país num momento de crise espiritual, quando seria preciso “mergulhar no indivíduo, pois é a partir dele que se pode tentar entender os problemas que a humanidade vive”. Se Jorge Amado defendia a subtração da figura do herói nos romances, substituindo-a pelos movimentos das massas, “Otavio de Faria, por exemplo, em sucessivos artigos, insistirá no contrário, realçando a importância do romance contemplar os destinos individuais.” (BUENO, 2006, p. 203).

Para Bueno, ainda, “é nesse ponto crucial que a diferença ideológica vai se traduzir em diferença de técnica romanesca.” Ele lembra, entretanto, que esta trata-se de uma falsa diferenciação, pois não há o que separe o que há de psicológico do que há de social no homem. Bueno finalmente pontua que “os mais bem-sucedidos autores do período vão ser aqueles capazes de escapar a esse tipo de armadilha”. É neste lugar que encontra-se a obra de Veríssimo entre os romancistas de esquerda. Enquanto Jorge Amado se posicionava como escritor das massas, produzindo o romance proletário, “houve também autores que procuraram soluções técnicas que permitissem uma espécie de fusão entre os dois lados, na tentativa de construir aquele todo, que foi referido, no interior de uma única obra.” (BUENO, 2006, p. 373). Erico Veríssimo seria um exemplo desta espécie de "exceção à regra" dentre os escritores dos anos 1930.

A simultaneidade serve, na obra de Erico Veríssimo, para figurar o outro e o mesmo sem ter que, por isso, cair na indefinição ideológica que seria, essa mais que tudo,

insustentável naquele momento em que a opção política pela direita ou pela esquerda era inescapável para o intelectual honesto. (2006, p. 380-381).

A construção de cenas com esta “simultaneidade” se faz vividamente presente em Gato preto em campo de neve, em que os dias da viagem são narrados como desenvolvendo-se entre conversas com engraxates, taxistas, escritores e senadores. Bueno diz ainda que

Caminhos Cruzados pôde ser lido como uma tentativa de, partindo de Porto Alegre, construir uma representação ficcional bastante ampla da sociedade brasileira que incluísse o miserável, o pobre, o remediado, o intelectual, o novo-rico e o grande capitalista num mesmo espaço literário. (BUENO, 2006, p. 383).

A obra definiria um caráter diferenciado, inclusivo, em um momento de extrema polarização, no entanto, sem ser tentativa de “agradar ambos os lados”, já que “de um jeito ou de outro, Erico Veríssimo foi localizado sempre mais à esquerda, embora o termo socialista, mais "leve" que comunista, tenha sido empregado para descrever seu perfil ideológico naquele momento. (BUENO, 2006, p. 390).

De uma ou de outra maneira, “a literatura contribuiu com eficácia maior do que supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros.” (CÂNDIDO, 2002, p. 140). E tanto esta formação de nacionalidade quanto a identificação de problemas dos brasileiros não passa despercebida nem pelo Estado Novo (que também está, por sua vez, trilhando um processo de construção do que deveria ser a identidade nacional) e nem pelo vizinho estadunidense, sempre atento a articulações socialistas.

Antônio Cândido avalia, finalmente, o que foi a geração de Trinta, em um texto de 1972 chamado Erico Veríssimo de trinta a setenta, no qual conclui que de muitas formas Veríssimo mostrou em sua obra ao longo da vida as características marcantes daquela geração divisora de águas.

Em Trinta, nós vivemos o problema do realismo, ou neo- realismo, socialista ou não, bem como a incorporação do que as vanguardas do decênio precedente haviam inovado. Vivemos um grande surto do romance, ligado às perspectivas postas em moda pela sociologia e a antropologia, com um triunfo do social contraposto às tendências místicas e

religiosas. Houve dilaceramentos e disputas, com a formação de um antipolo metafísico e as mais rasgadas polêmicas que marcaram todos nós. (CÂNDIDO, 1972, p. 42).

A forma narrativa de Veríssimo do corte transversal da sociedade é em grande medida o que possibilitará toda a série de acontecimentos políticos contraditórios que se evidenciarão com a documentação que estudaremos. Ela é criada pois vem de um mundo que pede, para Veríssimo, objetividade igualitária. E é ela que dará margem à multiplicidade de interpretações que levarão a elogio e crítica de diversos lados antagônicos de uma mesma conjuntura. São inseparáveis, portanto, construção literária e contexto político, forma interna da obra e concretude externa à obra.