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3.   Breve história do espaço brasileiro 89

3.2.  A Formação das cidades 95 

Para se compreender o processo de verticalização, é preciso compreende- lo como parte de um processo, que é o da transformação contínua do espaço, ou seja, a desconstrução do espaço físico e social, empreendida pelo capitalismo.

Em antigas colônias, as cidades não são necessariamente uma evolução direta das antigas aldeias indígenas, mesmo que se verifiquem casos, como na Cidade do México, onde as cidades dos colonos se sobrepuseram às cidades dos povos nativos. Por este motivo, não se pode considerar que tenha havido uma continuidade entre o espaço sinomórfico e o espaço urbanizado, mas sim uma desconstrução do espaço anterior e a construção de um novo tipo de espaço. A cultura indígena, fortemente ligada à aldeia e à disposição das casas dentro dela, é desarticulada e os indivíduos são incorporados à nova ordem social, imposta pelos brancos.

O mesmo vai ocorrer com os escravos negros, tirados à força de seu local de origem e trazidos para uma realidade completamente diferente. Mais do que uma violência física, é uma brutal desarticulação do sistema de valores, na medida em que lhes retira qualquer direito de contato com aqueles elementos presentes no seu ambiente de origem e que lhe conferia sentido à vida, no sentido cosmológico e existencial, além de quebrar laços familiares e sociais construídos ao longo de gerações.

Se os escravos não tiveram a oportunidade de carregar senão parte de suas crenças para um novo mundo, e os índios puderam, em parte, preservar o seu contato com o ambiente, os portugueses que aqui chegaram trouxeram, na medida do possível, seus valores e cultura, ainda que precisassem se adaptar à realidade local. Esta cultura incluía o próprio conceito da cidade, embora, antes disso, incluísse a ideia de exploração colonial para obtenção de lucro.

Para Spósito (1988) a urbanização trazida ao Brasil já estava sob domínio capitalista e tinha como objetivo dar sustentação à necessidade de ampliação dos espaços sob o domínio do capital comercial, não fosse o qual “provavelmente a urbanização não teria se estendido, àquela época, à América” (SPÓSITO, 1988 p. 41). Desta forma as cidades que viriam a surgir no Brasil eram tanto reflexo da necessidade de ampliação dos territórios como processo contínuo à forma de urbanização já em curso na Europa, ligado à cidade comercial.

Para Mumford (1991), a transposição da organização em forma de agrupamentos urbanos que viviam da coleta e caça para a que desenvolveu a agricultura, e desta para a primeira forma da cidade depende da evolução do caçador, “que tinha funções protetoras, à condição de chefe coletor de tributos” (MUMFORD, 1991 p. 43). A ampliação dos poderes do caçador, que primeiramente o transforma em chefe da aldeia, também dá origem à figura do rei. E é a instituição da Realeza o agente mais importante na transformação da economia descentralizada da aldeia para uma economia urbana altamente organizada.

A figura do rei não é a única distinta entre os habitantes da proto-cidade, tendo sido precedida por outros indivíduos com funções especializadas dentro da vida comunal, sobretudo aqueles responsáveis pelas articulações entre o povo e a dimensão divina e aqueles que se especializam no combate, se tornando os protetores do espaço da aldeia. São estas funções específicas que dão origem, respectivamente, às classes dos sacerdotes e dos soldados, que pelo fato de não participarem efetivamente da produção de alimentos, necessitam de uma produção extra daqueles que trabalham no campo.

[a cidade] só pode surgir a partir do momento em que o desenvolvimento das forças produtivas é suficiente, no campo, para permitir que o produtor primário produza mais que o estritamente necessário à sua subsistência. Só a partir daí é que o campo pode transferir à cidade o excedente alimentar que possibilita sua existência. (SINGER, 1990 pp. 12-13)

A produção de excedente no campo deve ainda se somar a um mecanismo de extração deste mais-produto, articulado através da formação de classes para que possa finalmente surgir a cidade.

Se na aldeia tradicional a apropriação do espaço é regida por crenças em divindades locais, no surgimento das cidades a figura do rei é colocada como um “ímã polarizador que atrai para o coração da cidade e coloca sob controle do palácio e do templo todas as novas forças de civilização” (MUMFORD, 1991 p. 43). O poder militar, representado pela classe dos soldados, além de proteger a cidade é também importante instrumento para ampliação das terras das classes dominantes,

...até encontrar pela frente um poder armado equivalente, isto é, a esfera de dominação de outra cidade. Assim, a cidade é o modo de organização espacial que permite à classe dominante maximizar a transformação do excedente alimentar, não diretamente consumido por ele, em poder militar e este em dominação política. (SINGER, 1990 p. 15)

O território antes restrito às áreas utilizadas pelos habitantes da aldeia para caça, pesca, coleta e agricultura é agora ampliado, tendo como centro a imagem simbólica do rei e como limite o alcance do poder militar comandado pelas classes dominantes. O mesmo poder militar que expande as fronteiras também funciona como forma de repressão aos trabalhadores, sendo utilizado para aumentar a extração do mais- produto do campo através de tributos. Se a expansão do poder militar, que é constituído por uma classe não produtiva, depende deste excedente, a expansão do território encontra um obstáculo no limite de produtividade do trabalhador rural, porque impede o crescimento do poder militar. A evolução da técnica deve intervir como meio de aumentar a produtividade ou de expandir o território.

Procurando por novas formas de expandir o território, os grandes impérios começam a lançar-se à exploração de novas terras, de forma que possam dali extrair outras riquezas e , deste modo, continuara expansão.

A empresa militar e missionária tinha por objetivo mais imediato estabelecer, em terras americanas, um modo de produção capaz de produzir um excedente que pudesse ser apropriado pelas metrópoles e prontamente vendido nos mercados europeus. (SINGER, 1990 p. 95)

Para que o objetivo fosse alcançado, duas condições tiveram de ser superadas. A primeira diz respeito à produção de um excedente, o que, no Brasil, teve

de ser garantido pela expropriação da terra e pela importação de escravos, uma vez que a força de trabalho indígena se mostrou inadequada. Já a segunda exigia que os bens produzidos como excedente constituíssem valores de uso demandados na Europa, sem o que não faria sentido a exportação. Esta condição teria como primeira solução a especialização das atividades econômicas no Brasil, que se concentraram na extração de prata e ouro e na produção de cana de açúcar, produto em ascensão nos meios burgueses da Europa (SINGER, 1990).

Como resultado, a sociedade colonial, no princípio, viria a se organizar basicamente em atividades de extração e exportação para a metrópole e em atividades produtivas para subsistência, baseados no trabalho escravo. Assim, a cidade colonial, possuía um papel econômico “estéril”, mas foi importante para a constituição e preservação do sistema colonial, pois serviam de base para as forças de coerção da metrópole, representadas pelos corpos de tropa e pela burocracia civil. A cidade desempenhava ainda um papel importante na repartição do excedente, o que requeria maior proteção contra a ação de contrabandistas e corsários, resultando na concentração das atividades em poucos pontos, onde a defesa seria mais fácil (SINGER, 1990).

Assim, ao contrário do que se observou em outras áreas, como nas Antilhas para os Estados Unidos, a exportação de açúcar não significou um impulso de desenvolvimento das áreas urbanas. Estas não puderam desenvolver qualquer atividade econômica complementar à rural.

...apenas uma parcela muito pequena dos rendimentos da colônia permaneceu nomeio urbano, com um esboço de comércio ou manufatura, praticamente inexistente nos centros menores e apenas presente nos de maior importância (REIS, 2000 p. 38)

A “Cidade da Conquista”, como denominado por Singer, foi um sistema criado com “o objetivo básico de sustentar o sistema de exploração colonial”, e era “implantada como ponto fortificado, a partir do qual se irradia o poder do colonizador” (SINGER, 1990 p. 100).

Embora existissem atividades econômicas regulares nas cidades antes de meados do século XVII, este era caracterizado principalmente pelo comércio direto, “entre a grande propriedade rural e a Metrópole, compreendendo apenas em escala muito reduzida as operações locais” (REIS, 2000 p. 40). Estas atividades estavam

estreitamente ligadas à agricultura de exportação, quadro que viria a mudar somente com a crise na exportação do açúcar. O excedente produzido pela mão-de-obra escrava passa a ser apropriado e retido na colônia, o que resulta no surgimento de uma classe comerciante e na admissão de uma possibilidade de exploração do mercado consumidor local, dando início, inclusive, à importação de bens manufaturados da Europa. Com a permanência das populações e ascensão da classe comerciante no meio urbano, a cidade passa a ser o centro da vida política e passa a ser um grande foco das atenções políticas, e motivo de diversas tomadas de decisão por parte da Coroa portuguesa (SINGER, 1990 e REIS, 2000).

O espaço da cidade colonial foi, no início, formado à semelhança das cidades portuguesas, tendo as construções obedecido a rígidos padrões que especificavam número de aberturas, gabaritos de alturas e recuos (REIS FILHO, 1987). Formadas, a princípio, somente como ponto de apoio às atividades de comércio de exportação, as cidades não consistiam necessariamente uma representação de um espaço social, mas de parte dele. Nas cidades pequenas, o uso do espaço da cidade ou da vila não era sequer contínuo.

Construídas para acomodar apenas nos dias de festa os moradores das fazendas, as vilas e cidades menores tinham vida urbana intermitente, apresentando normalmente um terrível aspecto de desolação. (REIS FILHO, 1987 p. 30)

Como locais que reuniam algumas facilidades de uso comum, como a igreja e locais de comércio, eram preteridas como locais de moradia até mesmo por aqueles que dependiam do contato constante com outros moradores. Esta situação se estenderia até mesmo quando, após a crise na exportação do açúcar, surgisse a “Cidade Comercial” de Singer (1990). Funcionários importantes e comerciantes abastados, “cuidavam de adquirir, sempre que possível, chácaras ou sítios, um pouco afastados, para onde transferiam suas residências permanentes” (REIS FILHO, 1987 p. 30), embora isto não significasse um desligamento das cidades.

A cidade neste período era, portanto, mais um centro de referência para uma população rural do que um centro urbano com atividades e vida própria, o que significa que era apenas parte de um espaço social mais amplo, que englobava as áreas ocupadas no campo. Assim como a cidade europeia, a cidade brasileira nasce diretamente da necessidade de uma organização cujo objetivo era extrair o excedente

produzido no campo; a diferença reside no fato de que no caso da colônia este excedente não fica, a princípio, retido na cidade. A atividade urbana propriamente dita começaria a tomar vida somente com o início de atividades agrícolas não voltadas para a exportação, através do comércio, e do surgimento da classe de comerciantes. Como existia uma forte relação de dependência entre o campo e cidade, é possível se falar, também, de uma continuidade dos dois espaços e não, a princípio, de uma clara divisão.

A divisão que claramente se definia era aquela determinada por classes, mas ela não se refletia claramente na estrutura urbana. Embora existissem espaços com funções específicas, a divisão da cidade por setores de classes era limitada pelo fato de que as funções de muitos dos habitantes das cidades eram sobrepostas, correspondendo um indivíduo ou grupo a uma diversidade de classes ou grupos, tal como as conhecidas na sociedade atual. A mesma sobreposição de funções se repetia nos edifícios, geralmente compostos de casas térreas ou sobrados, cujo pavimento inferior era utilizado como sala comercial. Além disso, na sociedade escravocrata, não havia um espaço destinado especificamente à habitação dos poucos escravos que não trabalhavam no campo, e moravam nas casas dos senhores, sendo fundamentais para o seu funcionamento (REIS FILHO, 1987).

Esta estrutura organizacional do espaço social foi mantida por um longo período, pois a função das cidades seria mantida mesmo após a Independência que, nas palavras de Singer, não significou “muito mais que uma troca de metrópoles, sendo Espanha e Portugal substituídos pela Inglaterra”. Desta forma, a cidade continua,

...no plano econômico, desempenhando suas antigas funções: sustentáculo da ordem e canal de intermediação comercial e financeira pelo qual passava o mesmo tipo, em geral, de excedente de produtos agrícolas e extrativos (SINGER, 1990 p. 106).

Assim, embora a diversificação das exportações tenha contribuído para o surgimento de novas atividades econômicas, a estrutura de classes também foi mantida, já que “o movimento pela emancipação política não trouxe consigo qualquer mudança na relação de força entre as classes” (SINGER, 1990 p. 108).

Os pequenos núcleos urbanos que se formaram e se organizaram, desta forma, segundo interesses da economia da exportação e, posteriormente, do comércio, constituíram o núcleo estruturante dos aglomerados urbanos que viriam a se formar nos

períodos seguintes. Embora não havendo continuidade na evolução em relação aos assentamentos humanos primitivos, a cidade colonial teria, ainda, uma organização espacial em que se verifica uma continuidade entre os espaços urbano e rural. O espaço relativamente homogêneo destas cidades viria a sofrer profundas transformações quando a cidade comercial dá lugar à cidade industrial.