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1.   Homem e Espaço 15

1.2.  O Espaço 24 

É notável que exista uma dificuldade em definir o que é o espaço, embora existamos e vivamos dentro dele. No dicionário da Língua Portuguesa, o espaço é definido como a “extensão tridimensional ilimitada ou infinitamente grande, que contém todos os seres e coisas e é campo de todos os eventos”. É tudo que dentro desta “extensão tridimensional” pode ser mensurado e numericamente qualificado como espaço geométrico. Medido em termos de distância, área ou volume, o espaço geométrico se apresenta objetivamente e assim, permite estabelecer critérios objetivos e universais. Uma distância medida em metros será invariável e como tal deve ser avaliada. Mas medida em termos de tempo, uma determinada distância pode se tornar “uma hora de caminhada”. Assim a dimensão geométrica se relativiza fazendo variar a dimensão de uma distância segundo a velocidade de deslocamento, o meio de deslocamento ou mesmo a percepção subjetiva do tempo. Do mesmo modo, o espaço pode ser medido com unidades diferentes e assim, perder sua dimensão exata e invariável. Admitindo uma dimensão relativa para o tempo, o espaço também pode ser definido por relações de tempo – um “espaço de tempo” – assim como pode ser medido segundo conceitos culturais.

Na língua japonesa, o vocábulo correspondente a “espaço” é “ma”, representado pelo ideograma composto pelos ideogramas “Mon”, e “Hi”, que significam, respectivamente, “portal” e “sol”.

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(Mon) (Hi) (Ma)

Figura 3 - Composição do ideograma "Ma"

O Sol, assim, colocado entre as duas folhas de um portal, define o ideograma cujo significado original é justamente “entre”. Curiosamente, outra possível tradução para a palavra “espaço”, é “kuukan”(agora composto por dois ideogramas, “Sora”, que significa “céu” ou “vazio”, e o mesmo “ma”), mas que indica necessariamente um espaço vazio. É interessante notar que a concepção japonesa para “espaço” é precisamente aquilo que se encontra “entre”, ou seja, definido pelo espaçamento entre dois elementos, mas que não é necessariamente vazio. O espaço não é sempre um “vazio”, talvez exatamente porque um espaço onde não há nenhum objeto

não defina um vazio; o espaço, mesmo fisicamente vazio, pode estar carregado de um significado.

Merleau-Ponty (Apud BRANDÃO, 1991, p.11) define o espaço não como “o meio (real ou lógico) onde se dispõem as coisas, mas o meio pelo qual a disposição das coisas se torna possível”. O espaço pode, assim, ser delimitado e definido pela posição relativa de objetos; o espaço arquitetônico pode ser delimitado por planos, constituído por paredes, lajes, ou elementos não perpendiculares ao plano divisório, como marquises, móveis, diferenças de textura ou luminosidade. Pode-se dizer também que o espaço não é a exata correspondência ao “vazio” deixado pelos objetos. Numa faixa de pedestres, uma simples linha no chão cria um limite entre espaços – o espaço dos carros e o espaço dos pedestres. Às vezes, nem mesmo um limite visual precisa existir para que os espaços se definam. Num elevador, dois estranhos dividem o espaço consensualmente, em duas partes iguais.

Nos dois exemplos, o espaço é definido não somente por suas características físicas, mas também por normas ou convenções, social ou culturalmente determinadas. Os espaços são delimitados, portanto, por elementos que devem, de alguma forma, e antes de qualquer coisa, ser percebidos para que surtam qualquer efeito. Para Tuan (1983), “os órgãos sensoriais e experiências que permitem aos seres humanos ter sentimentos intensos pelo espaço e pelas qualidades espaciais” são “cinestesia, visão e tato. Movimentos tão simples como esticar os braços e as apernas são básicos para que tomemos consciência do espaço. O espaço é experienciado quando há lugar para se mover.” (TUAN, 1983 p. 13) Aqui, “a sensibilidade cinestésica, ou simplesmente cinestesia, refere-se às sensações produzidas pelos movimentos dos membros e corpo”. (SIMÕES, et al., 1985 p. 11) O indivíduo que se move percebe imediatamente o espaço através do sentido proprioceptivo.

Embora cinestesia e tato sejam importantes para a percepção espacial, não é difícil compreender que a visão constitui o sentido mais importante. Assim como os dois primeiros, a audição e o olfato complementam a percepção espacial, mas nenhum deles tem a precisão que nos oferece a visão. Através da visão binocular percebemos claramente a distância, sensação complementada também pelos indícios monoculares como tamanho relativo, perspectiva linear, gradiente de textura,

superposição, luz e sombra e perspectiva aérea. (SIMÕES, et al., 1985) A visão também nos fornece informação sobre a cor, a textura, a luminosidade de determinada superfície, além de detectar e identificar com supreendente precisão qualquer movimento.

É evidente que a percepção do espaço não prescindede uma interpretação, tal como foi anteriormente exemplificada. Através da visão,

o simples ato de olhar já está carregado de interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva, fruto de uma mediação sígnica que possibilita nossa orientação no espaço por um reconhecimento e assentimento diante das coisas que só o signo permite.(SANTAELLA, 1983 p. 11)

Através dos signos contidos no ambiente percebido conseguimos nos orientar, e os outros sentidos auxiliam na cognição do todo. A interpretação do espaço é vital para o momento presente, mas também o espaço do passado exerce papel importante na construção da memória e da visão de mundo. Momentos passados são elementos constituintes da consciência e da subconsciência. Contudo, como o ser humano não possui órgãos específicos para a percepção do tempo, a memória se fixa no espaço.

Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em busca do tempo perdido, quer ‘suspender’ o vôo do tempo. Em seus mil

alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso. (BACHELARD, 1994 p. 28)

Assim, se a memória se fixa nos espaços imaginados, pode-se afirmar que nossa consciência é efetivamente constituída pelos espaços que vivenciamos. É comum a experiência de visitar a casa da infância e sentir que os espaços “encolheram”. É óbvio que o que ocorreu é que nossa percepção mudou o ponto de vista ou a referência que é o nosso próprio corpo. O espaço percebido não se restringe ao espaço geométrico.

...não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com todas as imparcialidades da imaginação.” (BACHELARD, 1994 p. 19)

Isso não exclui do imaginário pessoal o espaço construído que, pelo contrário, exerce a função de delimitar e identificar alguns elementos da linguagem espacial. Através de planos bem definidos, o espaço de geometria regular pode dividir

claramente os espaços, determinando conceitos como “aberto” e “fechado”, “dentro” e “fora”, “alto” e “baixo”, mesmo não tendo sido concebidos com esta intenção.

O alcance dos espaços construídos vai então bem além de suas estruturas visíveis, e funcionais. São essencialmente máquinas, máquinas de sentido, máquinas abstratas (...) portadoras de universos incorporais que não são, todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto no sentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma singularização libertadora da subjetividade individual e coletiva (GUATARRI, 1994)

Para Guattari (1994), reside nos espaços uma particularidade polifônica, ou seja, a um único espaço correspondem múltiplas corporeidades e subjetividades; um espaço suscita em cada indivíduo uma subjetividade, uma individualidade que se sobrepõe à realidade coletivamente percebida. Por isso, as máquinas que são os espaços construídos não podem ser operadas conforme os desejos do arquiteto. Neste sentido, “as evidências formais são apenas uma pequena parte do fenômeno em que se constituem os espaços construídos – a que reside na superfície – enquanto máquinas que produzem sentido, sensação, remetem a universos corporais” (BRANDÃO, 1991 p. 12)

A linguagem que o arquiteto imputa ao espaço é transformada pela própria subjetividade, e o valor da pura geometria não é tão importante quanto aquele dado por cada indivíduo. Por outro lado, a linguagem apreendida através do espaço é de suma importância para nossa comunicação. Para Lawson, “ao longo de nossas vidas nós provavelmente nos comunicamos muito mais através do espaço do que através da linguagem formal”2(LAWSON, 2001 p. 6):

O espaço, e consequentemente tudo aquilo que o encerra, são muito mais centrais para nós em nossas vidas cotidianas do que uma interpretação puramente técnica, estética ou mesmo simbólica poderia sugerir. O espaço é tanto aquilo que nos aproxima como simultaneamente aquilo que nos separa uns dos outros. É, portanto, crucial para a forma como nossos relacionamentos funcionam. (LAWSON, 2001 p.6, tradução nossa)

É, portanto, através do espaço que construímos nossa visão de mundo, assim como a própria percepção; através dele percebemos e imobilizamos o tempo, e com ele nossas memórias; e, finalmente, através da linguagem espacial conseguimos nos comunicar uns com os outros e nos situar no mundo.

      

2 “throughout our lives we probably communicate far more through space than we do with

Contudo, Edward Hall (apud SOMMER, 1973 p. 45) lamenta que “tratamos o espaço mais ou menos como tratamos o sexo. Está aí, mas não falamos dele”. Damatta afirma que “o espaço é como o ar que se respira. Sabemos que sem ar morreremos, mas não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutre de força e vida”. (DAMATTA, 1997 p. 29) Ainda hoje, ao espaço é relegada uma função secundária, superada pela “funcionalidade” do edifício. Lawson enumera três necessidades emocionais fundamentais a serem satisfeitas pelo espaço: a necessidade de estímulo, de segurança e de identidade. (LAWSON, 2001)

A necessidade de estímulo refere-se à busca por espaços que não sejam nem tão neutros nem se ofereçam como “um ambiente no qual somos bombardeados com sensações”, o que é “igualmente perturbador” (LAWSON, 2001 p. 19). Apesar de admitir a impossibilidade de se produzir um ambiente que todos sintam como ideal, é possível procurar por um ponto de equilíbrio, onde o ambiente ofereça um nível apropriado de estímulos.

A segurança se refere não à função primordial do edifício, a de proteger seus habitantes, mas àquela relativa às expectativas que temos em relação ao espaço. Não se refere à insegurança provocada pelo ato de explorar um espaço desconhecido, mas pelo desconhecimento das regras sociais vigentes naquele espaço estranho, que "regulam a forma de agir, se vestir ou falar, e em alguns casos definem inteiramente aspectos locais da linguagem falada” (LAWSON, 2001 p. 21, tradução nossa). A insegurança decorre, portanto, do medo de que os outros avaliem suas atitudes como impróprias; uma vez que se estabelecem e se conhecem as normas sociais, esta insegurança desaparece.

Por outro lado, existem também reflexos espaciais das normas sociais. Estas formam “alguns dos mais fundamentais componentes da linguagem do espaço.”3(LAWSON, 2001 p. 23) Como exemplo são levantados os “Arranjos comportamentais”4 que nos fornecem segurança sobre como agir.

Em outras palavras, sabemos como nos comportar em um ambiente conhecido, por exemplo uma biblioteca. Basta que identifiquemos o espaço como tal, e

      

3 “But are there spatial reflections of social norms? To some extent there are, and they form

some of the most fundamental components of the language of space.”

neste espaço seja possível perceber indícios sobre como agir; estes indícios são lidos como um texto, uma linguagem espacial decifrada a partir de nosso próprio conhecimento. Uma pessoa que nunca esteve em uma biblioteca talvez não saiba como se comportar, mas talvez compreenda, a partir de outros elementos espaciais indícios sobre como agir e como não agir. A linguagem do espaço tem uma clareza às vezes subestimada, mas ao mesmo tempo quase sempre utilizada, ainda que inconscientemente.

Já a necessidade de identidade está relacionada à nossa obrigação de, em cada espaço do nosso cotidiano, desempenhar determinados papéis – seja como comprador, estudante, pedestre ou qualquer outro. Esta necessidade é satisfeita quando cada arranjo espacial nos permite desempenhar nosso papel com segurança. “Muito disso deve ser feito não por arquitetos, mas pelos próprios atores, já que o espaço é efetivamente uma extensão de suas máscaras de comportamento.” (LAWSON, 2001 p. 31, tradução nossa)Esta adaptação do espaço se refere, justamente, à necessidade de personalização do espaço, de forma que ele seja realmente uma extensão de nossa identidade (daquele momento).

Nossa necessidade de pertencer e de identificar lugares como exclusivamente nossos ou ao menos associado conosco é demonstrado em todos os lugares por coisas que as pessoas fazem para personalizar suas localidades. A maioria de nós detesta o anonimato, mas ainda assim muitos espaços

parecem justamente anônimos – especialmente, ao que parece, novos espaços criados. (LAWSON, 2001 p. 32)

A personalização do espaço não deixa de ser uma forma de apropriação. A identidade relaciona-se à nossa necessidade de pertencer a um lugar, o que nos permite uma localização no mundo. Conviria aqui, então, fazer uma distinção entre

espaço e lugar.