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Observamos nas últimas três décadas, entre educadores brasileiros e internacionais, certa simpatia por uma retórica acerca da conceituação do professor como um profissional reflexivo, e isso se tornou rapidamente um slogan adotado por formadores de educadores das mais diferentes perspectivas políticas e ideológicas.

Assim, o conceito de reflexão passou a ser incorporado por diferentes paradigmas da prática e, por extensão, na formação continuada de professores, fazendo parte do arcabouço teórico de diversas pesquisas no campo da formação de professores, especialmente no campo da formação continuada. Contudo, o conceito de reflexão não se encontra suficientemente esclarecido entre diversos estudiosos; ao contrário, muitas vezes chega a ser um conceito polêmico, como por exemplo, se o pensamento reflexivo e a ação ocorrem separada ou simultaneamente.

Posto isso, nesta sessão, vamos aprofundar a discussão sobre a formação do professor reflexivo, à luz dos estudos que enfatizam o conceito de “reflexão” como o pilar estruturante para a formação de professores, especialmente a continuada.

Um dos primeiros estudiosos que se dedicou a discutir o conceito de reflexão foi Dewey (1933), com a publicação do livro Como Pensamos, que se referia à aquisição do saber como fruto da reconstrução da atividade humana, a partir de um processo de reflexão sobre a experiência, continuamente repensada ou reconstruída.

Apoiado nos estudos de Dewey, Schön (1983) propõe, a partir das suas experiências relacionadas à reformulação curricular, nos Estados Unidos, que a formação profissional não mais se dê nos moldes de um currículo normativo que

primeiro apresente a ciência, depois a sua aplicação e, por último, um estágio que supõe aplicação pelos alunos dos conhecimentos técnicos profissionais.

Conforme a análise do autor, o profissional assim formado, não consegue dar respostas às situações que emergem no dia-a-dia profissional, porque estas ultrapassam os conhecimentos elaborados pela ciência e as respostas técnicas que poderia oferecer ainda não estão formuladas, estão na ação; e que, portanto, não a precede. Schön (2000, p. 25) assevera afirmando que:

Talvez, então aprender todas as formas de talento artístico profissional dependa, pelo menos em parte, de condições semelhantes a aquelas criadas nos ateliês e conservatórios: liberdade para aprender através do fazer, em um ambiente de risco relativamente baixo, com acesso a instrutores que iniciemos estudantes nas “tradições da vocação” e os ajudem, através da “fala correta”, a ver por si próprios e à sua própria maneira o que eles mais precisam ver. Deveríamos, então, estudar a experiência de aprender por meio do fazer e do talento artístico da boa instrução. Deveríamos basear nosso estudo na hipótese de trabalho de que os dois processos são inteligentes e- dentro de limites a serem descobertos – inteligíveis. E deveríamos buscar exemplos, onde quer que pudéssemos encontrá-los – no currículo dual das escolas, nos aprendizados e nas atividades de ensino prático que os profissionais encontram ou criam para si mesmo e nas tradições divergentes de ateliê e conservatório.” (SCHÖN, 2000, p. 25)

Adotando essa perspectiva, a autor propõe uma formação profissional baseada na valorização da prática profissional como momento de construção de conhecimento, por meio da reflexão, análise e problematização desta, e o reconhecimento do conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais encontram em ato. Esse conhecimento na ação é o conhecimento tácito, portanto, implícito e interiorizado.

Entretanto, esse conhecimento é necessário, mas não é suficiente, pois no enfrentamento de novas situações que extrapolam a rotina, os profissionais criam, constroem novas soluções, novos caminhos, o que se dá por um processo de reflexão na ação, construindo assim um novo repertório de experiências que mobilizam em situações similares, e esses caminhos se tornarão novamente um conhecimento prático.

Esse conhecimento prático, construído a partir da reflexão na ação, não dá conta de novas situações, que colocam problemas que superam o repertório criado, exigindo uma nova busca, uma análise, uma contextualização, possíveis explicações, uma compreensão de suas origens, uma problematização, um diálogo com outras perspectivas, uma apropriação de teorias sobre o problema, o que se constitui uma investigação. A esse movimento, o autor denomina de reflexão sobre a reflexão na ação.

Sendo assim, sucintamente podemos destacar na concepção schöniana três tipos distintos de reflexão: a reflexão sobre a ação, a reflexão na ação e a reflexão sobre a reflexão na ação. A primeira consiste em pensarmos retrospectivamente sobre o que fizemos, almejando descobrir como nosso ato de conhecer-na-ação pode ter contribuído para um resultado inesperado.

Já a segunda, reflexão-na-ação, consiste em refletirmos no meio da ação, sem interrompê-la. Nosso pensamento nos conduz a dar nova forma ao que estamos fazendo e no momento em que estamos fazendo, possibilitando interferir na situação em desenvolvimento.

Diferentemente das duas anteriores, a reflexão sobre a reflexão-na-ação consiste no ato de pensar sobre a reflexão-na-ação passada, consolidando o entendimento de determinada situação e, dessa forma, possibilitando a adoção de uma nova estratégia. E esse movimento pode se caracterizar, ainda, como gerador de conhecimento sistematizado – uma narrativa em linguagem articulada que, refletindo a ação passada, possa se projetar no futuro como novas práticas.

Em outras palavras, a reflexão pode ocorrer simultaneamente com a ação ou depois da ação. No primeiro caso, estamos na “reflexão na ação” e no segundo, na “reflexão sobre a ação”. Se refletirmos durante a ação, reformulando o que estamos fazendo no momento da realização da ação, estamos inseridos no processo de reflexão sobre a ação e quando fazemos um retrospecto e reconstruímos mentalmente uma ação com o objetivo de analisá-la, estamos fazendo uma “reflexão sobre a ação”.

Embora, curiosamente, as ideias de Schön não se referiam especificamente à formação de professores, pois suas incursões iniciais tiveram

origem em seus estudos sobre a educação profissional num curso de arquitetura, mais precisamente a partir de sua crítica à racionalidade técnica16, que era a

prática predominante nas faculdades norte-americanas, elas foram rapidamente incorporadas por pesquisadores do mundo inteiro interessados na investigação sobre a formação de professores reflexivos.

Alarcão (2010), na tentativa de explicar a atração pelas ideias teóricas de Schön no campo educacional assevera:

O fascínio por esta nova conceptualização pode ser entendido se tivermos em consideração a crise de confiança na competência de alguns profissionais (que tendemos a generalizar), a reação perante a tecnocracia instalada, a relatividade inerente ao espirito pós-moderno, o valor hoje atribuído à epistemologia da prática, a fragilidade do papel que os professores normalmente assumem no desenvolvimento das reformas curriculares, o reconhecimento da complexidade dos problemas da nossa sociedade atual e a consciência de como é difícil formar bons profissionais (p. 45).

No que diz respeito ao campo educacional, Zeichner (2008, p. 539), referindo-se ao movimento da prática reflexiva, especialmente sobre a formação de professores, afirma que essa ideia envolve, à primeira vista, “o reconhecimento de que os professores devem exercer, juntamente com outras pessoas, um papel ativo na formulação dos propósitos e finalidades de seu trabalho e de que devem assumir funções de liderança nas reformas escolares”.

Do ponto de vista do professor, isso significa que o processo de compreensão e de melhoria de seu próprio ensino deve começar pela reflexão sobre sua própria experiência e que o tipo de saber advindo unicamente da experiência de outras pessoas é insuficiente.

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Essa preocupação de Schön pode ser constatada no trecho do seu livro Educando o Profissional Reflexivo, quando afirma: “A racionalidade técnica diz que os profissionais são aqueles que solucionam problemas instrumentais, selecionando os meios técnicos mais apropriados para propósitos específicos. Profissionais rigorosos solucionam problemas instrumentais claros, através da aplicação da teoria e da técnica derivadas de conhecimento sistemático, de preferência científico”. (SCHÖN, 2000, p. 15)

“Quando uma situação problemática é incerta, a solução técnica de problemas depende da construção anterior de um problema bem-delineado, o que não é, em si, uma tarefa técnica. Quando um profissional reconhece uma situação como única não pode lidar com ela apenas aplicando técnicas derivadas de sua bagagem de conhecimento profissional. E, em situações de conflito de valores, não há fins claros que sejam consistentes em si e que possam guiar a seleção técnica dos meios.” (SCHÖN, 2000, p. 17).

Concordamos com Zeichner (2008), quando afirma que o conceito “profissional reflexivo”, no campo educacional, carrega consigo a ideia de que a produção de conhecimentos novos sobre ensino não é papel exclusivo das universidades e o reconhecimento de que os professores também têm teorias que podem contribuir para o desenvolvimento de um conhecimento de base comum sobre boas práticas de ensino.

Contudo, o autor chama a nossa atenção quando examina os modos nos quais o conceito de reflexão tem sido usado na formação docente e aponta quatro pontos que podem minar o desenvolvimento real dos professores:

[...] (a) o foco sobre a ajuda aos professores para melhor reproduzirem práticas sugeridas por pesquisas conduzidas por outras pessoas e uma negação da preparação dos docentes para exercitarem seus julgamentos em relação ao uso dessas práticas; (b) um pensamento “de meio e fim”, o qual limita a essência das reflexões dos professores para questões técnicas de métodos de ensino e ignora análises dos propósitos para os quais eles são direcionados; (c) uma ênfase sobre as reflexões dos professores sobre o seu próprio ensino, desconsiderando o contexto social e institucional no qual essa atividade acontece; e (d) uma ênfase sobre como ajudar os professores a refletirem individualmente (ZEICHNER, 2008, p. 544).

De todo o modo, podemos observar que diferentes arcabouços conceituais têm sido desenvolvidos, ao longo dos anos, para descrever modos distintos de se definir o foco e a qualidade da reflexão, mas precisamos reconhecer que a “reflexão” por si mesma significa muito pouco. Todos os professores são reflexivos de alguma forma, e o que precisamos considerar, de fato, é o que queremos que os professores reflitam e como desencadear esse processo de reflexão.

Nesse sentido, partilhamos das ideias de Zeichner (2008), mais uma vez, quando questiona a conexão da reflexão docente com a luta por justiça social que existe em todos os países, e que hoje não se pode limitar a ideia da reflexão somente aos aspectos políticos da educação. A formação do professor reflexivo demanda outros olhares que devem ser levados em consideração. Os professores:

[...] precisam saber o conteúdo acadêmico, que são responsáveis por ensinar e como transformá-lo, a fim de conectá-lo com aquilo que os estudantes já sabem para o desenvolvimento de uma compreensão mais elaborada. Precisam saber como aprender sobre seus estudantes – o que eles sabem e podem fazer, e os recursos culturais que eles trazem para a sala de aula. Os professores também precisam saber como explicar conceitos complexos, conduzir discussões, como avaliar a aprendizagem discente, conduzir uma sala de aula e muitas outras coisas. A ligação da reflexão docente com a luta por justiça social significa que, além de certificar-se que os professores têm o conhecimento de conteúdo e o conhecimento pedagógico que eles precisam para ensinar, de uma maneira que desenvolva a compreensão dos estudantes (rejeitando um modelo transmissivo de ensino que meramente promove a memorização), precisamos nos certificar que os professores sabem como tomar decisões, no dia-a-dia, que não limitem as chances de vida de seus alunos; que eles tomem decisões com uma consciência maior das possíveis consequências políticas que as diferentes escolhas podem ter. (ZEICHNER, 2008; p. 546).

Essas ideias de Zeichner se aproximam das ideias defendidas por Shulman (2005) quando afirmam que o conhecimento de base do professor é sustentado por uma teia de relações, que envolve diversos conhecimentos: do conteúdo, dos aspectos didáticos em geral; do currículo; dos aspectos didáticos do conteúdo, dos alunos, dos contextos educativos e dos objetivos e finalidades da educação.

Alinhando com essa perspectiva, Ponte17 (2009) critica a formação de

professores que tem se desenvolvido nas últimas décadas. Segundo ele, geralmente, centra-se a formação num aspecto particular do ensino, desenvolvendo com os professores uma atividade técnica e rotineira, o que representa na maioria das vezes o encorajamento dos professores a “remendar” as franjas das suas práticas ao invés de fazer reexame total dessas práticas.

Sendo assim, essa formação não possibilita oportunidades de interações colegiais significativas dentro da comunidade de ensino. Não levam em consideração os contextos concretos em que os professores trabalham e as dificuldades que estes contextos levantam, e nem os desejos e necessidades dos participantes. Tampouco possiblitam aos professores o acesso a recursos intelectuais de fora da sua comunidade de ensino, nem mesmo incluem apoio de

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implementação na prática de novas ideias que, em última análise, proporcionem aos professores a oportunidade de refletir sobre a sua própria prática.

O autor assevera ainda que a formação continuada desenvolvida centra-se, frequentemente, nas discussões de temas gerais ligados à educação e são poucas as oportunidades de formação oferecidas para os professores, que se relacionam especificamente com o ensino da Matemática. Destaca ainda que um trabalho de formação continuada de professores, com foco na reflexão sobre a prática, deveria levar em conta quatro vertentes: a formação didática; a formação matemática; a formação educacional e a formação prática.

Outra contribuição importante sobre a formação do professor reflexivo advém das ideias defendidas por Pimenta (2010). A autora procura analisar a apropriação do referido conceito no Brasil, buscando situá-lo historicamente, à luz do movimento e das pesquisas sobre a formação de professores.

A autora critica a apropriação e a generalização do conceito, discutindo as suas bases políticas e ideológicas em confronto nas políticas de formação de professores empreendidas, recentemente, no Brasil. Assevera, postulando, que se faz urgente a transformação de tal conceito considerando as contradições que emergem de sua análise.

Em suas análises, Pimenta (2010), corroborando as ideias de Zeichner (2008), destaca a indiscutível contribuição da reflexão na perspectiva da formação de professores, na medida em que o sujeito professor, ao refletir sobre a sua prática, pode produzir conhecimentos. Tais conhecimentos são oriundos da intencionalmente e da sistematização dessa reflexão, o que pode significar, em última análise, a sua capacidade de problematizá-la à luz de uma teoria.

Contudo, a autora assinala que ao se adotar a perspectiva da reflexão como elemento potencializador da formação docente, alguns cuidados, porque não dizer limites, devem ser levados em consideração, tais como: “o individualismo da reflexão, ausência de critérios externos ponteciadores de uma reflexão crítica, a excessiva (e mesmo exclusiva) ênfase nas práticas, a inviabilidade da investigação nos espaços escolares e restrição desta nesse contexto” (PIMENTA, 2010, p. 43).

Nessa direção, Pimenta (2010) sintetiza alguns apontamentos que poderiam possibilitar a superação desses limites, a saber: (a) da perspectiva do professor reflexivo ao intelectual crítico reflexivo; (b) da epistemologia da prática à práxis; (c) do professor-pesquisador à realização da pesquisa no espaço escolar como integrante da jornada de trabalho dos profissionais da escola de pesquisadores da universidade; (d) da formação inicial e dos programas de formação contínua, que podem significar um descolamento da escola, aprimoramento individual e um corporativismo, ao desenvolvimento profissional; (e) da formação contínua que investe na profissionalização individual ao reforço da escola e do coletivo no desenvolvimento profissional dos professores.

Em face das discussões teóricas aqui apresentadas e tendo como ponto de partida as contribuições de Schön (2000) para a formação de um profissional reflexivo, em que ele sugere um triplo movimento – o conhecimento na ação, reflexão na ação e reflexão sobre a ação – bem como, a reflexão sobre a prática (PONTE, 2000, 2002; ZEICHNER, 2008; PIMENTA, 2010) é que pretendemos estender e ampliar o alcance dessa ideia para implantação de processos formativos, no âmbito da formação continuada de professores polivalentes.

Sendo assim, o nosso intuito é o de desencadear um processo reflexivo sobre a prática, especialmente, sobre questões relacionadas ao ensino da Matemática, mais especificamente às questões didáticas, conceituais e cognitivas, relacionadas ao ensino e à aprendizagem do Campo Conceitual Multiplicativo. Ao mesmo tempo, temos a pretensão de investigar o desenvolvimento desse processo.

Assim, temos clareza de que as ideias teóricas anteriormente descritas permeiam, sobremaneira, o desenvolvimento de todo nosso estudo, ao mesmo tempo em que fornecem princípios fundantes para a proposição de uma espiral de fluxo: modelo metodológico ação-reflexão-planejamento-ação que norteará o desenvolvimento do nosso estudo. O quadro 2.1 traduz de maneira esquemática esse modelo.

Quadro 2.1: Modelo da espiral ação- reflexão- ação-planejamento-ação

O desenvolvimento desse modelo começa pela parte central, ou seja, ação sobre o ensino. No nosso caso, significa para o professor ter um amplo diagnóstico a respeito das concepções matemáticas dos seus estudantes, concernentes ao Campo Conceitual Multiplicativo e refletir individualmente/ coletivamente sobre essas concepções. Após essa reflexão, à luz de uma reflexão teórica, planejar coletivamente novas atividades matemáticas para a próxima ação. Agir expandindo o Campo Conceitual Multiplicativo para, posteriormente, refletir individual/coletivamente sobre a ação realizada.

Em síntese, esse modelo permite a construção de vários instrumentos para: (a) reflexão/avaliação das etapas do processo, (b) autoformação e formação coletiva dos sujeitos, (c) amadurecimento e potencialização das apreensões individuais e coletivas, e, (d) articulação entre a pesquisa/ação/ reflexão/planejamento e formação.

Temos consciência de que, para execução desse modelo

teórico/metodológico, com vistas do desencadeamento de um processo reflexivo sobre a prática, é preciso romper com a ideia do individualismo docente e chegar ao trabalho coletivo com viés colaborativo. Isso significa repensar os espaços e

formas para o desenvolvimento desse processo, como também admitir o contexto escolar como principal “palco” para o desenvolvimento das ações formativas pautadas nessa perspectiva. Momento caracterizado pelo encontro entre pesquisadores e professores com vistas à formação de um grupo de trabalho em torno de um objetivo comum: refletir e encontrar alternativas para o ensino e aprendizagem de conceitos matemáticos, que nosso caso é nomeadamente o Campo Conceitual Multiplicativo.

2.4 O trabalho colaborativo: Um caminho possível para a