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7. A ENFERMAGEM NO PERÍODO EM ESTUDO

7.3. A Caminho da Profissionalização

7.3.1. A formação em enfermagem

A transmissão dos saberes em enfermagem fez-se, ao longo do tempo, através da prática. Pelo treino, pela observação de modelos, normalmente pessoas mais velhas e reconhecidas pela sua arte, iam-se incorporando modos de fazer e também de ser que foram configurando o ser enfermeiro. Mas a transposição para livros desses saberes pressupõe a ideia da necessidade de uma aprendizagem teórica, complementar e indissociável da aprendizagem prática e que pode, pela circulação do livro, abranger um número mais alargado de pessoas. O primeiro manual de enfermagem português conhecido até agora data de 1741 e é da autoria de Frei Diogo de Santiago (da Ordem de S. João de Deus). Na Postilla Religiosa e

Arte de Enfermeiros estão descritos procedimentos de caráter técnico mas também

instruções quanto ao comportamento e atitude do enfermeiro perante o doente. A edição do livro denota uma preocupação com a formação dos enfermeiros, neste caso os noviços do Convento de Elvas. Ao referir no título “Arte de enfermeiros” considera haver conhecimentos próprios que definem um determinado perfil desejável para exercer o ofício de enfermeiro.

Nos finais do século XIX e princípio do século XX começam a surgir, em Portugal, escolas de enfermagem, iniciando-se assim “o processo de dissociação

do trabalho de Enfermagem da lida doméstica a que estava associada” (Nunes,

2003, p. 26). Como já referimos anteriormente são os médicos que sublinham a necessidade de uma formação mais rigorosa do pessoal de enfermagem como forma de responder às novas necessidades decorrentes do desenvolvimento da medicina. As viagens científicas realizadas e o acesso a publicações médicas permitiram o contacto com a realidade da formação em enfermagem, sobretudo em França. Costa Simões, Miguel Bombarda e Curry Cabral, como temos vindo a referir, nas suas intervenções sublinharam a necessidade de se criar “um corpo d’

enfermagem convenientemente educado e instruído” (Cabral, 1915, p. 191),

reiterando a exigência de aprendizagem técnica a par da exigência da boa conduta moral.

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As primeiras tentativas de criação de escolas de enfermagem são de curta duração. A primeira, em 1881 em Coimbra, pela mão e a expensas do médico Costa Simões terminou quando este saiu da cidade. A segunda, em 1886 no Hospital Real de S. José e Anexos, por proposta do enfermeiro-mor Tomás de Carvalho. Procurava-se dar formação aos “empregados das enfermarias” do hospital e disso ficou encarregue o cirurgião Artur Ravara. O curso terminou três anos depois sem sucesso porque, segundo Artur Ravara, os alunos eram analfabetos (Costa-Sacadura, 1950). Curry Cabral, no entanto, identifica a impossibilidade dos alunos cumprirem, ao mesmo tempo, as exigências de frequência do curso e as devidas ao cumprimento das suas obrigações profissionais (Cabral, 1915). No Porto abriria, em 1886, a Escola de Enfermeiros no Hospital de Santo António da Santa Casa da Misericórdia, destinada a dar formação ao pessoal do hospital e também a indivíduos exteriores à instituição (Nunes, 2003).

Após a tentativa gorada de abertura duma escola de enfermagem no Hospital Real de S. José e Anexos Curry Cabral, em 1901, insiste na necessidade da formação de enfermeiros. Enquanto enfermeiro-mor, na sua proposta de reorganização do referido hospital, considera que a criação duma escola de enfermeiros, com novas exigências de habilitações para admissão no curso, permitirá garantir a competência do pessoal de enfermagem (Soares, 1997). A Escola Profissional de Enfermeiros entrou em funcionamento em outubro de 1901, “cercada pela sympathia de todo o corpo medico, desejada e até pedida pela

Associação dos médicos portuguezes” (Cabral, 1915, p. 197). Ciente da dificuldade

em atrair candidatos ao curso, Curry Cabral definiu, como um estímulo, a preferência aos diplomados pela escola na admissão e promoção nos quadros do hospital, e fez anúncio público da abertura do curso. No relatório que temos vindo a citar (Cabral, 1915), Curry Cabral lamenta o facto de poucos terem sido os candidatos do exterior e também a dificuldade de compatibilizar a frequência das aulas com o trabalho nas enfermarias, afirmando que dessas “circunstancias vem a

resultar grande diminuição na rapidez do movimento de regeneração profissional a que a Escola se destino” (p. 199). Mas denota também algum otimismo quando

refere os bons resultados alcançados e o facto de alguns alunos se terem distinguido e “contribuido para a sensível melhoria do serviço technico

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Do preâmbulo do decreto95 que define a reorganização dos Hospitais Civis de Lisboa96·,em 1918 podemos depreender que a formação dos enfermeiros continuou muito deficiente, ficando aquém das expectativas criadas e que a sua situação profissional também não sofreu melhorias significativas:

“Deixam muito a desejar os serviços de enfermagem e é mau o recrutamento do seu pessoal, porque é menos de miseravelmente retribuído, apesar de ser pesado o encargo e esgotante a missão desta prestante classe. Urgia pôr termo a semelhante situação, absolutamente inadiável, por ser a fome sempre má conselheira, tratar-se dos funcionários do Estado que pior remunerados são e sem sombra de equidade com quaisquer outros, alêm da sua imediata melhoria ser antiga e constante reclamação do corpo clínico, dos próprios interessados e de todos os que conhecem a sua desgraçada existência. A completa remodelação dos serviços de enfermagem, da Escola Profissional de Enfermagem, e a fixação do critério da competência, idoneidade moral e aptidão para tal modo de vida, no recrutamento do pessoal, constituíram preocupação desta organização como precisam de ser pontos cardiais a orientar as direções hospitalares, se quiserem ter e criar para todo o país serviço de enfermagem e não um nateiro de curandeiros ou enfermeiros clínicos, como os hospitais têm produzido por quasi exclusiva culpa dos seus clínicos.”

A Escola passou a designar-se Escola Profissional de Enfermagem (art.114º); criaram-se os cursos de enfermagem geral (com a duração de dois anos) que permitia o acesso ao quadro de enfermagem dos hospitais e o curso complementar (com a duração de um ano) exigido para a nomeação dos enfermeiros chefes (art.116º e paragrafo único); eram admitidos indivíduos dos dois sexos habilitados com o exame da instrução primária (art. 119º); era garantida vaga no quadro de enfermagem aos praticantes com bom comportamento e comprovada aptidão para o serviço hospitalar após a conclusão do curso (art.120º).

A mudança de designação da escola configura, segundo Nunes (2003), a assumpção da enfermagem como profissão na terminologia oficial. Por outro lado o facto de se passar a exigir o diploma da Escola para nomeação do pessoal definitivo dos quadros dos Hospitais Civis de Lisboa (art. 115º) inicia o processo de reconhecimento do exercício da profissão apenas por detentores de diploma (Nunes, 2003). Se atentarmos que no final do preâmbulo do decreto acima citado se refere a necessidade de eliminar a proliferação de “curandeiros” compreendemos o esforço que foi empreendido no sentido da profissionalização da

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Decreto nº4563, Diário do Govêrno nº155, serie I, de 12 de Julho de 1918.

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Com a República o Hospital Real de S. José e Anexos passou a designar-se por Hospitais Civis de Lisboa e pela reorganização de 1918 incluíam-se: o Hospital de S. José (policlínico geral); o Hospital de S. Lázaro (escola de enfermagem com serviço clínico anexo); o Hospital do Desterro (urologia, dermatologia, sifiligrafia e venéreo); o Hospital Estefânia (policlínico geral para mulheres e crianças); o Hospital de Arroios (policlínico geral com gafaria anexa, provisória); o Hospital do Rêgo (doenças infetocontagioso) e o Dispensário Popular de Alcântara (consultas externas).

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enfermagem dotando-a dos instrumentos legais para tal: formação em contexto escolar e existência dum diploma para o seu exercício.

A preocupação pela formação dos alunos de Enfermagem é bem patente nas atividades organizadas para além do ensino teórico ministrado: visitas de estudo, conferências e palestras, sessões cinematográficas, são descritas por Costa- Sacadura (1950, pp. 16-18) durante os primeiros anos de funcionamento da escola. Com uma redação idêntica e idênticas finalidades foi criada em 1919 a Escola de Enfermagem dos Hospitais da Universidade de Coimbra, também integrada na reorganização dos serviços dos Hospitais da Universidade de Coimbra97.

O regulamento da Escola Profissional de Enfermagem dos Hospitais Civis de Lisboa só será publicado em 192298, localizando a Escola em novo edifício, no Hospital de S. Lázaro. Introduz algumas alterações como a possibilidade de serem criados cursos de enfermagem de especialidades (paragrafo único), elenca as disciplinas que compõem o curso (art. 4º), estabelece as equivalências entre o antigo curso da Escola Profissional de Enfermeiros e o atual (art. 5º), define a duração do ano escolar e os períodos de exames, a existência dum Conselho Escolar com atribuições de caráter pedagógico e define a atribuição de prémios aos alunos com melhor aproveitamento.

Apesar do esforço de regulamentação da Escola e do curso, quando Costa- Sacadura retoma o cargo de diretor da Escola em 1928, após quatro anos de ausência, refere que os alunos aí presentes (cerca de 300) exercem as mais variadas atividades profissionais, não cumprem os requisitos de habilitações e são de moral duvidosa (Costa-Sacadura, 1942, p. 9). A forma como o médico se refere ao assunto mostra que o funcionamento da Escola estava mais dependente da ação do seu diretor do que dos regulamentos existentes. De novo são introduzidas alterações que tornam mais exigente a formação dos alunos: estágio obrigatório, diário das 8h às 20h, com pausa para almoço, admissão sujeita a exame feito pelo Instituto de Orientação Profissional (Costa-Sacadura, 1950).

A Escola de Enfermagem será de novo reorganizada99 em 1930 porque se considera não corresponder “às necessidades de um bom recrutamento do pessoal

de enfermagem”. A leitura do preâmbulo do decreto permite identificar falhas na

formação dos alunos nomeadamente nos estágios e, uma vez que o curso de

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Esta reorganização foi publicada no decreto nº 5736 no Diário do Govêrno nº 98, I Serie de 10 de Maio de 1919.

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O regulamento foi publicado no decreto nº 8505 no Diário do Govêrno nº 244, I Serie de 25 de Novembro de 1922.

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Reorganização expressa no decreto nº 19060 no Diário do Govêrno nº 274, I serie de 24 de Novembro de 1930.

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enfermagem é essencialmente prático, devia-se exigir uma maior frequência e assiduidade dos alunos aos estágios para garantir um melhor aproveitamento. Também a dispersão pelos serviços dos Hospitais Civis dificultava a necessária fiscalização dos alunos. Assim a Escola de Profissional de Enfermagem passa a denominar-se Escola de Enfermagem de Artur Ravara (art. 114º) e ficará localizada no Hospital de Santo António dos Capuchos (art. 123º) uma vez que este oferece melhores condições (instalações modernas, diversidade de serviços clínicos) para a realização dos estágios. Os alunos, de ambos os sexos, passam a ter matrícula definitiva após exame prévio e passa a haver número limitado de admissões (art. 119º). Mantém-se a possibilidade de contratar enfermeiras estrangeiras para “coadjuvar a educação profissional e moral dos alunos” (art. 124º).

A Escola de Enfermagem de Artur Ravara em Lisboa e a Escola de Enfermagem dos Hospitais da Universidade de Coimbra serão durante muito tempo as duas escolas de enfermagem oficiais existentes no país (Soares, 1997). Escolas particulares serão também por um longo período duas: a Escola de Enfermeiros no Hospital de Santo António da Santa Casa da Misericórdia do Porto, destinada a dar formação ao pessoal do hospital e também a indivíduos exteriores à instituição que abriu em 1886 e no Hospital de S. Marcos da Santa Casa da Misericórdia de Braga, em 1912, foi criado um curso de enfermagem destinado ao pessoal da instituição (Soares, 1997).

As escolas particulares, sobretudo religiosas, surgirão em maior número nos finais da década de 30, fruto da orientação ideológica do Estado Novo que possibilitou o recrudescimento das ordens religiosas em Portugal.