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6. O UNIVERSO FEMININO NO PERÍODO EM ESTUDO

6.2. Da Ditadura ao Estado Novo: de volta ao lar

“Camarada e amigo que me escutas, ouve:

Se tens o culto da tua profissão e pelo trabalho te queres impor, (…) se na tua casa humilde, ao regressares do escritório ou da oficina, te espera um coração de mulher ou o sorriso duma criança, se ao calor amigo do teu lar, naquela paz, naquele verdadeiro sentimento de solidariedade humana que nele se respira encontras o lenitivo para todas as amarguras que na vida te esperam (…)”67

Tal como no campo político, também no que respeita à mulher o discurso predominante no período da Ditadura e início do Estado Novo foi combater o que foi considerado o desregramento social dos costumes que a I República tinha possibilitado, nomeadamente com as suas leis a favor do divórcio (Guinote, 1997). Para os setores mais conservadores da sociedade portuguesa a possibilidade de dissolver o vínculo sagrado do matrimónio punha em causa a família e, por consequência, a organização da sociedade (Vaquinhas, 2011). As mulheres portuguesas, sobretudo as mulheres urbanas, adotaram algumas “modas” que,

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A única mulher que votou foi Carolina Beatriz Ângelo nas primeiras eleições constituintes em 1911, invocando a sua condição de chefe de família, ter mais de 21 anos e saber ler e escrever (tinha formação superior em medicina), condições formuladas na Lei Eleitoral da República. Além disso, argumentou que o termo “cidadãos portugueses” incluía tanto homens como mulheres (Samara, 2007).

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Discurso proferido numa sessão sobre as bases sociais do Estado Novo promovida pelas comissões organizadoras dos primeiros sindicatos nacionais e publicado no Diário de Noticias de 19 de Novembro de 1933.

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vindas do exterior, eram sinais de emancipação feminina: as saias subiram, os cabelos começaram a usar-se curtos (os cortes à “garçonne” ou entre nós os “cabelos à Joãozinho”), invadiram o espaço público para participar na política mas também para fazer compras ou tomar chá.

Inicia-se então, por oposição aos discursos de emancipação feminina, um discurso de valorização da mulher como mãe, tornando-a a salvaguarda da moral na família e sustentáculo da Nação (Pimentel, 2000). No discurso do Estado Novo o indivíduo só existe na família sendo esta a célula base da sociedade, origem e fundamento da organização nacional, local de transmissão dos valores tradicionais que poderão renovar a Nação e acabar com a desordem que a I República tinha trazido, ao sublinhar o primado do indivíduo livre no seio da sociedade (Vaquinhas, 2011). E será à mulher, no seu papel de mãe, que caberá ser a educadora dos filhos tornando-se o garante da transmissão do ideário do Estado Novo. Pimentel (2000) identifica as seguintes ideias de Salazar sobre a mulher:

“a aparente igualdade de valor na diversidade de funções, a distinção entre

a mulher solteira e a mulher casada, a divisão de espaços – público/privado – entre homens e mulheres, a defesa da família tradicional da qual a mulher constituía o ‘esteio’, a luta contra o inimigo liberal que a teria atirado para o mercado de trabalho, onde ela entraria em concorrência com o homem, e, finalmente, o propósito do seu retorno ao lar, através da valorização do ‘belo’ papel de mãe e de esposa.” (pp. 27-28)

Salazar considerava que as funções da mulher na família eram tão importantes quanto as do homem, mas enquanto este deveria trabalhar no exterior e garantir o sustento da família, aquela deveria garantir, em casa, a educação dos filhos. A mulher casada não deveria ter necessidade de trabalhar fora de casa, pois isso constituía a origem da desagregação da família, sendo que o trabalho no exterior era aceitável, apenas nas mulheres solteiras sem família ou então com responsabilidades de prover ao sustento familiar. O discurso de valorização do trabalho da mulher no lar procurava “eliminar a concorrência feminina de um

mercado de trabalho onde havia desemprego e no qual algumas empresas competiam desregrada e deslealmente com outras, à custa da mão de obra feminina e infantil, mais barata.” (Pimentel, 2000, p. 29). Mas as mulheres

continuaram a trabalhar fora de casa68, particularmente na indústria, o que levou à necessidade da regulação do trabalho feminino, definida no Estatuto do Trabalho Nacional, elaborado após o estabelecimento da Constituição de 1933. Já

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Em 1930 constituíam 27,4% da população ativa total, considerando as que trabalham por conta própria, do Estado ou de empresas particulares (Pimentel, 2000, p. 49).

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anteriormente a preocupação pela presença feminina nas fábricas levara à elaboração de leis restritivas do trabalho feminino69.

A consciência de que as elites femininas católicas e conservadoras poderiam ser apoiantes da nova ordem fez com que lhes fosse dado espaço de intervenção política pública nas áreas da educação e assistência, agindo como “modelos” na tarefa de eliminar os vícios que a I República tinha introduzido na sociedade portuguesa. Foi durante a Ditadura Nacional (1931) que foi dado o direito de voto às mulheres, mas apenas em algumas circunstâncias: enquanto chefes de família e nas eleições para as juntas de freguesia. O direito de voto foi, mais tarde (1933), alargado às solteiras, maiores e com idoneidade moral para a eleição das juntas de freguesia, e para as câmaras municipais para as mulheres com curso secundário ou superior (Pimentel, 2000, p. 30).

Apesar do enaltecimento do papel da mulher na família no discurso do Estado Novo, em termos de legislação, a mulher mantinha a dependência em relação ao marido devendo-lhe obediência, necessitando da sua autorização escrita para publicar, adquirir ou alienar bens, administrar os seus próprios rendimentos, exercer comércio e viajar para fora do país, por exemplo (Pimentel, 2000, p. 34). A família idealizada pelo Estado Novo baseava as suas relações numa “hierarquia natural”: no topo estava o pai e abaixo deste a mãe e os filhos; o pai era a autoridade, a mãe a sua colaboradora enquanto educadora dos filhos; obediência e respeito guiavam as relações entre todos (Mónica, 1978); a família espelhava, em suma, a sociedade hierarquizada e repressiva que se manteria até 1974.

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Em 1927, durante a Ditadura Militar, foi proibido o trabalho noturno, de pé ou violento durante a gravidez e nas quatro semanas após o parto; em 1932, no governo de Ditadura Nacional, as mulheres não podiam trabalhar mais de onze horas nem fazer horário noturno (Pimentel, 2000, p. 43).

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