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7. A ENFERMAGEM NO PERÍODO EM ESTUDO

7.2. As Enfermeiras portuguesas na I Guerra Mundial

“A Comissão de Enfermagem pesando bem as responsabilidades que assume, não tem duvida de aceitá-las e de se comprometer a organizar esse verdadeiro exercito de salvação, que será o inicio dum belo movimento dignificador para a mulher portuguesa. Todos os sacrifícios, todos os trabalhos lhe serão leves se ao fim de algum tempo de persistente e energico esforço a “Comissão” poder dizer bem alto: ‘que são da sua inteira confiança as mulheres que se dispõem a cumprir nobremente a mais bela das missões, que é a de amparar e cuidar daqueles que á Patria fizeram o sacrifício máximo da sua vida e do seu sangue ‘ ”.80

Poucos meses depois da deflagração da I Guerra Mundial em agosto de 1914 o governo português foi autorizado pelo Congresso a intervir no conflito quando julgasse necessário e tendo em conta os deveres resultantes da nossa aliança com

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Como refere Nunes (2003, p.36) os Estatutos da Escola Profissional de Enfermeiros do Hospital de S. José foram aprovados pelo Decreto nº 240 publicado no Diário do Govêrno, I serie, de 12 de Setembro de 1901.

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Do preambulo do artigo que transcreve o decreto que autoriza a Cruzada das Mulheres Portuguesas a criar um curso de enfermagem de guerra e publicado no jornal “A Semeadora” em 15 de setembro de 1917.

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a Inglaterra (Oliveira Marques, 1991). A declaração de guerra a Portugal por parte da Alemanha aconteceria em março de 1916 e o primeiro contingente do Corpo Expedicionário Português partiria para a Flandres em janeiro de 1917. No dirimir de argumentos entre anti-intervencionistas e intervencionistas sobre a participação de Portugal na frente europeia da guerra, estes últimos fizeram apelo ao heroísmo e invocaram razões morais: a guerra seria o palco onde sobressairiam as grandes virtudes do povo português. É neste contexto que alguma imprensa81 e algumas organizações feministas iniciaram desde cedo (1915) uma propaganda patriótica, apelando à participação das mulheres no esforço de guerra, um campo até aí exclusivamente masculino: “ (…) quando em Portugal se pensou a sério na guerra e

se começou a falar do envio duma divisão de soldados portugueses para a Europa, logo se constitui uma comissão composta por quatro senhoras, que adotaram o nome Pela Pátria, e que tinha o duplo fim de fazer a propaganda patriotica e ao mesmo tempo cuidar de angariar donativos e metodisar o trabalho feminino para juntar roupas e agasalhos para os nossos soldados.”82

Por iniciativa de Alzira Dantas Machado, esposa do Presidente da República de então (Bernardino Machado) constituiu-se em março de 1916 “A Cruzada das

Mulheres Portuguesas” que, de acordo com a sua fundadora, tinha como principal

objetivo “evitar a confusão e perturbação que á sociedade portuguesa traria um

estado de guerra, que não tivesse dentro do país uma grande força organizadora e metódica a evitar a rudeza do choque e a adoçar as suas consequencias logicas”83.

A Cruzada era constituída por várias comissões que, trabalhando de forma autónoma, procuravam dar resposta às necessidades resultantes da presença de soldados portugueses na guerra

“o fim da “Cruzada” como o das sub-comissões espalhadas por todo o país é: conhecer das necessidades das famílias dos soldados em campanha, procurar trabalho ás mulheres conforme as suas aptidões, forças e tempo que lhes deixe o seu primacial dever de mães. Dar subsidios ás que não possam trabalhar. Recolher as crianças órfãs. Fundar escolas, creches e cantinas para os que estiverem a cargo das famílias, auxiliar a agricultura e as industrias locais de modo

81 Está neste caso o jornal mensal “A Semeadora”, propriedade da Empresa de propaganda

feminista e de defesa dos direitos da mulher. Tinha como secretaria da redação Anna de Castro Osório. Publicou-se de julho de 1915 a dezembro de 1918.

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Os artigos apelando à participação das mulheres no esforço de guerra foram uma constante na imprensa feminista de que é exemplo “As mulheres e a guerra” publicado no jornal “A Semeadora” em 15 de Julho de1915.

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A Cruzada das Mulheres Portuguesas manteria uma coluna regular no jornal “A Semeadora” divulgando a sua ação como é exemplo este artigo publicado em 15 de maio de 1916.

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a fomentar a riqueza em todo o país sangrado por tantas despezas extraordinárias e pela mobilização, que tantos braços masculinos tira ao trabalho da terra.”84

A partir da criação da Cruzada, a Comissão de Hospitalização e Enfermagem trabalhou intensamente junto do poder político no sentido de serem criadas condições para resolver as crescentes necessidades decorrentes da participação de Portugal na frente europeia da guerra e em África. Assim foi cedido à Comissão o edifício do Colégio de Campolide onde deveria ser organizado um serviço de assistência médica e cirúrgica aos soldados mobilizados e suas famílias e também um curso de enfermagem85.

Em 21 de agosto de 1917, o governo publicava o decreto nº 3306 autorizando a Comissão de Enfermagem da Cruzada a criar “um curso de enfermagem

destinado a preparar enfermeiras para os hospitais militares do país e dos corpos expedicionários”86. O decreto explicitava as condições para a frequência do curso:

ter entre vinte e trinta anos (quarenta enquanto durasse a guerra), robustez física e não sofrer de doença contagiosa, ter a instrução primária ou fazer prova de educação literária equivalente junto da Comissão de Enfermagem, ”ter bom

comportamento civil e perfeita dignidade moral”, ser de nacionalidade portuguesa

ou dum país aliado, neste caso com residência em Portugal há bastante tempo (art. 2º). Era dada preferência a mulheres com prática de enfermagem em hospitais, com frequência de cadeiras do curso de medicina e com conhecimento da língua inglesa ou francesa (art. 3º). A obtenção do diploma dependia da aprovação no curso após a realização dum exame perante um júri no qual estaria um médico nomeado pelo Ministério da Guerra e prática com aproveitamento durante um mês num hospital militar (art. 4º). O curso era fiscalizado pelo Ministério da Guerra, e durante o período de prática as enfermeiras recebiam um subsídio diário também da responsabilidade do Ministério. No mesmo Diário do Governo o decreto nº 3307 estabelece as condições de recrutamento de enfermeiras para os serviços de saúde do exército, bem como os direitos (transportes, alojamento, alimentação) e vencimentos (subsídios, reformas) que deviam auferir.

A propaganda patriótica levada a cabo pela Cruzada e pela Comissão de Enfermagem, quer na imprensa quer em sessões públicas por todo o país, conseguiu a adesão das mulheres portuguesas ao curso de enfermagem de guerra:

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À medida que se foi estruturando também os artigos da responsabilidade da Cruzada das Mulheres Portuguesas foram cada vez mais evidenciando a sua ação como neste artigo publicado no jornal “A Semeadora” de 15 de outubro de 1916.

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Esta cedência foi publicada no decreto nº 2662 do Diário do Govêrno nº 201, serie I de 3 de Outubro de 1916.

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“a Comissão recebe todos os dias cartas de todo o país pedindo informações para

frequentar os cursos e prestando-se, a maior parte, a seguirem como enfermeiras de guerra para os hospitais portugueses de França”87. O apelo aos sentimentos

patrióticos, o enaltecimento da missão da enfermeira e a comparação com a Inglaterra cujas enfermeiras de guerra “são consideradas modelares em todo o

mundo e conquistaram a posição honrosa que teem á força de inteligencia, de constancia, de dignidade e de trabalho”88, permitiu que no primeiro curso se

inscrevessem quarenta senhoras.

Durante o período de intervenção de Portugal no conflito outras instituições criaram cursos de enfermagem de guerra: a Cruz Vermelha Portuguesa, o Hospital Militar do Porto e até os Escuteiros de Portugal organizaram cursos de primeiros socorros89.

Para lá dos apelos patrióticos, o facto de muitas “senhoras da primeira

sociedade”90 frequentarem os cursos de enfermagem e estarem envolvidas na sua organização trouxe visibilidade à profissão. A enfermagem “saltou” para as páginas dos jornais. Relatava-se o esforço e os sucessos das alunas, o que era ensinado e o rigor da sua preparação, criando assim uma imagem de credibilidade numa atividade até aí pouco considerada. Associou-se de forma inequívoca a enfermagem à figura feminina: a enfermeira, de moral irrepreensível, estaria ao lado dos soldados feridos e doentes, tratando-os com carinho e abnegação, aliviando o seu sofrimento, estaria a

“representar as suas mães, as suas mulheres e as suas irmãs; representar,

acima de tudo, nobilissimo e honesto caracter da mulher da nossa terra, dessa mulher abandonada tantas vezes e sempre lembrada, como mãe amantissima e dedicadissima através de todos os perigos e aventuras”91

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Afirmou-se que a enfermagem era “uma das mais nobres e mais dignas

profissões, que em todos os paises civilisados do mundo está já hoje entregue á competencia excecional das mulheres”92

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Se por um lado não questionamos a genuína convicção dos membros da Cruzada das Mulheres Portuguesas ao defender a enfermagem como uma profissão digna de ser exercida pelas mulheres, por outro não podemos deixar de

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A Cruzada das Mulheres Portuguesas manteria uma coluna intitulada Enfermagem de Guerra no jornal “A Semeadora” onde divulgava tudo o que dizia respeito ao Curso de enfermagem de Guerra como neste artigo de 15 de agosto de 1917.

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Palestra ás Senhoras candidatas a enfermeiras de guerra da Cruzada das Mulheres Portuguesas publicada no jornal “A Semeadora” de 15 de novembro de 1917.

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Estes também publicitados no Diário de Noticias de 26 de maio de 1916.

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Está neste caso, por exemplo, a filha do Ministro da Guerra, Norton de Matos.

91 Artigo publicado no jornal “A Semeadora” com o título “Enfermeiras” em 15 de setembro de 1917. 92

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referir que os vencimentos das enfermeiras eram menores que os dos seus colegas masculinos e que os médicos, que defendiam a enfermagem feminina93, viam a mulher como alguém mais obediente, paciente e capaz de compaixão e por isso mais adequada à profissão (Silva, 2008).

A participação das mulheres portuguesas como enfermeiras na I Guerra Mundial trouxe visibilidade à enfermagem e tornou mais aceitável socialmente a presença feminina na profissão. Apesar de a enfermagem continuar a ser exercida por homens e mulheres nos grandes hospitais do país intensificou-se, a partir deste momento, a discussão em torno da ideia da enfermagem como uma profissão preferencialmente feminina. E este discurso teria a sua consagração quando a ideologia do Estado Novo reserva às mulheres solteiras algumas profissões de caráter social como o professorado e a enfermagem. Pretendendo afirmar na sociedade uma separação dos sexos, criou uma educação especificamente feminina afastando as raparigas do liceu (destinado a criar uma elite masculina) e integrando-as em cursos técnicos ou nas Escolas do Magistério Primário (Pimentel, 2000, p. 403).