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2 A ANÁLISE DO DISCURSO E AS BASES EPISTEMOLÓGICAS:

2.4 A FORMA-SUJEITO, SUA POSIÇÃO E FRAGMENTAÇÃO

Pensando o sujeito na AD, mais especificamente, a posição do sujeito nos discursos produzidos pela Frente Parlamentar Evangélica (FPE), propomos algumas reflexões sobre a forma-sujeito e sua posição dentro da formação discursiva. À vista disso, este tópico revisita alguns conceitos acerca da noção de sujeito em Michel Pêcheux, partindo da Análise Automática do Discurso (1969) e de outras obras que a sucederam. Para entendermos o sujeito em Pêcheux, precisamos entender duas teses. A primeira delas é o assujeitamento ideológico segundo a qual o indivíduo é interpelado ideologicamente pela estrutura social na qual está inserido. A segunda é uma teoria não subjetiva da subjetividade, inspirada na noção de sujeito em Lacan.

De início, vale salientar que não se pode falar de Análise do Discurso sem se falar de sujeito. E para entendê-lo, do ponto de vista pecheutiano, precisamos refletir sobre o processo de formação de subjetividades e sua relação com o inconsciente, pensando, aqui, uma crítica à teoria idealista de sujeito (PÊCHEUX, 1995).

Segundo Pêcheux (1995, p. 153-154), a teoria idealista/o engano idealista está atrelado ao “teatro da consciência”, caracterizado pela ilusão de que o sujeito é a origem daquilo que diz, estando marcado pelo “eu penso, eu falo, eu sou, eu vejo”. Uma teoria que coloca o sujeito no centro de sua autonomia, como portador de uma consciência individual que define o que diz e o que faz. Para Pêcheux, o sujeito é constituído pelo esquecimento dos diversos discursos que o atravessam e o determinam. Sobre esse processo, Pêcheux (1995) fala de dois tipos de esquecimento.

O esquecimento nº 2 é aquele através do qual o sujeito "seleciona” dentro da Formação Discursiva que o domina, “no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia formulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX, 1995, p.173). A escolha desses enunciados se dá sem que o sujeito perceba o apagamento daquilo que não é selecionado por ele.

O esquecimento nº 1, por sua vez, está associado à noção de “sistema inconsciente” e “recalque inconsciente”, propostos por Pêcheux (1995). A partir dele (do esquecimento), o sujeito tem a ilusão de que é o centro do dizer. Desse modo, esquece os processos parafrásticos inerentes à fala e se coloca como a fonte do que diz. Orlandi (2012, p. 35) denomina-o de esquecimento ideológico, tendo em vista que “resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de sermos origem do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos pré-existentes.”

São as falas do outro no inconsciente que marcam uma quebra na teoria idealista de sujeito. Em vista disso, essas vozes (discursos) demarcam uma concepção de sujeito fragmentado dentro de sua interioridade, portanto, não se pode falar de sujeito de forma unívoca, mas de um sujeito social. Retomando Lacan, Pêcheux (1995, p. 133) escreve que “o inconsciente é o discurso do Outro” e que “o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do outro” (PÊCHEUX, 1995, p.183).

Vale salientar que, de certa forma, o “recalque do inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que podemos chamar como processo do Significante na interpelação e na identificação (PÊCHEUX, 1995, p. 133-134).

Em vista disso, é interessante pensar como o analista do discurso deve proceder frente à posição do sujeito dentro da formação discursiva. Aparentemente, a teoria pecheutiana apresenta-se bastante determinista, motivo pelo qual muitos críticos falam de um apagamento do sujeito. Pensando nisso, gostaríamos de fazer algumas observações sobre as diferentes posições do sujeito dentro de uma formação discursiva, para assim entendermos os processos de identificação e desidentificação do sujeito diante da estrutura social. Para tanto, adotaremos as reflexões realizadas por Indursky (2008), que tem se debruçado em estudar a Análise do Discurso pecheutiana, em especial, a noção de sujeito que, aqui, nos interessa.

Indursky (2008) discorre sobre a noção do sujeito como uma teoria não cristalizada e estanque, tendo em vista que o próprio Pêcheux revisitou a sua tese inicial sobre o sujeito e a reformulou no decorrer da consolidação da AD. Nesse interim, a Análise do Discurso tem um “quadro teórico que gera reflexão, que se interroga constantemente e para o qual a análise não implica a aplicação mecânica de conceitos, noções e modelos já formulados anteriormente” (INDURSKY, 2008, p. 09), tendo o próprio Pêcheux realizado diversas considerações acerca de conceitos anteriores.

Dando continuidade, Indursky (2008) propõe uma reflexão sobre a reconstrução da forma-sujeito pensada por Pêcheux no início da AD. Para tanto, vale salientar que Pêcheux diferencia sujeito da forma-sujeito, categorias que dialogam entre si, mas que tem significados diferentes. Na AD, o sujeito não deve ser entendido como indivíduo ou mesmo como sujeito empírico das relações sociais. Pelo contrário, refere-se a um sujeito do discurso, “carregado de marcas sócio-históricas-ideológicas que se imagina ser a origem do que diz” (SANTOS, 2013, p. 229). Isso significa dizer que o sujeito não é um lugar vazio, pelo contrário, está preenchido da forma-sujeito, ou seja, do sujeito do saber de determinada Formação Discursiva, também chamado por Pêcheux (1995) de sujeito universal, por sua vez, identificado com os saberes da formação discursiva no qual está inscrito.

De acordo com Pêcheux (1995, p. 266) “a forma-sujeito do discurso, na qual coexistem, indissociavelmente, interpelação, identificação e produção de sentido, realiza o nonsens da produção do sujeito como causa de si sob a forma da evidência primeira”. Isso implica numa identificação através da qual a forma-sujeito “simula o interdiscurso” articulando-se em “co-referência” (PÊCHEUX, 1995, p. 167).

Vale salientar, entretanto, que embora a concepção de forma-sujeito traga à tona um processo de total assujeitamento à estrutura social, pensando, aqui, uma dada formação social, ideológica e discursiva, ele (o sujeito), encontra no próprio processo discursivo formas de resistência. É isso que na AD costuma-se chamar de fragmentação da forma-sujeito, em diferentes tomadas de posição.

A primeira dessas posições é denominada por Pêcheux (1995) de superposição do sujeito. A segunda refere-se ao sujeito da contraidentificação e, a terceira, ao sujeito da desidentificação. A superposição revela a plena e total identificação do sujeito do discurso com a forma-sujeito da formação discursiva que o afeta; por esse motivo, Pêcheux (1995, p. 215) o denomina de “bom sujeito”. Sobre ele, escreve-se:

[...] consiste numa superposição (um recobrimento) entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, de modo que a “tomada de posição” do sujeito realiza seu assujeitamento sob a forma do “livre consentimento”: essa superposição caracteriza o discurso do “bom sujeito” que reflete espontaneamente o Sujeito (PÊCHEUX, 1995, p. 215).

Essa reflexão espontânea de que fala Pêcheux acima está associada à sua plena identificação com a forma-sujeito. Essa posição fala de uma “perfeita” acomodação ideológica através da qual o sujeito não questiona, não duvida e não se opõe ao discurso. A segunda

modalidade analisada por Pêcheux (1995, p. 215) pode ser compreendida como sujeito da contraidentificação, que ele denominará de “mau sujeito”. Neste caso,

[...] o sujeito da enunciação “se volta” contra o sujeito universal por meio de uma “tomada de posição” que consiste, desta vez, em uma separação (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação revolta... com respeito ao que o “sujeito universal” lhe “dá a pensar”: luta contra a evidência ideológica, sobre o terreno dessa evidência, evidência afetada pela negação, revertida a seu próprio terreno.

Essa modalidade torna-se possível quando o sujeito se contraidentifica com a forma- sujeito que organiza os saberes da formação discursiva, gerando questionamentos, dúvidas, distanciamento, etc. Essa tomada de posição produz certa tensão, embora não se constitua como uma ruptura, tendo em vista que, embora o sujeito se contraidentifique, ele o faz com reservas. Isso aponta para uma tensão dentro da formação discursiva e, portanto, para o desdobramento do sujeito e a heterogeneidade enunciativa (INDURSKY, 2008). Essa tensão possibilita o surgimento de posições-sujeito distintas dentro da FD. Por fim, apresentamos a terceira modalidade pensada por Pêcheux: o sujeito da desidentificação. Essa última modalidade refere- se a uma tomada de posição do sujeito com relação à forma-sujeito que organiza os saberes da formação discursiva que outrora ele se identificava (INDURSKY, 2008).

Ainda no que diz respeito ao sujeito da desidentificação, Pêcheux (1995, p. 217) escreve sobre a relação entre “os efeitos da ciência com a prática política do proletariado sobre a forma-sujeito, efeito que toma a forma de uma desidentificação, isto é, de uma tomada de posição não-subjetiva”. À vista disso, não se trata de “recair no mito teórico e político do fim das ideologias” (PÊCHEUX, 1995, p. 217). Na verdade,

O funcionamento dessa “terceira modalidade” constitui um trabalho (transformação-deslocamento) da forma-sujeito e não sua pura e simples anulação. Em outros termos, esse efeito de desidentificação se realiza paradoxalmente por um processo subjetivo de apropriação dos conceitos científicos e de identificação com as organizações políticas “de tipo novo”. A ideologia – “eterna” enquanto categoria, isto é, enquanto processo de interpelação dos indivíduos em sujeitos – não desaparece; ao contrário, funciona de certo modo às avessas, isto é, sobre e contra si mesma, através do “desarranjo-rearranjo” do complexo das formações ideológicas (e das formações discursivas que se encontram intrincadas nesse processo) (PÊCHEUX, 1995, p. 217).

Pêcheux trata acima que os efeitos da desidentificação se realizam a partir da apropriação subjetiva de conceitos e organizações políticas de “tipo novo”, ou seja, de um

processo de identificação do sujeito com outras formações ideológicas e, por sua vez, da inscrição do seu discurso em outras FDs. Em vista disso, a ideologia “eterna”, segundo ele, não desaparece. Pelo contrário, ele continua a existir a partir de desarranjos e rearranjos “do complexo de formações ideológicas” através das quais o indivíduo é interpelado em sujeito (PÊCHEUX, 1995, p. 217).

Vale ressaltar que não estamos falando de uma tomada de posição consciente e, portanto, não estamos falando de plena autonomia, tendo em vista que “desidentificar-se implica não mais estar identificado com uma determinada formação discursiva porque, de fato, este mesmo sujeito já identificou-se com uma outra formação discursiva” (INDURSKY, 2008, p. 15).

Em suma, o processo de contraidentificação e de desidentificação culminam no entendimento de que as formações discursivas não são homogêneas e que elas são constituídas por saberes de outras formações. Tais processos podem levar o sujeito a migrar para outras formações discursivas, fragmentando a forma-sujeito. A fragmentação da forma-sujeito apresenta-se, portanto, como a possibilidade da mesma “dividir-se em um número maior de posições de sujeito”, o que nos remete a diferentes modos de relacionamento com a formação discursiva e, portanto, com a ideologia (INDURSKY, 2008, p. 15). Dando continuidade às nossas considerações acerca do sujeito em Pêcheux, trataremos, no próximo tópico, sobre as noções de lugar social e lugar discursivo propostas por Grigoletto (2005a/2005b).