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2 DO CASO FERNANDA FALCÃO ÀS CORTES

2.2 A função atípica legislativa do Poder Judiciário

Exposto isso, verifica-se que os abusos sofridos pela comunidade transgênero no Brasil e a violação dos seus direitos não se trata de mero preconceito e de intolerância da sociedade em geral, mas da inobservância de princípios humanitários e, principalmente, do respeito à dignidade da pessoa humana por parte da figura estatal que os representa e que deveria prezar por sua vivência digna.

Ora, os Princípios de Yogyakarta estão vigentes desde de 2007, tratando sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em Relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero e recomendando aos Estados a aplicação de princípios que visam garantir a liberdade e a igualdade de direitos aos seres humanos.

Muito antes disso, a Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, já havia arguido o princípio da dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º, inciso III, e, sendo assim, as violações vistas em casos como o de Fernanda Falcão já deveriam ter sido extintas ante a observância das referidas normas. (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, Cleber Masson (2012) disserta acerca da política criminal do Direito Penal Simbólico, em que há uma alta reprodução de leis que criam figuras desnecessárias ou que aumentam desproporcionalmente as penas em determinados casos, eis que foram criadas para transparecer uma falsa noção de segurança.

A comunidade trans, mais do que de alterações legislativas, necessita ser resguardada por um poder soberano que tenha dentre suas atribuições a aplicação e a sanção, como é o caso do Poder Judiciário, garantidor dos direitos da comunidade transgênero através de decisões com caráter humanitário e, se tratando dos Tribunais Superiores, de repercussão geral.

Retome-se o caso de Fernanda Falcão, o ano era 2010, as garantias de defesa à sua dignidade já haviam exteriorizado os códices e aportado inconscientemente na vivência social e, mesmo assim, a mulher trans teve todos os direitos aqui expostos violados.

Observe-se, se tratando da atuação dos Tribunais Estaduais, a ementa colacionada que segue, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

HABEAS CORPUS. POSSIBILIDADE DE PRISÃO. PACIENTE QUE

RECENTEMENTE FEZ CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO

(REDESIGNAÇÃO SEXUAL). NECESSIDADE DE QUE, NA HIPÓTESE DE PRISÃO, SEJA A PACIENTE ENCAMINHADA PARA PENITENCIÁRIA FEMININA OU EM CELA ESPECIAL, MANTIDA EM LOCAL PRÓPRIO PARA PESSOAS DO SEXO FEMININO. MEDIDA DE CAUTELA. HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONCEDIDO. Assunto: 1. Habeas Corpus. Concessão. 2. Prisão Civil. Falta de cumprimento de prestações de alimentos. Paciente submetido a cirurgia de transgenitalização. Encaminhamento para penitenciária feminina ou cela especial. Quando se justifica. 3. Cirurgia de Transgenitalização ou redesignação sexual. 4. Transexualismo. Transexual. 5. Registro Civil. Alteração de Sexo. 6. Alteração de Gênero. (RIO GRANDE DO SUL, 2009).

No julgado, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em 2009, deferiu parcialmente um pedido liminar feito em sede de Habeas Corpus, com o intuito de, na eventualidade da paciente ser presa, ser encaminhada a uma penitenciária feminina ou recolhida em cela especial, específica para pessoas do sexo feminino, uma vez que havia realizado cirurgia de redesignação social. (RIO GRANDE DO SUL, 2009).

O Relator fundamentou sua decisão no princípio da dignidade humana, a fim de proteger a integridade física e moral da paciente, confirmando parcialmente o pedido liminar, para que fosse ela encaminhada a uma penitenciária adequada ao seu gênero, o que foi seguido pelos demais Desembargadores à unanimidade. (RIO GRANDE DO SUL, 2009).

Ocorre, todavia, que em consulta à jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul há escasso número de julgados em relação à

transferência de apenadas transexuais para celas adequadas à sua identidade de gênero.

Procurando-se por jurisprudências no campo de pesquisa livre com as palavras-chave “transexual” e “cela” – e congêneres - se chega a um resultado de meros 02 (dois) julgados, sendo um deles o acima colacionado e o remanescente o que se analisará a seguir:

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. REGIME PRISIONAL.

TRANSFERÊNCIA PARA ESTABELECIMENTO COMPATÍVEL COM O REGIME SEMIABERTO. CELA ADEQUADA. PACIENTE TRANSEXUAL. PERDA DE OBJETO. O pedido dos impetrantes perdeu o objeto, tendo em vista que, em data superveniente à impetração do presente writ, a paciente foi transferida ao Instituto Penal de Santo Ângelo, estabelecimento penal compatível com o regime semiaberto, em cela adaptada para garantir sua integridade física, moral e emocional. Habeas corpus prejudicado. (RIO GRANDE DO SUL, 2020).

In casu, trata-se de Habeas Corpus Criminal, julgado em 29 de janeiro de 2020, com pedido liminar, em favor da mulher transexual Mariana Alves, que estava presa cautelarmente em cela adaptada junto ao Presídio Regional de Santo Ângelo. (RIO GRANDE DO SUL, 2020).

Acontece que após a prolação de sentença condenatória, foi determinada a transferência da mulher trans para o Instituto Penal de Santo Ângelo, destinado à apenados do regime semiaberto, local em que não havia cela adequada para o seu cumprimento de pena. (RIO GRANDE DO SUL, 2020).

Assim sendo, Mariana pediu ao juízo da execução a concessão da prisão domiciliar, eis que foi determinada a permanência da paciente em regime fechado pelo prazo de 72h, tempo hábil para que o Instituto Penal de Santo Ângelo pudesse realizar as adaptações necessárias para atender suas necessidades físicas, morais e emocionais. (RIO GRANDE DO SUL, 2020).

Nessa toada, em sustentada violação à Súmula Vinculante nº 56, que trata da impossibilidade de cumprimento da pena em regime mais gravoso, impetrou-se o referido HC, para que fosse concedida à Mariana Alves a prisão domiciliar, restando

a análise do pedido, todavia, prejudicada, em razão do transcurso de prazo até sua apreciação. (RIO GRANDE DO SUL, 2020).

Agora, realizando-se a mesma consulta com as palavras-chave “transexual” e “cela” - e congêneres -, no campo de pesquisa livre, na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, Estado em que Fernanda foi recolhida e violentada por meses, não se encontra nenhum julgado no total de resultados.

Assim sendo, percebe-se que a condição social e, consequentemente, o acesso à justiça, são partes importantes para a questão de ordem e garantias dos direitos da comunidade trans, eis que, por se tratar Fernanda de indivíduo marginalizado e com baixo grau de escolaridade, a trans com certeza não teve acesso à assistência judicial quando recolhida preventivamente, inclusive porque em nenhum momento de sua entrevista à Fabiana Moraes (2016) referiu ter sido assistida pela Defensoria Pública.

Logo, percebe-se que os Tribunais Estaduais há anos já possuem entendimento humanitário e garantidor sedimentado, de modo a preservar a dignidade das pessoas transexuais, bem como suas integridades físicas e morais, além de suas necessidades emocionais, posicionando-se contra a violência ocasionada pela sua segregação com indivíduos de gênero diverso daquele com que se identificam.

Nesse seguimento, faz-se mister saber do entendimento do Supremo Tribunal Federal e, nesta pesquisa, encontra-se o Habeas Corpus nº 152.491, contando como paciente a travesti de nome social Laís Fernanda presa na data de 29 de dezembro de 2016. (BRASIL, 2018).

Nas razões do recurso, a parte impetrante sustentou que Laís estava recolhida em uma unidade prisional masculina com 31 homens em sua cela, sofrendo diversos tipos de violências psicológicas e corporais, pedindo, nessa toada, a concessão da ordem para aguardar em liberdade o julgamento de recurso de apelação que tramitava em tribunal estadual. (BRASIL, 2018).

Assim, através de ordem concedida de ofício pelo Ministro Luís Roberto Barroso, este determinou, em 14 de fevereiro de 2018, ao Juízo da Comarca de Tupã/SP, a transferência de duas travestis, recolhidas em celas masculinas, desde dezembro de 2016, na Penitenciária de Presidente Prudente/SP, para estabelecimento prisional compatível com sua orientação sexual. (BRASIL, 2018).

Saliente-se que o Ministro Barroso fundamentou sua concessão de ordem na Resolução Conjunta nº 1 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e na Resolução SAP nº 11 do Estado de São Paulo, pelo que hoje, por força do precedente criado, deve-se estender os efeitos de aplicabilidade do referido decisum a todas as travestis no cárcere. (BRASIL, 2018).

Ocorre que, na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527, em que figura como requerente a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros, o Ministro Luís Roberto Barroso, novamente, decidiu pela comunidade trans, contudo deferindo parcialmente o pedido liminar requerido na demanda, para determinar a transferência apenas de mulheres transexuais para presídios femininos. (BRASIL, 2019b).

In casu, o Ministro não aplicou a medida às travestis, porquanto esclareceu que elas detêm uma identidade de gênero mais fluida e a situação desse grupo ainda é tema de reflexão e amadurecimento pelos órgãos especializados, diferente do que acontece com as transexuais mulheres, que possuem, em tese, gênero definido. (BRASIL, 2019b).

O Ministro Barroso motivou sua decisão na ausência de estudos informacionais acerca do grupo e no artigo 3º da Resolução Conjunta nº 1 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, que assim normatiza: “Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos”. (BRASIL, 2014).

Veja-se aqui, que conforme a Resolução Conjunta nº 1, a barbárie é tanta diante da perseverança da heteronormatividade binária e da cultura machista, nos

termos do que dissertou Beccaria (2015), que até mesmo homens transexuais – pessoas que nasceram com o sexo feminino, mas identificam-se como homens - devem ser transferidos para presídios femininos, para evitar que sofram abusos de outros homens, senão vejamos:

Art. 4º - As transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.

Parágrafo único – Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade. (BRASIL, 2014).

Mas retomando o entendimento da Corte Suprema, é válido destacar que acerca do conceito de travesti, inclusive o Conselho Federal de Medicina - CFM, publicando a Resolução nº 2.265 de 20 de setembro de 2019, assim dispôs em seu artigo 1º, § 4º: “Considera-se travesti a pessoa que nasceu com um sexo, identifica- se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália”. (BRASIL, 2019a).

Destarte, ao contrário do que apresentou o Ministro Luís Roberto Barroso na ADPF nº 527 acerca da dinamicidade de gênero das travestis, para o próprio CFM esses indivíduos possuem um gênero, todavia indefinido, porquanto não se identificam com o papel social atribuído ao seu sexo biológico, mas aceitam seu órgão reprodutor.

Pois bem, refere-se que, muito embora o conceito de travesti apresentado pelo Conselho Federal de Medicina ainda seja limitado e impreciso, uma vez que se trata de definição trazida por pessoas que não são travestis, não sendo, portanto, seu lugar de fala, isso traz um grande avanço de conquista e reconhecimento para esse grupo social que há não muito tempo era considerado e enfermo.

Dito isso, o papel dos Tribunais Estaduais e Superiores na atuação da defesa dos direitos fundamentais e princípios humanitários inerentes a todo cidadão e, consequentemente, à comunidade transgênero tem sido imprescindível para garantia de uma vida digna para essa parcela.

Apesar de determinadas incongruências, as decisões judiciais se mostram medidas eficazes para que transgêneros aprisionados tenham direito a compartilhar cela com pessoas do gênero com o qual se identificam ou não – como é o caso de travestis, que apenas possuem características do sexo feminino, mas não se autoproclamam mulheres.

Logo, uma vez que as políticas públicas na seara brasileira são escassas, mister se faz ressaltar sua importância para que as pessoas e as autoridades abandonem seus estigmas e busquem por um conhecimento mais robusto e aprimorado, a fim se verem livres da ignorância, uma vez que o próprio Ministro Barroso apontou obscuridade no entendimento sobre a identidade de gênero de pessoas travestis: assim, o que se pode esperar de um cidadão em que está enraizada a cultura conservadora da heteronormatividade binária?

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