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Mulheres transexuais e travestis e a heteronormatividade binária do sistema carcerário brasileiro: análise do caso Fernanda Falcão

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

GABRIEL HENRIQUE SCHEUERMANN KRUMMENAUER

MULHERES TRANSEXUAIS E TRAVESTIS E A HETERONORMATIVIDADE BINÁRIA NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: ANÁLISE DO CASO

FERNANDA FALCÃO

Três Passos (RS) 2020

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

GABRIEL HENRIQUE SCHEUERMANN KRUMMENAUER

MULHERES TRANSEXUAIS E TRAVESTIS E A HETERONORMATIVIDADE BINÁRIA NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: ANÁLISE DO CASO

FERNANDA FALCÃO

Monografia final do Curso de Graduação em Direito, objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso – TCC.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: MSc. Márcia Cristina de Oliveira

Três Passos (RS) 2020

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À todas mulheres transexuais e travestis, privadas de sua liberdade em celas ou em seus corpos, abusadas nos presídios ou nas ruas, marginalizadas pelo Estado ou por sua família, estigmatizadas socialmente e presas por serem, simplesmente, mulheres transexuais e travestis que existem.

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AGRADECIMENTOS

À professora MSc. Márcia Cristina de Oliveira, exímia educadora universitária nas searas do Direito Penal Processual e da Execução Penal, por todos os ensinamentos teóricos e empíricos transmitidos, bem como por sua colaboração e orientações que me permitiram concluir esta monografia com satisfação.

À professora Dra. Joice Gracieli Nielsson, expoente feminista e pro-LGBT+, por introduzir as problemáticas sociais em suas aulas e criar espaços de diálogo e de reflexão, que me fizeram transcender uma visão obstruída por uma cultura tradicional, me aprofundando no assunto em tela.

À minha mãe e pai Karla que dedicou sua juventude a lutar para que eu pudesse chegar até essa etapa e que esteve sempre presente em minha vida de todas as formas que pôde.

Às minhas famílias de sangue e de coração, mas principalmente aos meus avós Ilda e Sérgio, este in memorian, que construíram e moldaram, com seu amor e cuidados, a pessoa que hoje sou.

À minha companheira Natalia Letícia Mendonça, com quem construo sonhos e compartilho o amor pelo Direito e por nossos filhos Lucky, Scooby e Marmelada, que esteve comigo durante toda essa jornada e que me inspira a ser alguém melhor para ela, para mim e para o mundo.

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RESUMO

O presente trabalho de pesquisa monográfica, com base no método hipotético-dedutivo e por meio de uma análise do tipo exploratória a dados bibliográficos físicos e da rede mundial de computador, bem como através de estudo às jurisprudências dos Tribunais Estaduais e Superiores e da utilização de material midiático, consistente em gravação de vídeo, versa sobre mulheres transexuais e travestis encarceradas em unidades prisionais destinadas a indivíduos do sexo masculino. Neste viés faz-se uma análise do cerne social heteronormativo binário e das prisões em seu âmago sexista, violadores dos direitos humanos e fundamentais, garantidos a qualquer cidadão para proporcionar-lhes uma vida digna. Ressalta-se que essas garantias estão previstas na Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, bem como em cartas internacionais, à exemplo dos Princípios de Yogyakarta, e em resoluções internas, sendo que sua mera existência não basta para essas prerrogativas sejam efetivadas, necessitando a população transgênero de um ente propulsor e aplicador desses direitos, como vem se vendo pela atuação do Poder Judiciário nessa seara.

Palavras-chave: Heteronormatividade binária. Mulheres transexuais. Travestis. Prisão. Violência.

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ABSTRACT

The present monographic research work, based on the hypothetical-deductive method and through an exploratory analysis of physical bibliographic data and the world wide web, as well as the study of jurisprudence from the State and Superior Courts and the use of material media, consisting of video recording, deals with transsexual and transvestite women incarcerated in prison units selected for male individuals. In this article, an analysis is made of the case of binary social heteronormatives and of prisons in their sexist, human rights violators and fundamentals guaranteed to any citizen, to allow them a dignified life. It is noteworthy that these guarantees are included in the Federal Constitution of Brazil, promulgated in 1988, as well as in international letters, for example, of the Yogyakarta Principles, and in internal norms, their mere presence being only sufficient for these prerogatives effectively implemented, a transgender population of one of these propellers and enforcers of these rights is necessary, as has been seen by the Judiciary in this area.

Keywords: Binary heteronormativity. Transsexual women. Transvestites. Prison. Violence.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

1 A HETERONORMATIVIDADE BINÁRIA FACE AS MULHERES TRANSEXUAIS

E TRAVESTIS NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO 10

1.1 Disposições sobre os conceitos de identidade de gênero, gênero, sexo e

orientação sexual 11

1.2 A vulnerabilidade biossocial de mulheres transexuais e travestis 16

1.3 O sistema carcerário brasileiro: perspectiva histórica 21

1.4 O núcleo heteronormativo binário da prisão e a transfobia nas casas

prisionais do Brasil 24

2 DO CASO FERNANDA FALCÃO ÀS CORTES 27

2.1 Caso Fernanda Falcão 29

2.2 A função atípica legislativa do Poder Judiciário 35

2.3 Uma visão humanística ao aprisionamento de indivíduos trans 42

2.4 A necessidade de desconstrução social 47

CONCLUSÃO 53

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INTRODUÇÃO

A presente monografia abordou como seu objeto de estudo o encarceramento de mulheres transexuais e de travestis em presídios construídos para recolher apenados do sexo masculino, em um cenário caótico de superlotação das unidades prisionais brasileiras, em que as celas extrapolam os limites estruturais de presos.

Esse aprisionamento, negligenciando a identidade de gênero de mulheres transexuais e de travestis, acaba por violar direitos fundamentais consolidados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, resoluções internas e cartas internacionais ratificadas pelo Brasil e aplicadas através de jurisprudência da Suprema Corte.

Ocorre que as prisões, desde sua origem, caracterizam-se por serem sistemas retrógrados e falhos, baseados na penitência através da dor e sofrimento, quando os acusados eram encarcerados em masmorras para a sociedade ver quitado o débito decorrente do cometimento de um delito.

Essa essência desumana com o passar das décadas não se alterou, uma vez que o entendimento social de necessidade de reinserção e de reeducação através da prisão permanece o mesmo, haja vista a reprodução de uma cultura em que se faz necessário que haja um inimigo do cidadão de bem a quem o mal esteja estritamente conectado, a fim de justificar atos desmedidos.

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Isso porque para a sociedade em geral, os abastados não cometem crimes, apenas tornam a se desviarem de seus caminhos, motivo pelo qual a estigmatização e a marginalização social continuam preponderantes mesmo na atualidade.

Destarte, em razão dessa cultura conservadora, em que o patriarcado originou o sistema machista de designação de papeis sociais e este, como consequência lógica estrutural, o heteronormativismo binário, que transgêneros são excluídos e vistos com olhos inimigos desde muito cedo.

Ora, os transgêneros, grupo desvinculado de normas de aparência e de padrões de gêneros sociais, desafiam a hierarquia machista criada e alimentada por séculos e, portanto, acabam por serem estigmatizados como seres não humanos, sendo assim tratados pela sociedade em geral.

Logo, diferente tratamento não lhes seria desferido no cárcere, instituição moldada em padrões heteronormativos binários, eis que se constroem prisões estruturalmente destinadas ao encarceramento de indivíduos que nasceram com o sexo masculino e com o sexo feminino, nos termos da Lei de Execução Penal.

Contudo a violação no ato de direcionamento de um transexual a uma unidade prisional construída para pessoas de gênero diverso do qual aquele se identifica não será a única, tendo em vista que esse indivíduo ainda sofrerá as amarguras de compartilhar celas com homens machistas, criados na cultura patriarcal de hierarquias e de sobreposição do mais forte sobre o mais fraco, onde sofrerá desde traumas psicológicos até abusos sexuais.

Assim, em minuciosa análise ao caso de Fernanda Falcão, travesti que foi aprisionada em penitenciária masculina, verificar-se-á que a par da ausência estatal na proteção de seus direitos e garantias enquanto esteve segregada, o que lhe resultou no sofrimento de lesões corporais e estupros, a travesti só veio a ter conhecimento de seus direitos e de que podia se proteger, por meio de uma organização que lhe assistiu após contrair o vírus HIV/Aids.

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Normas de proteção e princípios humanitários já haviam sido confeccionados à época do aprisionamento de Fernanda, demonstrando-se, assim, a pertinência em haver um poder justo e eficaz, que mesmo atuando apenas através de impulsos busque resguardar e proteger as integridades físicas e morais desses indivíduos transgêneros no cárcere.

Por fim, observar-se-á a imprescindibilidade na criação de políticas públicas que informem a população transgênero de seus direitos e garantias fundamentais, para que ela possa saber a quem recorrer ou como atuar em casos de violação, até que haja a plena desconstrução social do sistema heteronormativo binário, erradicando-se com a transfobia e a usurpação de direitos.

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1 A HETERONORMATIVIDADE BINÁRIA FACE AS MULHERES TRANSEXUAIS E TRAVESTIS NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

Precipuamente, para adentrar ao mérito do estudo, se faz necessária a compreensão de que a transexualidade e as identidades de gênero são questões que demandam uma minuciosa análise de todas as áreas do conhecimento, eis que não se respaldam, tão-somente, como temática da sexualidade.

Nesse sentido, para Mariana Barbosa de Souza e Otávio J. Zini Vieira (2015), a complexidade decorrente da evolução das relações sociais apresentou a imprescindibilidade de se colocar em debate questões culturais até então controvertidas na medida em que se deu uma maior visibilidade aos direitos individuais fundamentais a nível mundial.

Isso porque, conforme Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Koller (2006), em sua origem, a sociedade, muito embora não possuísse classificação hierárquica, criou um sistema funcional de sobrevivência – o patriarcado - mediante uma divisão de papéis sociais: os homens, em razão de seu “poder natural como indivíduos”, sobrepujaram as mulheres a fim de assegurar sua soberania, impondo-se como seres superiores em todos os níveis sociais.

Esse sistema não se alterou com o passar dos séculos e apenas com o surgimento do período moderno que a sociedade começou a questionar essa hierarquia até então existente (NARVAZ E KOLLER, 2006). Assim, a visibilidade que as minoriais sociais passaram a receber aumentou lentamente, tendo em vista a predominância de um sistema patriarcalista brutal intrínseco aos costumes sociais, que respaldam na discriminação e estigmatização desses grupos que lutam incessantemente para emergir.

Ocorre que a cultura heteronormativa, enraizada nos indivíduos e nas instituições, acaba por infringir os direitos fundamentais desses grupos sociais, através de um modus operandi díspar a partir do momento em que a sociedade deixa de enxergar essa parte da população como seres humanos, excluindo-os a partir de processos culturais de estigmatização e marginalização.

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Veja-se que no cenário caótico da superlotação do sistema carcerário brasileiro, mulheres transexuais e travestis, pessoas que são obrigadas a viver às margens sociais, são presas em celas que extrapolam os limites estruturais, arriscando suas integridades físicas e psicológicas e tendo transgredidos seus direitos e garantias fundamentais consolidados pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.

1.1 Disposições sobre os conceitos de identidade de gênero, gênero, sexo e orientação sexual

Apesar de todo o aparato informacional disponibilizado na contemporaneidade, ainda se encontra no pensamento de senso comum uma confusão entre os termos que se referem ao gênero1 – seja em seu papel de gênero2 ou quanto à identidade de

gênero3 –, ao sexo biológico e à orientação sexual, e esse fato ocorre porque a maioria

das pessoas ainda refletem características de um conservadorismo cultural enraizado na sociedade brasileira.

E nesse sentido é possível dizer que a aparente contradição entre feminino e masculino, não evoluiu sob o ponto de vista da inclusão social, tampouco para uma valorização do gênero, como aduz Douglas Cesar Lucas (2010, p. 34):

O homem, ao se libertar da continuidade histórica pura e simples como fator absoluto de legitimidade -, encontra-se na condição de fazer avaliações (morais, jurídicas, econômicas, etc) sem ter de aceitar a invevitabilidade e a veracidade emanada dos eventos inquestionáveis de uma dada autoridade ou tradição. Essa possibilidade de avaliar instituições, ações e projetos inaugura uma nova perspectiva para a memória, para o presente e para o futuro, uma vez que a humanidade concreta, relevada nas sociabilidades muito particulares e inclusive divergentes, seja em um mesmo tempo ou em tempos diferentes, em sociedades iguais ou distintas, defronta-se com a necessidade de ter de justificar suas escolhas e deliberações levando em conta uma agenda de entendimentos compartilhados pelos seres humanos afetados por tais deliberações.

1 Para Jesus (2012, p. 12 e 24) “gênero se refere a formas de se identificar e ser identificada como homem ou como mulher” ou melhor dizendo, é uma “classificação pessoal e social das pessoas como homens ou mulheres. Orienta papéis e expressões de gênero. Independe do sexo.”

2 Jesus (2012, p. 25) leciona que papel de gênero se refere ao “modo de agir em determinadas situações conforme o gênero atribuído, ensinado às pessoas desde o nascimento. Construção de diferenças entre homens e mulheres. É de cunho social, e não biológico.”

3 Conforme Jesus (2012, p. 24), a identidade de gênero está ligada ao “Gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento.”

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De início, consigna-se que, conforme Elizabeth Zambrano (2018), para o senso comum, o gênero deve corresponder – culturalmente se falando – ao sexo binário do indivíduo, no qual reputam-se apenas duas conotações, quais sejam “macho” ou “fêmea”. Desta feita, com fulcro no que apresenta Jaqueline Gomes de Jesus (2012), conclui-se que o sexo diz respeito à ordem biológica das pessoas ou, mais especificamente, às características orgânicas.

Destarte, para se rotular um cidadão a partir destas condições, Jesus (2012) diz que simplesmente se verificará sua produção hormonal principal, quantidade de cromossomos “X” e “Y”, órgão reprodutor presente e genitais, sendo uma categorização não complexa e insuficiente por si só para deduzir outras especificidades dos indivíduos.

Nesta senda, o senso comum, novamente desprovido de um pensamento mais rebuscado e, diga-se de passagem, humanístico, optou por criar papéis sociais àqueles nascidos com os cromossomos “XY” e “XX”, com base na presença ou ausência de um órgão fálico, surgindo, respectivamente e como consequência, os “homens” e as “mulheres”. Ou seja, se o indivíduo nascer possuindo um pênis, demanda-se socialmente que ele cumpra com seu papel de gênero de homem, mas se possuir uma vulva, reputa-se que exerça uma função de mulher. (JESUS, 2012).

Não obstante, apesar desta construção cultural rasa os indivíduos possuem um direito personalíssimo de se identificar com o gênero que lhe foi atribuído, com outro, com diversos ou com nenhum, muito além do órgão reprodutor, sendo uma identificação subjetiva (JESUS, 2012). Nasce, assim, a “identidade de gênero”, como um meio de rompimento do pensamento popular, que deve ser respeitada e garantida ao indivíduo, com fundamento no art. 1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil, que dispõe sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988).

Isto posto, Simone de Beauvoir (1980), autora que influiu significativamente na área da filosofia ao tecer críticas revolucionarias na década de 1940, teve grande impacto ao afirmar que ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Denota-se que, conforme a autora, a mulher seria gênero construído através da vivência, do

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desenvolvimento de uma identidade própria que se construirá através do indivíduo e não de balões rosas ou azuis – não obstante essa prerrogativa se estenda a todos os gêneros e, inclusive, àqueles que não possuem um definido.

Se observa, ainda, a existência de outra construção denominada de orientação sexual4 que, nos termos expostos quanto ao consenso social, deveria estar atrelada

diretamente ao seu desejo pelo sexo oposto, como decorrência de questões hormonais e de seu papel social, mas diz respeito, exclusivamente, à atração sexual que um indivíduo sente por outrem.

Por conseguinte, consoante Jesus (2012), verifica-se que a orientação sexual possui caráter subjetivo, estando relacionada aos sentimentos intrínsecos à pessoa, os quais são construídos ao longo da vida conforme o surgimento de novas experiências e gostos pessoais, e não somente em razão da biologia da reprodução.

Corrobora Maria Berenice Dias (2001, p. 76):

Assim, a identificação da orientação sexual está condicionada à identificação do sexo da pessoa escolhida, em relação à pessoa que escolhe”. Quando alguém dirige seu interesse sexual a outrem, ou seja, opta por outrem para manter um vínculo afetivo, elege o gênero da pessoa com quem deseja se relacionar. A “identificação do gênero do objeto do desejo, se masculino ou feminino, é o dado revelador da orientação sexual, opção essa que não pode merecer tratamento diferenciado”.

Sobre a diferença entre sexo, orientação sexual, gênero e identidade de gênero, Zambrano disserta, com maestria, que (2008, p. 20):

O senso comum considera que uma pessoa, ao ser classificada como homem ou mulher (sexo biológico), terá, naturalmente, o sentimento e o comportamento masculino ou feminino (identidade/papel de gênero) e o seu desejo sexual será dirigido para pessoas do sexo e/ou gênero diferente do seu (orientação heterossexual). Esses três elementos - sexo, gênero e orientação - são pensados, em nossa cultura, como estando sempre combinados de uma mesma maneira - homem masculino heterossexual ou mulher feminina heterossexual. É possível, entretanto, inúmeras combinações entre eles, pois eles são independentes. Na homossexualidade, por exemplo, as pessoas têm orientação sexual diferente da esperada para o seu sexo e gênero. Já os travestis, por exemplo: homens que fazem uso de 4 Jesus (2012, p. 26) ensina que a orientação sexual está atrelada à “atração afetivossexual por alguém. Vivência interna relativa à sexualidade. Diferente do senso pessoal de pertencer a algum gênero.”

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roupas e modificações corporais para se parecer com uma mulher, sem buscar uma troca de sexo cirúrgica, aceitando seu corpo biológico de homem (embora modificado, às vezes, pelo uso de hormônios femininos e/ou implantes de silicone), considerando-se, simultaneamente, homens e mulheres; ou se vêem 'entre os dois sexos' nem homens, nem mulheres. Todos, porém, se percebem como tendo uma identidade de gênero feminina.

A problemática, nesse tema, refere-se quanto a constante rotulação dos indivíduos, desde seu nascimento, desconsiderando a independência de sua identidade, orientação e, especialmente, gênero. Assim, na atualidade, apesar da disponibilidade de recursos informativos, ainda há repúdio em relação à identidade de gênero quando esta corresponde a categoria diversa daquela imposta quando do nascimento. (JESUS, 2012).

Como expõe Flávia Cristina Santiago de Oliveira et al. (2016), a transexualidade não é temática abordada apenas recentemente, mas estudada desde o mundo clássico, nos mais diversos contextos históricos dos povos, e, ainda assim, incredulamente a questão é tratada como tabu, sendo sondada por inúmeras controvérsias.

O cidadão ordinário foi programado desde os tempos mitológicos para se afugentar daquilo que lhe é desconhecido por sua ignorância, situação que se reflete nos tempos atuais com o que lhe é estranho. Assim, ao não buscar entender o que não tem influência em si de forma direta, a população comum fecha os olhos perante as desigualdades, tornando-se uma agressora indireta, por omissão. Nessa toada, Ramon Alves Silva e Adalberto Antônio Batista Arcelo (2016) aventam que a sociedade rejeita a existência de indivíduos diferentes e a sua exclusão social.

A Ministra Nancy Andrighi (2009, p. 13, grifo nosso) do Superior Tribunal de Justiça inclusive já se manifestou acerca do tema em decisão proferida no Recurso Especial nº 1.008.398/SP, eis que para a relatora do recurso:

Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual

redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter

o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente.

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No contexto apresentado, percebe-se que a transgenia, evidenciada pela divergência entre o sexo biológico e a construção social da identidade de gênero, é característica que em tenra idade já possui certa estabilidade, pois uma vez que surge a identidade do indivíduo, esta é mantida ao longo de sua vida, ascendendo também o desejo de ser reconhecido pelo seu gênero e não por seu sexo biológico, com ou sem cirurgia de redesignação sexual. (OLIVEIRA ET AL., 2016).

Todavia, no âmbito das diversas possibilidades de identidade de gênero, é importante mencionar que há aquelas pessoas que se identificam como travestis, ou melhor dizendo, com nenhuma construção social (não-gênero) ou com um terceiro gênero, muito embora costumem se atrelar a estereótipos femininos, confundindo-se com o gênero feminino em certos aspectos, dentre eles o estereótipo da vestimenta. (JESUS, 2012).

Nesse tocante, Maria Júlia Leonel Barbosa (2019, p. 6) faz uma breve distinção entre trans mulheres e travestis:

A travesti, por exemplo, se identifica como mulher, mas ela fala que é travesti. Seu nome é de mulher, suas roupas, seu comportamento, ela diz querer ser uma mulher, mas se apresenta como travesti. No caso de uma mulher trans, ela afirma que é uma mulher, se alguém pergunta o que ela é, certamente ela responderá que é uma mulher. E uma travesti responde que é travesti.

Todavia, não obstante a referida divergência, Kaoanne Wolf Krawczak e Joice Graciele Nielsson (2018) relatam que tanto a travestilidade quanto a transexualidade se assemelham ao demandar uma construção empírica, através da vivência social dos indivíduos, eis que se tratam de experiências atreladas à identidade de gênero, dissertando, ainda, que a resistência criada por essa produção gera a exclusão social dessa comunidade e demais violências por ela sofridas.

A travestilidade, bem como a transexualidade são experiências relacionadas à identidade de gênero e foram socialmente construídas, da mesma forma que a identidade de homens e mulheres. Entretanto, ao serem formadas em resistência às normas impostas de gênero, são socialmente marginalizadas e isoladas, restando vulneráveis a violências físicas e simbólicas. (KRAWCZAK E NIELSSON, p. 274-275).

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Acontece, todavia, que são conceitos incompletos por si só e que, sendo assim, não se esgotam, pois possuem meramente cunho acadêmico. Ora, se uma travesti realizar uma operação de transgenitalização e, mesmo assim, se colocar como uma travesti, não será a ciência que dirá o que ela é ou deve ser. Logo, tem-se que são definições imprescindíveis para lutas políticas e sociais, mas apenas com o intuito de atingir certas especificidades atinentes à parcela social alvo e não de criar novos padrões, vez que as lutas desses grupos são justamente para desfazê-los. (BARBOSA, 2019).

Salienta-se, conforme Barbosa (2019), que as conceituações de transsexual e travesti são mais claras nas classes sociais com maior acesso à educação, ou seja, não marginalizadas, especialmente quanto ao poder econômico. Assim sendo, uma mulher transexual pode, equivocadamente, denominar-se travesti por não ter conhecimento do que se trata a transexualidade.

Ou seja, por mais que não se está a criar novos padrões, ao se realizar o processo de construção de sua identidade social, indivíduos marginalizados por sua cor, condição social ou situação econômica, antes que por seu gênero, podem vir a definir-se imprecisamente. Acerca da temática Camargo, Feltens e Oliveira (2014, p. 346) dissertam:

Não só o gênero, mas o próprio sexo é resultado de uma modelação de incluir a perspectiva jurídica e colocar um novo enigma de como legitimar a proliferação sexual, incluindo ao homem e a mulher os sexos-gêneros (homossexuais, drag queens, transgêneros, etc). Portanto, o reconhecimento legal do direito à construção da identidade sexual, perpassa por dupla vertente: a primeira de liberdade e autodeterminação individual, através do livre exercício da sexualidade sem discriminação, coerção ou violência e, principalmente, sem a interferência do Estado além da segurança legal de punição dos infratores; a segunda de políticas, mediante o acesso à informação, ao avanço científico, e nesse segundo estágio bem-vinda a necessária intervenção do Estado.

Destarte, percebe-se que a própria população transexual e travesti sofre com a carência de informações devido à falta de assistência do Estado e, logo, evidencia-se ainda mais a imprescindibilidade da promoção de políticas públicas que promovam um autoconhecimento reflexivo e uma conscientização humanitária da população para que transgêneros passem a ser aceitos e reconhecidos como cidadãos.

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1.2 A vulnerabilidade biossocial de mulheres transexuais e travestis

Note-se que, pela distribuição de papéis sociais específicos para cada indivíduo, seja homem ou mulher, a sociedade os designou determinadas responsabilidades que deveriam ser cumpridas de acordo com o seu papel de gênero, esperando-se, portanto, um comportamento padrão heteronormativo binário.

Neste diapasão, Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Koller (2006, p. 2) referem que:

As organizações humanas nem sempre foram patriarcais. Estudos antropológicos [...] indicam que, no início da história da humanidade, as primeiras sociedades humanas eram coletivistas, tribais, nômades e matrilineares. Tais sociedades (ditas “primitivas”) organizavam-se predominantemente em torno da figura da mãe, a partir da descendência feminina, uma vez que desconheciam a participação masculina na reprodução. Os papéis sexuais e sociais de homens e de mulheres não eram definidos de forma rígida e as relações sexuais não eram monogâmicas, tendo sido encontradas tribos nas quais as relações entre homens e mulheres eram bastante igualitárias.

Reputa-se que nos primórdios não havia relação hierárquica, mas apenas o convívio equitativo entre homens e mulheres. O modificativo principal desse trato, conforme Friedrich Engels (1984, p. 70-71), foi a propriedade privada, que estabeleceu uma divisão entre produção e reprodução, isso porque:

O primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade.

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Verifica-se, nesse sentido, que o patriarcado5 solidificou um contexto social de

opressão machista, que deu ensejo ao surgimento da heteronormatividade como uma consequência trágica, eis que o homem passou a se sobrepor às mulheres, construindo uma base social patriarcal/machista, em que se fundou a heteronormatividade binária guiadora do modo de viver dos indivíduos e, como um padrão a ser seguido, da heterossexualidade. (BARBOSA, 2019).

Para Barbosa (2019) a heteronormatividade se trata de uma consequência da binariedade sexual, considerando que o primeiro sistema de divisão de papéis fundou-se na distinção entre homem e mulher. Por confundou-seguinte, conforme Richard Miskolci (2009), a heteronormatividade é a expressão das expectativas, demandas e obrigações sociais, que surgem como pressupostos da heterossexualidade natural, isso porque a sociedade contemporânea é de uma ordem sexual.

Assim, para Miskolci (2009, p. 7-8), a heteronormatividade se trata de:

Um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade.

Contudo, conforme Barbosa (2019, p. 5) é mister diferenciar heteronormatividade de heterossexualidade, considerando que são institutos que não se confundem, vez que “a heterossexualidade é um dos padrões a serem seguidos pelo regramento heteronormativo”, entendendo-se, desta forma, que a heterossexualidade regerá as relações interpessoais devido a um padrão de comportamento heteronormativo binário.

Acontece que em decorrência da instituição dessa heteronormatividade binária – estruturada em um dualismo sexual -, demanda-se uma congruência de atos e resultados dela decorrentes, como consequência do funcionamento heteronormativo

5 Conforme Narvaz e Koeller (2006, p. 50), o patriarcado pode ser definido como “[...] uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois princípios básicos: 1) as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens e; 2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos.”

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social. Ressalta-se que, conforme Barbosa (2019) a heteronormatividade é característica estrutural do machismo, o qual se construiu não em decorrência de condições naturais, mas culturais, através da hierarquização na atribuição dos papéis sociais.

Isso fica ainda mais nítido quando alguém foge a esse padrão, pois a existência das figuras transgêneros afronta a existência de uma cultura em que a heteronormatividade binária predomina: essa parcela social, conforme William Siqueira Peres (2002), por não se encaixar dentre os padrões estéticos e de sexualidade, consequentemente acaba por viver em situação de segregação social.

Nesse sentido, dissertam Kaoanne Wolf Krawczak, Juliana Oliveira Santos e Joice Graciele Nielsson (2018, p. 98):

Atualmente existem uma série de violações aos direitos humanos, haja vista que em um contexto de heteronormatividade travestis e transexuais sofrem cotidianamente cesuras e segregações [...] Nesse rumo, as travestis e transexuais estão sempre resistindo ao pré-conceito, a uma sociedade em que aceita enxergar no outro a possibilidade risível de ser.

Contudo, ressalta-se que a exclusão das mulheres transexuais e travestis, no que diz respeito a sua biossociabilidade, se inicia no âmbito doméstico familiar com a rejeição. Assim, em decorrência da denegação de amparo e assistência para lutar pela sua liberdade, pelos seus congêneres – indivíduos que deveriam prestar toda e qualquer ajuda em momentos de necessidade, seja social ou emocional -, acaba a comunidade transgênero por ser excluída e marginalizada. (PERES, 2002).

Logo, considerando a intolerância social, essas figuras passam a sofrer agressões físicas e verbais, com a conseguinte expulsão de suas moradas pelos próprios pais, que não os aceitam em sua subjetividade. Mas, não apenas isto, a problemática estende-se aos centros educacionais, os quais, não preparados para encarar a diversidade, optam por lidar com casos de segregação social de transgêneros como se fossem situações irrelevantes. (PERES, 2002).

Nessa toada, verifica-se que o mercado de trabalho para a comunidade trans é escasso e limitado, eis que são poucos os empregadores que estão dispostos a ofertar

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trabalho para essas pessoas e os que o fazem, relutantes e cautelosos, atribuem aos indivíduos trans atividades de menor expressividade, a fim de escondê-los do público.

De igual forma, se não há qualificação fornecida pelas instituições de ensino – que não estão preparadas para lidar com a nova (des) padronização contemporânea -, por se tratar de órgão criado a partir de preceitos culturais padronizados -, não há espaço para comunidade trans em serviços mais rebuscados. Nota-se que isso acontece não em razão da questão de qualificação da pessoa, pois tais indivíduos obviamente possuem capacidade para obtê-la, mas pela estigmatização e discriminação desses cidadãos.

Essa dificuldade de inclusão de travestis e transexuais, conforme Krawczak e Nielsson (2018) se dá em razão de fatores negativos por elas enfrentados, desde sua expulsão de casa, retirada escolar e assédios sofridos, até o descaso do Estado e despreparo das redes de educação. A par dessa situação, em matéria de Bruna Benevides (2020), a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) ressalva que 90% da população trans se vale da prostituição como sua principal fonte de renda.

Assim, a escolha pela construção de um personagem do gênero feminino, mesmo possuindo uma estatura masculina, ou melhor dizendo, a escolha pela construção de novas identidades de gêneros e de novos femininos, vai de encontro com discriminação e resistência, vividas por essas pessoas que expressam seu exercício singular de existência, quebrando limites físicos e psicológicos do próprio ser em prol de sua felicidade. (PERES, 2002).

Portanto, refugiam-se essas pessoas nas ruas, tornando as esquinas imundas desse mundo seu novo lar e local de trabalho, lugar em que podem manifestar sua verdadeira identidade ao custo de venderem seu próprio corpo, sua intimidade, sua alma. Deste modo, por serem indivíduos expulsos de suas casas e afastados pela omissão do próprio Estado das redes de ensino e de profissionalização, desde cedo passam as mulheres transexuais e travestis a ocupar espaço na prostituição.

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Essa discriminação para com os transexuais e travestis tem sido reproduzida no acesso ao mercado de trabalho, pois as oportunidades em educação e trabalho para estes sujeitos acaba esbarrando no preconceito e na ignorância [...] Essa dificuldade que travestis e transexuais enfrentam para serem inseridos no mercado forma de trabalho está relacionada a alguns fatores negativos que eles enfrentam, como a expulsão de caso, evasão escolar, falta de apoio familiar, assédio sofrido, despreparo do Estado e das instituições de ensino, falta de acesso à saúde de qualidade, etc. (KRAWCZAK E NIELSSON, 2018, p. 276).

Acontece que essa omissão de atuação, seja na educação e no mercado de trabalho, tanto quanto na saúde, não deveria existir por parte do Estado, tendo que vista o que expõe Luciana Faísca Nahas (2008, p. 89) acerca de suas responsabilidades estruturais:

Entre os objetivos fundamentais da República estão a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia de desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, e a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme o artigo terceiro. O artigo 5º da Constituição garante, em seus setenta e sete incisos, os direitos e garantias individuais e coletivos. Destaca-se a igualdade plena entre todos, especialmente entre homens e mulheres, a legalidade, a liberdade de pensamento, de crença, de consciência e de expressão, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, entre outros, alguns já conhecidos pela sociedade, outros conquistados durante a evolução social.

Depreende-se, desta maneira, que o Estado deve zelar pelo fim do preconceito, discriminação e outras formas de exclusão social que acarretem na marginalização de indivíduos com extrema vulnerabilidade por fugirem aos padrões sociais, estes denominados transgêneros.

Todavia, no atual sistema orgânico social em que ainda predomina a cultura do patriarcado, se estabelecem processos normativos geradores de estigmas acerca da sexualidade e das relações amorosas, estruturados em uma moral unilateralmente instituída pelo patriarcado e pela natureza reprodutiva dos seres humanos. (BARBOSA, 2009).

Isso, por si só, acaba por infectar o núcleo estatal, regido e comandado por pessoas, estas com culturas e ideais predominantemente socio-conservadores, herdados pela sua criação familiar em ambientes tradicionais, transmitidos através de

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uma moralidade inócua e estigmatizante, segundo a qual se visa evitar um colapso das instituições, fundadas nos “bons costumes”.

Assim, ao procurarem por vagas no mercado de trabalho, transexuais e travestis, mesmo que sejam devidamente qualificadas para a ocupação e possuam ótimos currículos, escutarão que as vagas já foram preenchidas ou que o “perfil” de funcionário da empresa é outro, ou até mesmo, caso contratados, serão destinadas a funções invisíveis, uma vez que os contratantes se tratam de pessoas criadas nesse meio heteronormativo binário, que estigmatiza e excluí indivíduos que fogem aos padrões culturais. (KRAWCZAK E NIELSSON, 2018).

Destarte, reputa-se que para que o Estado, em seu papel republicando de representante do povo, tome partido de ações e políticas públicas para transformar a sociedade atual em uma sociedade igualitária, primeiro se deve desconstruir quem faz o ente funcionar e o administra enquanto agente, na condição de indivíduo, de cidadão, a fim deste pensar na população de forma orgânica e sistemática, alcançando os objetivos fundamentais de liberdade, justiça e solidariedade.

Isso porque, averígua-se uma vulnerabilidade biossocial da comunidade transexual e travesti que se dá não apenas extra-lar, mas principalmente em seu núcleo familiar, vez que a sua existência afronta e desafia os “bons costumes” sociais, denunciando uma realidade em crise, decorrente da heteronormatividade binária, fazendo-lhe reivindicar novos direitos, muito embora sua contínua marginalização resulte em dor e sofrimento invisíveis a olhos discriminatórios.

1.3 O sistema carcerário brasileiro: perspectiva histórica

Considerando que o Estado, a fim de dar cabo à autotutela, avocou para si a pretensão punitiva dos indivíduos que fossem de encontro com o bem-estar e interesses sociais, é nele que a coletividade deve buscar os meios necessários para o alcance da plena justiça.

Para tanto, resguarda-se ao Poder Público, dentre outros instrumentos de punir, da pena privativa de liberdade, a qual visa o aprisionamento do indivíduo,

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tirando seu tempo de vida, impondo sua segregação como contrapartida ao mal injusto causado.

Assim sendo, Cezar Roberto Bitencourt (2012) sustenta a importância da Igreja Católica, na Idade Média, com seu Direito Canônico, que deu luz à existência do cárcere como o conhecemos, em razão de ser ordenamento inaugural da legitimação da pena privativa de liberdade como meio de punição, conhecido pelo nome de masmorra, local onde se guardava o acusado até o aporte de pena mais gravosa ou até o fim de sua vida.

Ocorre que, mesmo com o fim desse período de trevas, em que a religião dominava as Instituições e o povo, a figura da prisão como forma de pena persistiu. Neste sentido, Cesare Beccaria (2015), em 1764, já proferia árduos juízos à pena privativa de liberdade, buscando reformar a legislação penal, a fim de garantir os direitos humanos dos acusados, dissertando acerca da barbarização dos costumes e das leis, que se encontram distante da luz que libertará a sociedade do legado dos povos do norte, referindo-se à ausência de humanidade nas prisões, como prática herdada culturalmente.

Diante dessa cultura provinda de tempos em que não se pensava no outro como se fosse pessoa humana, Eugênio Raúl Zaffaroni (2011) explicita que o “cidadão de bem” ainda vislumbra no outro que delinquiu a figura de um inimigo, sendo, portanto, um ser perigoso que deve ser privado de sua liberdade – como se um animal fosse -, ainda que não houvesse efetivamente praticado nenhum fato típico e antijurídico, culpável, mas em razão de sua figura social de inimigo.

Nesse sentido, percebe-se que devido a construção histórica pela qual a sociedade passou, a vingança e a punição – meramente retributivas – ainda fazem parte do sistema penal e das casas prisionais. Acontece que não se visualizou no decorrer do tempo nenhum momento em que a prisão pena tenha sido efetiva para a ressocialização dos transgressores, sendo considerada, portanto, um sistema que falho, muito embora persista na atualidade. (BECCARIA, 2015).

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Dito isso, Michel Focault (1999) efetuou abordagem crítica acerca da efetividade do aprisionamento, sustentando que o cárcere não é medida adequada à especificidade dos crimes; porque não detém eficácia; porque é inútil à sociedade e, inclusive, prejudicial, considerando ser custosa, além de multiplicar os vícios dos condenados; porque é difícil se proceder na correta aplicação da pena, correndo-se, ainda, o risco de os apenados quedarem-se às arbitrariedades das autoridades; e, ainda, porque privar alguém de sua liberdade e vigiá-lo, é conduta abusiva e atroz.

Assim, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, estabeleceu um novo sistema penal para aqueles acusados pelo cometimento de delitos, um denominado sistema acusatório de garantias, as quais, até então, eram usurpadas, sendo sua pedra angular lastreada em princípios fundamentais que, ao mesmo passo que aplicavam sanções, protegiam os condenados de reprimendas arbitrárias e abusivas. (SOUZA E VIEIRA, 2015).

Nesse sentido, um dos princípios ungidos com a Carta Magna, em seu art. 5º, inciso XLVII, alínea “e”, foi o da humanidade, estabelecendo a vedação de penas cruéis e desumanas neste país. Ocorre que é de conhecimento comum a decadência do sistema carcerário brasileiro, vez que a superlotação concebe um ambiente inviável diante das condições de higiene, alimentação, educação e de omissão do agente estatal dentro desses estabelecimentos, criando estímulos à violência e à pratica de outros crimes, assim obstando a reinserção social dos apenados. (SOUZA E VIEIRA, 2015).

Além disso, a par do que dispõe o art. 5º da Constituição Federal, em seu inciso XLVII, alínea “b”, quanto à vedação do caráter perpétuo das penas condenatórias, ora ou outra o condenado – não ressocializado e formado na escola do crime mediante seu contato com a violência e amarguras que figuram como protagonistas em um sistema superlotado - irá voltar a convivência social novamente. (BRASIL, 1988).

Logo, se as prisões não cumprem com a sua finalidade de possibilitar a reinserção dos apenados, para que elas existem? Ou, melhor dizendo, porque o Estado – detentor da pretensão punitiva – não busca outras formas de penalizar aqueles que condenados, visando reinseri-los socialmente através da educação, da

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reflexão, e de propiciar-lhes condições de higiene e de saúde adequadas, para que possam pensar acerca de sua pena e no sentido dela?

A pena com sentido meramente punitivo foi um dos fatores que levou à decadência do sistema prisional, acarretando, assim, as superlotações. Ora, se fosse possível reinserir os indivíduos na sociedade ante o cumprimento dos objetivos legislativos que a prisão pena possuí, sem sombras de dúvidas que os retornar ao convívio social seria o meio mais adequado para que se escoasse a população prisional, mas desde que devidamente recuperados.

Contudo, cegamente o Estado constrói mais presídios, como se não bastasse os dados apresentados pelo INFOPEN (2017) sobre o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias até junho de 2016, noticiando uma população carcerária no Brasil de 726.712 (setecentos e vinte e seis mil, setecentos e doze) apenados, para 368.049 (trezentos e sessenta e oito mil e quarenta e nove) vagas disponíveis, beirando uma taxa de ocupação de quase 200%.

Observa-se que mesmo havendo uma disposição constitucional acerca da humanidade das prisões, vedando os aprisionamentos mediante condições tirânicas e arbitrárias que infringem diversos direitos fundamentais, o caráter perverso da prisão vigora e, certamente, sempre vigorará. (SOUZA E VIEIRA, 2015).

Destaca-se, ainda, a dicotomia entre o agente Estatal omisso socialmente, no tocante ao atendimento das necessidades essenciais de vida dessa população trans – com a promoção de políticas públicas de inclusão e de conscientização social -, todavia presente penalmente, armado com sistemas carcerários desumanos e violadores de diversos direitos fundamentais da população trans.

Por fim, denota-se que a prisão é um sistema medieval e retrógrado que não propicia condições básicas de reinserção social aos que cumprem penas privativas de liberdades e nem favorece o processo de recuperação do apenado, motivo pelo qual deveria ser substituído por meios mais eficazes de cumprimento de pena.

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1.4 O núcleo heteronormativo binário da prisão e a transfobia nas casas prisionais do Brasil

Nessa lógica, considerando a dinâmica de vida dos indivíduos transgêneros acima referidos, enfrenta-se a questão do seu aprisionamento, eis que não se deixa aqui de pensar no Estado e em sua dicotomia de entidade omissa face as necessidades das minorias e de agente detentor da pretensão punitiva enquanto Estado Democrático de Direito.

Segundo Ramon Alves Silva e Adalberto Antônio Batista Arcelo (2016), acontece que as disposições penais estendidas às transexuais mulheres e travestis não fogem da lógica heteronormativa binária presente na sociedade, em razão de serem premissas intrínsecas ao Estado, pois indivíduos diferentes daqueles que são considerados como “normais”, não são amparados pelo ordenamento jurídico.

A própria Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984) discorre, em seus artigos 89 e 90, respectivamente, acerca da criação de “penitenciária de mulheres” e de “penitenciária de homens”, utilizando-se, para tanto, de uma ideia de sexo biológico. Ocorre que essa dicotomia não deveria existir, pois nos termos do que elenca o “Princípio 9” dos Princípios de Yogvakarta (2006, p. 19), que disserta sobre o Direito a Tratamento Humano Durante a Detenção: “Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais [...] de cada pessoa”.

Contudo, essa disposição não é aplicada no sistema prisional brasileiro, isso porque o cárcere, em seu âmago sexista, surgiu como forma de punir e aprisionar homens e mulheres, nos termos já expostos, baseando-se em um binarismo penitenciário, à luz de uma ótica constitutiva atrelada ao sexo genital do indivíduo. (SILVA E ARCELO, 2016).

Assim, tendo em vista o desrespeito à identificação subjetiva de pessoa trans com gênero diverso daquele que lhe é imputado socialmente devido às suas características sexuais, os sistemas prisionais e as demais instituições não estão,

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ainda, preparados para segregar adequadamente essa comunidade, respeitando integralmente seus direitos fundamentais. (SILVA E ARCELO, 2016).

Nega-se, desta forma, no sistema carcerário brasileiro, a identidade de gênero de travestis e de transexuais mulheres inseridas em celas masculinas, pela forçada padronização a um visual masculino: corte de cabelos que antes iam até os ombros; barba desleixada e não removida; interrupção de tratamentos hormonais; uso de roupas masculinas; e utilização de seu nome masculino – não do nome social -, entre outros. (SILVA E ARCELO, 2016).

Ora, se a prisão em todo o seu contexto histórico nunca conseguiu cumprir efetivamente com seu papel de reinserir socialmente os apenados binariamente segregados – aqueles que, conforme a própria Lei de Execução Penal são exatamente a quem as unidades prisionais é destinada, digase homens e mulheres -, e nem parcialmente recuperá-los para a prática dos atos da vida civil e convívio social, quem dirá respeitar as subjetividades e direitos personalíssimos de indivíduos que fogem do padrão heteronormativo binário. (BECARRIA, 2015).

Ante o exposto, conforme dispõe Silva e Arcelo (2016), transexuais mulheres e travestis passam a sofrer a violência de uma dupla condenação do âmbito carcerário: a condenação por serem marginalizadas socialmente e por terem negadas pelo Estado a liberdade de ir e vir. Assim sendo, a existência dessa parcela social, ainda na atualidade, resume-se ao seu sofrimento diário de demasiados tipos de violência, refugiando-se ela, consequentemente, na criminalidade, que proverá e agirá perante a ausência do Estado.

Ademais, ao se falar em pena privativa de liberdade, além da violência decorrente da não observância ao direito à identidade de gênero no momento do aprisionamento, as pessoas trans sofrerão a violação de muitos outros de seus direitos constitucionais, como à vida, à igualdade, à segurança, à intimidade e à vida privada e, principalmente, à sua dignidade, previstos nos artigos 1º, inciso III, 5º, caput e inciso X, da Constituição Federal de 1988. (BRASIL, 1988).

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Assim, o afastamento da heteronormatividade do sistema carcerário brasileiro ainda se trata de um caminho longo e árduo a ser seguido pela população trans, e enquanto esse problema não for solucionado, transexuais mulheres e travestis sofrerão ao longo de suas jornadas a violência de várias condenações: a comunidade trans, na condição de minoria, já é estigmatizada socialmente e, via de consequência, marginalizada, o que as leva a sobreviver mediante a prática de prostituição e outras infrações, habitando áreas em que a violência seja continua e forma de domínio. (SILVA E ARCELO, 2016).

Agora, questiona-se, será mesmo que a conduta de alguém esquecido pelo Estado, que busca sobreviver ao custo da venda de sua própria intimidade e, quando cansado de prostituir-se, recorre a outras práticas irrelevantes – penal e socialmente - é realmente culpável? É justo condenar uma mulher transexual ou uma travesti a cumprir pena em um lugar que, conforme um relatório do Center for American Progress (2013), elas terão 15 (quinze) vezes mais chances de sofrerem abusos sexuais que o restante da população?

A discriminação é fator que pode contribuir para a produção da igualdade. Com Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2003) o conceito de discriminação objeto de punição foi bem traduzida. A partir da discriminação que se identifica todas as consequências danosas como a intolerância, o ódio, a disparidade de condições, a marginalização, a criminalidade e a violência, faz-se necessário buscar um conceito de discriminação, através do qual se debate uma possível punição de motivação da prática delituosa. Nem toda discriminação é danosa, existindo situação em que se torna indispensável para proporcionar a igualdade fortemente almejada pelo ideal democrático.

Nesse sentido, entendemos a discriminação como toda e qualquer forma, meio, instrumento de promoção da distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em critérios, como a raça, cor de pele, descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião, deficiência física, mental ou patogênica que tenha propósito ou efeito de anular o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos políticos, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada. (CRUZ, 2003, p. 20).

É necessário, portanto, que haja uma desconstrução da sociedade e da dicotomia homem e mulher, pois o mundo é muito vasto para pensamentos tão

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pequenos e conservadores, e as possibilidades são infinitas, mas para isso as pessoas devem passar a aceitar e conviver com indivíduos que fogem dos padrões culturais, devendo-se, assim, extinguir com o pensamento heteronormativo binário e transfóbico social, para que cessem as discriminações danosas, violências e abusos ocorridos no sistema carcerário brasileiro e na vida cotidiana.

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2 DO CASO FERNANDA FALCÃO ÀS CORTES

Se observa pela jurisprudência dos Tribunais de Justiça Estaduais e Superiores que, apesar de há longo tempo estes já virem se manifestando favoravelmente à proteção e garantia dos direitos de transgêneros no cárcere, são poucos os casos que chegam a conhecimento das Cortes.

Isso porque a realidade dessa parcela populacional, excluída da vivência social e obrigada a sobreviver nas ruas e becos imersos pelo crime e violência, não permite que ela adquira espaço social e conhecimento para se protegerem judicialmente de atos de violação de seus direitos, isso:

por não se adequarem ao padrão “correto” da heteronormatividade. Elas se negam a assumir o papel social (biologicamente) imposto, não se identificam com o mesmo, resistem ao padrão. Daí a marginalização e a exclusão que leva tais grupos a um processo de invisibilização e de normalização”. (SILVA E ARCELO, 2016, p. 4).

Ocorre que a inércia dos poderes tripartites torna a permitir e, consequentemente, a consentir com a violação de diversos direitos fundamentais da comunidade transgênero, uma vez que na condição de protetores e garantidores dos direitos constitucionais, é sua a competência de prezar pelo bem comum.

Nesse sentido, nasceram e se proliferaram nas unidades prisionais diversos casos de extrema violência perante indivíduos transgêneros, como aconteceu com Fernanda Falcão, mulher trans que, junto de suas amigas Tainá e Michele, foi segregada com mais de 99 (noventa e nove) homens em seu primeiro dia presa cautelarmente, em uma cela de triagem. (MORAES, 2016).

Dito isso, questiona-se, agora, quantas Fernandas, Tainás e Micheles ainda existem e existirão pelo Brasil? Diante da omissão do Poder Legislativo face a transfobia no meio social e no cárcere e da ausência de políticas públicas por parte do Poder Executivo, o Judiciário teve que intervir, chegando o tema ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal.

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A problemática centra-se na segregação de pessoas trans com indivíduos de gênero diverso daquele com o qual elas se identificam e na ausência de políticas públicas que desconstruam culturalmente a sociedade, erradicando com as dicotomias homem e mulher, macho e fêmea, a fim de que as pessoas respeitem e aprendam a conviver com o despadronizado.

2.1 Caso Fernanda Falcão

Inicialmente, cumpre destacar que não obstante se tenha conhecimento de inúmeros casos de violações face a mulheres transexuais e travestis encarceradas em prisões masculinas, a travesti Fernanda Falcão superou o âmago sexista social e os abusos sexuais sofridos, tornando-se importante expoente dentro da figura estatal.

Fernanda, em entrevista à professora Fabiana Moraes (2016), disse que tinha 15 anos quando contou para sua mãe que havia “ficado” com um menino e, muito embora esperasse que a reação não fosse ser ruim, eis que sempre deram bem, aos poucos percebeu que a convivência passou a ser seca. Assim, a trans saiu de casa e foi viver nas ruas de Recife, onde descobriu que poderia ganhar dinheiro com falsas promessas de sexo.

Colocando sua vida em risco desde muito cedo, entrava em carros conduzidos por homens que não se importavam em explorar sexualmente menores de 18 (dezoito) anos de idade e quando eles começavam a fazer alguma coisa, anunciava sua idade enquanto outras meninas vigiavam a ação do lado de fora. Assustados, esses homens lhe pagavam o valor do programa – algumas vezes até mais – e iam embora. (MORAES, 2016).

A trans conta que apesar da ilegalidade do fato, tudo era acompanhado pela polícia, com quem havia um trato de extorsão: pagavam às autoridades responsáveis pelo local em que se realizava a manobra o valor de R$ 50,00 (cinquenta reais) dia sim, dia não. Fernanda ainda narra que às vezes os policiais inclusive participavam, colocando-a no carro, desferindo-lhe alguns tapas e soltando mais à frente. (MORAES, 2016).

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Com o tempo, Fernanda aventa que os atos começaram a ficar mais violentos por parte da polícia, principalmente quando se tratava de uma agente feminina. Na última vez, conta que a policial foi com uma faca e cortou o seu cabelo, momento em que decidiu que não pagaria mais o suborno, orientando as demais meninas a tomar a mesma atitude. (MORAES, 2016).

Fernanda já havia sido presa duas vezes por extorsão, na terceira e última, foi abordada por uma viatura, ao sair de um terreno abandonado, e os policias a indagaram o motivo da cessação do pagamento, pois isso estava atrapalhando seus ganhos: a trans foi presa. (MORAES, 2016).

Até assinar a nota de culpa, Fernanda não sabia o motivo – criminal -, sendo que os policiais que realizaram o “flagrante” eram os mesmos que a prenderam nas outras duas vezes, contudo, desta vez em razão de tráfico, eis que Fernanda supostamente estava em posse de trinta e seis pedras de crack, o que alega não ser verdade, vez que as drogas foram plantadas, pois nunca traficou. (MORAES, 2016).

Fernanda, junto de outras duas mulheres transexuais, Tainá e Michele, foram encaminhadas para o Complexo Prisional do Curado, denominado de Frei Damião de Bozzano, em Recife/PE. Na primeira noite naquela unidade prisional, as mulheres foram segregadas com 99 homens, na cela mais lotada da casa prisional. (MORAES, 2016).

Fernanda, com 19 anos à época, foi segurada pelos apenados da cela por ordem de “Playboy”, o mais antigo dentre os presos, que possuía o encargo de mesário de pavilhão diverso. Quando a vítima tentou se esquivar, foram-lhe desferidas três facadas nas pernas e, ato continuo, foi estuprada pelo algoz que a chamava de puta e que dizia que deveria “dar” para ele. (MORAES, 2016).

Enquanto isso, no banheiro, os demais presos gozavam em Tainá e Michele, que não ofereciam resistência por medo de sofrerem represália como Fernanda, sendo que uma delas, no dia seguinte foi para enfermaria, com o ânus sangrando, quase morta. (MORAES, 2016).

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Após o estupro, Fernanda, em seu mais profundo abismo, silenciosamente decidiu: iria deitar-se com o violentador em troca de exclusividade e de segurança, pois temia passar o que as amigas sofreram, eis que as três mulheres eram mantidas no fundo de suas celas para que os agentes penitenciários não percebessem o que estava acontecendo, muito embora evidentemente possuíssem conhecimento do ocorrido, porquanto apenas se omitiam de reagir face os abusos. (MORAES, 2016).

Oportunamente, Fernanda negociou com um agente penitenciário, a fim de que pudesse trabalhar durante o dia, de forma a se afugentar daquele inferno. A mulher trans passou a cuidar da limpeza das vestes de alguns agentes em troca de se manter longe do abusador durante o dia. (MORAES, 2016).

Foram cerca de dois meses que passou na triagem e, ao contrário de Fernanda, que estava “apadrinhada”, suas amigas foram realocadas para diversas outras celas, nas quais, na condição de novas, sofriam um abuso sexual enorme e incessantemente. Ocorre que após aquela primeira noite, quando Playboy gozou, Fernanda sabia que sua vida havia mudado para sempre. (MORAES, 2016).

Não obstante, aos poucos, Fernanda entrou em depressão, passou a sofrer de crises de pânico e parou de comer, vomitando muito, além de sua imunidade ter baixado: a apenada havia contraído o vírus HIV, de “Playboy”. Após o terror vivido, ciente do resultado positivo para o exame, foi transferida ao Complexo Prisional denominado de Aníbal Bruno, onde sobreviveu por cerca de um ano e onze meses, até ser inocentada criminalmente em 2017. (MORAES, 2016).

Após sua soltura, voltou a morar com a mãe, fragilizada pelas violências que lhe foram desferidas, motivo pelo qual se aproximou de outras mulheres trans, buscando fortalecimento e apoio, sendo hoje conhecida como símbolo dentro do governo do Estado, além de passar a integrar o núcleo LGBT da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude. (MORAES, 2016).

A posteriori, Fernanda ingressou na Secretaria Executiva de Segmentos Sociais, com vistas a auxiliar o público LGBT, idosos e pessoas portadoras de deficiência, bem como abordar questões de igualdade racial. Assim, observa-se que

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muito embora a mulher transexual tenha sido segregada no próprio inferno, em prol de suas iguais Fernanda optou por não desistir de sua vida, fazendo a diferença de dentro do Estado, o mesmo que a marginalizou, a condenou e não a protegeu em nenhum momento. (MORAES, 2016).

Em entrevista à jornalista Marcionila Teixeira (2019), Fernanda desabafou narrando que o sistema prisional para ela foi uma experiência de violência, mas que do episódio buscou trazer o que melhor para ela: se aproximou das pessoas, ainda mais daquelas socialmente excluídas e estigmatizadas. Fernanda depôs, ainda, que o cárcere não é humanizado e que remove muitas características de quem o ocupa.

Fernanda noticiou que estar no sistema prisional lhe mostrou as vulnerabilidades de ser uma travesti negra, periférica, apresentando dados de que grande número de indivíduos transgêneros sobrevivem da prostituição, meio pelo qual alega ter se empoderado e conquistado respeito, pois foi a partir dessa prática que conseguiu sobreviver e alcançar uma graduação, considerando que são pessoas estigmatizadas nos meios de trabalho comum em razão de sua identidade de gênero. (TEIXEIRA, 2019).

A travesti arguiu em sua entrevista, por fim, que foi somente após testar positivo para o vírus HIV/Aids, devido ao episódio com o preso “Playboy” e ser assistida pelo Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo – GTP+, que veio a conhecer a existência de seus direitos enquanto estava no sistema prisional. (TEIXEIRA, 2019).

Assim, depreende-se que não apenas “Playboy” violentou e abusou de Fernanda, não apenas os agentes penitenciários que negligenciaram a ocorrência de abusos com a travesti, consentiram com os atos criminosos e torturas que lhe foram desferidas, e não apenas a sociedade errou por estigmatizá-la, mas que o Estado teve grande papel nas violações de direitos ocorridas, uma vez que é o principal guardião dos interesses dos indivíduos.

Se o Estado a tivesse provido o direito à educação, Fernanda não precisaria ter se submetido à prostituição como meio único para sobreviver. Se o Estado a tivesse concebido o direito à saúde, a travesti teria realizado um tratamento adequado

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para evitar a contaminação pelo HIV/Aids. Se o Estado a tivesse protegido, Fernanda não teria sido estuprada e sofridos tantas outras formas de abuso dentro e fora do cárcere.

Nessa toada, verifica-se, ainda, a ausência do Estado-defesa, assistente jurídico aos indivíduos que não possuem recursos financeiros para financiar defensores particulares, considerando que Fernanda só veio a ter conhecimento que possuía direitos ao ser atendida pelo Grupo de Trabalho em Prevenção Posithivo, conforme conta em sua entrevista, sendo inocentada apenas após quase 02 anos presa. (TEIXEIRA, 2019).

No ponto, uma vez que noticiado por Fernanda que os agentes penitenciários conheciam dos crimes de abuso sexual e demais violências físicas que se sucediam em face da travesti e de Tainá e Michele e mesmo assim se omitiram, vale destacar o teor do artigo 13, caput e § 2º, do Código Penal (BRASIL, 1940), que traz à baila a relação de causalidade entre a conduta e o resultado do fato delituoso, também denominada de nexo causal:

Relação de causalidade

Art. 13 CP - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Relevância da omissão

§2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

A respeito disso, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 177) dirá que “são delitos omissivos impróprios os que envolvem um ‘não fazer’, que implica na falta do dever legal de agir, contribuindo, pois, para causar o resultado”. Contudo, para que isso aconteça, é preciso que o omitente “tenha o dever legal de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa e culposamente, auxiliando na produção do resultado”.

O autor, complementando sua explanação, dá o exemplo do policial que observa uma conduta de roubo, sem interferência, em razão de ser inimigo da vítima

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