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2 DO CASO FERNANDA FALCÃO ÀS CORTES

2.1 Caso Fernanda Falcão

Inicialmente, cumpre destacar que não obstante se tenha conhecimento de inúmeros casos de violações face a mulheres transexuais e travestis encarceradas em prisões masculinas, a travesti Fernanda Falcão superou o âmago sexista social e os abusos sexuais sofridos, tornando-se importante expoente dentro da figura estatal.

Fernanda, em entrevista à professora Fabiana Moraes (2016), disse que tinha 15 anos quando contou para sua mãe que havia “ficado” com um menino e, muito embora esperasse que a reação não fosse ser ruim, eis que sempre deram bem, aos poucos percebeu que a convivência passou a ser seca. Assim, a trans saiu de casa e foi viver nas ruas de Recife, onde descobriu que poderia ganhar dinheiro com falsas promessas de sexo.

Colocando sua vida em risco desde muito cedo, entrava em carros conduzidos por homens que não se importavam em explorar sexualmente menores de 18 (dezoito) anos de idade e quando eles começavam a fazer alguma coisa, anunciava sua idade enquanto outras meninas vigiavam a ação do lado de fora. Assustados, esses homens lhe pagavam o valor do programa – algumas vezes até mais – e iam embora. (MORAES, 2016).

A trans conta que apesar da ilegalidade do fato, tudo era acompanhado pela polícia, com quem havia um trato de extorsão: pagavam às autoridades responsáveis pelo local em que se realizava a manobra o valor de R$ 50,00 (cinquenta reais) dia sim, dia não. Fernanda ainda narra que às vezes os policiais inclusive participavam, colocando-a no carro, desferindo-lhe alguns tapas e soltando mais à frente. (MORAES, 2016).

Com o tempo, Fernanda aventa que os atos começaram a ficar mais violentos por parte da polícia, principalmente quando se tratava de uma agente feminina. Na última vez, conta que a policial foi com uma faca e cortou o seu cabelo, momento em que decidiu que não pagaria mais o suborno, orientando as demais meninas a tomar a mesma atitude. (MORAES, 2016).

Fernanda já havia sido presa duas vezes por extorsão, na terceira e última, foi abordada por uma viatura, ao sair de um terreno abandonado, e os policias a indagaram o motivo da cessação do pagamento, pois isso estava atrapalhando seus ganhos: a trans foi presa. (MORAES, 2016).

Até assinar a nota de culpa, Fernanda não sabia o motivo – criminal -, sendo que os policiais que realizaram o “flagrante” eram os mesmos que a prenderam nas outras duas vezes, contudo, desta vez em razão de tráfico, eis que Fernanda supostamente estava em posse de trinta e seis pedras de crack, o que alega não ser verdade, vez que as drogas foram plantadas, pois nunca traficou. (MORAES, 2016).

Fernanda, junto de outras duas mulheres transexuais, Tainá e Michele, foram encaminhadas para o Complexo Prisional do Curado, denominado de Frei Damião de Bozzano, em Recife/PE. Na primeira noite naquela unidade prisional, as mulheres foram segregadas com 99 homens, na cela mais lotada da casa prisional. (MORAES, 2016).

Fernanda, com 19 anos à época, foi segurada pelos apenados da cela por ordem de “Playboy”, o mais antigo dentre os presos, que possuía o encargo de mesário de pavilhão diverso. Quando a vítima tentou se esquivar, foram-lhe desferidas três facadas nas pernas e, ato continuo, foi estuprada pelo algoz que a chamava de puta e que dizia que deveria “dar” para ele. (MORAES, 2016).

Enquanto isso, no banheiro, os demais presos gozavam em Tainá e Michele, que não ofereciam resistência por medo de sofrerem represália como Fernanda, sendo que uma delas, no dia seguinte foi para enfermaria, com o ânus sangrando, quase morta. (MORAES, 2016).

Após o estupro, Fernanda, em seu mais profundo abismo, silenciosamente decidiu: iria deitar-se com o violentador em troca de exclusividade e de segurança, pois temia passar o que as amigas sofreram, eis que as três mulheres eram mantidas no fundo de suas celas para que os agentes penitenciários não percebessem o que estava acontecendo, muito embora evidentemente possuíssem conhecimento do ocorrido, porquanto apenas se omitiam de reagir face os abusos. (MORAES, 2016).

Oportunamente, Fernanda negociou com um agente penitenciário, a fim de que pudesse trabalhar durante o dia, de forma a se afugentar daquele inferno. A mulher trans passou a cuidar da limpeza das vestes de alguns agentes em troca de se manter longe do abusador durante o dia. (MORAES, 2016).

Foram cerca de dois meses que passou na triagem e, ao contrário de Fernanda, que estava “apadrinhada”, suas amigas foram realocadas para diversas outras celas, nas quais, na condição de novas, sofriam um abuso sexual enorme e incessantemente. Ocorre que após aquela primeira noite, quando Playboy gozou, Fernanda sabia que sua vida havia mudado para sempre. (MORAES, 2016).

Não obstante, aos poucos, Fernanda entrou em depressão, passou a sofrer de crises de pânico e parou de comer, vomitando muito, além de sua imunidade ter baixado: a apenada havia contraído o vírus HIV, de “Playboy”. Após o terror vivido, ciente do resultado positivo para o exame, foi transferida ao Complexo Prisional denominado de Aníbal Bruno, onde sobreviveu por cerca de um ano e onze meses, até ser inocentada criminalmente em 2017. (MORAES, 2016).

Após sua soltura, voltou a morar com a mãe, fragilizada pelas violências que lhe foram desferidas, motivo pelo qual se aproximou de outras mulheres trans, buscando fortalecimento e apoio, sendo hoje conhecida como símbolo dentro do governo do Estado, além de passar a integrar o núcleo LGBT da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude. (MORAES, 2016).

A posteriori, Fernanda ingressou na Secretaria Executiva de Segmentos Sociais, com vistas a auxiliar o público LGBT, idosos e pessoas portadoras de deficiência, bem como abordar questões de igualdade racial. Assim, observa-se que

muito embora a mulher transexual tenha sido segregada no próprio inferno, em prol de suas iguais Fernanda optou por não desistir de sua vida, fazendo a diferença de dentro do Estado, o mesmo que a marginalizou, a condenou e não a protegeu em nenhum momento. (MORAES, 2016).

Em entrevista à jornalista Marcionila Teixeira (2019), Fernanda desabafou narrando que o sistema prisional para ela foi uma experiência de violência, mas que do episódio buscou trazer o que melhor para ela: se aproximou das pessoas, ainda mais daquelas socialmente excluídas e estigmatizadas. Fernanda depôs, ainda, que o cárcere não é humanizado e que remove muitas características de quem o ocupa.

Fernanda noticiou que estar no sistema prisional lhe mostrou as vulnerabilidades de ser uma travesti negra, periférica, apresentando dados de que grande número de indivíduos transgêneros sobrevivem da prostituição, meio pelo qual alega ter se empoderado e conquistado respeito, pois foi a partir dessa prática que conseguiu sobreviver e alcançar uma graduação, considerando que são pessoas estigmatizadas nos meios de trabalho comum em razão de sua identidade de gênero. (TEIXEIRA, 2019).

A travesti arguiu em sua entrevista, por fim, que foi somente após testar positivo para o vírus HIV/Aids, devido ao episódio com o preso “Playboy” e ser assistida pelo Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo – GTP+, que veio a conhecer a existência de seus direitos enquanto estava no sistema prisional. (TEIXEIRA, 2019).

Assim, depreende-se que não apenas “Playboy” violentou e abusou de Fernanda, não apenas os agentes penitenciários que negligenciaram a ocorrência de abusos com a travesti, consentiram com os atos criminosos e torturas que lhe foram desferidas, e não apenas a sociedade errou por estigmatizá-la, mas que o Estado teve grande papel nas violações de direitos ocorridas, uma vez que é o principal guardião dos interesses dos indivíduos.

Se o Estado a tivesse provido o direito à educação, Fernanda não precisaria ter se submetido à prostituição como meio único para sobreviver. Se o Estado a tivesse concebido o direito à saúde, a travesti teria realizado um tratamento adequado

para evitar a contaminação pelo HIV/Aids. Se o Estado a tivesse protegido, Fernanda não teria sido estuprada e sofridos tantas outras formas de abuso dentro e fora do cárcere.

Nessa toada, verifica-se, ainda, a ausência do Estado-defesa, assistente jurídico aos indivíduos que não possuem recursos financeiros para financiar defensores particulares, considerando que Fernanda só veio a ter conhecimento que possuía direitos ao ser atendida pelo Grupo de Trabalho em Prevenção Posithivo, conforme conta em sua entrevista, sendo inocentada apenas após quase 02 anos presa. (TEIXEIRA, 2019).

No ponto, uma vez que noticiado por Fernanda que os agentes penitenciários conheciam dos crimes de abuso sexual e demais violências físicas que se sucediam em face da travesti e de Tainá e Michele e mesmo assim se omitiram, vale destacar o teor do artigo 13, caput e § 2º, do Código Penal (BRASIL, 1940), que traz à baila a relação de causalidade entre a conduta e o resultado do fato delituoso, também denominada de nexo causal:

Relação de causalidade

Art. 13 CP - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Relevância da omissão

§2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

A respeito disso, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 177) dirá que “são delitos omissivos impróprios os que envolvem um ‘não fazer’, que implica na falta do dever legal de agir, contribuindo, pois, para causar o resultado”. Contudo, para que isso aconteça, é preciso que o omitente “tenha o dever legal de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa e culposamente, auxiliando na produção do resultado”.

O autor, complementando sua explanação, dá o exemplo do policial que observa uma conduta de roubo, sem interferência, em razão de ser inimigo da vítima

e, tendo agido propositadamente, responderá por roubo, no modo comissivo por omissão. (NUCCI, 2014).

Rui Stoco (2007) disserta quanto à responsabilidade dos agentes penitenciários de zelar pela guarda e integridade física dos apenados, depreendendo- se que, no caso de Fernanda, esta é incontroversa.

O preso, a partir de sua prisão ou detenção, é submetido à guarda, vigilância e responsabilidade da autoridade policial, ou da administração penitenciária, que assume o dever de guarda e vigilância e se obriga a tomar medidas tendentes à preservação da integridade física daquele, protegendo-o de violências contra ele praticadas, seja por parte de seus próprios agentes, seja por parte de companheiros de cela ou outros reclusão com os quais mantém contato, ainda que esporádico. (STOCO, 2007, p. 1.166-1.167).

Ora, reputa-se, assim, que no caso de eventual apuração pelo cometimento dos delitos de lesão corporal e estupro noticiados por Fernanda, deveriam os agentes penitenciários responsáveis responderem na mesma medida que “Playboy” e os demais violentadores, uma vez que se não fosse pela sua omissão e consentimento, estes delitos jamais teriam acontecido.

Assim, resta evidenciada que a ausência do Estado na vida de Fernanda e das demais travestis não apenas causou sua marginalização, segregação e estigmatização social, eis que além de condicioná-las a viver em locais violentos, em que prepondera o cometimento de delitos, possivelmente na oportunidade em que o ente mais precisava protege-las, este foi omisso, uma vez que seus agentes irromperam com o preceito básico da responsabilidade objetiva estatal ao não exercer a vontade do Estado de resguardar e proteger a todos os cidadãos.

Destarte, o momento atual prescinde de uma participação mais ativa do Estado na defesa dos interesses jurídicos de grupos minoritários e periféricos, a fim de evitar sua exclusão social, bem como de maior atenção aos cuidados da população carcerária brasileira, com o objetivo de averiguar as incongruências e violações ocorridas nesse sistema medieval.

Mister, assim, é expor a necessidade de se promover políticas públicas que contenham teor protetivo e informativo à comunidade transgênero, para que ela tenha

outros meios e caminhos para sobreviver e para que possa se armar de conhecimento para lutar pela sua proteção e respeito, conquistando paulatinamente seu espaço social na condição de seres humanos.

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