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A função da educação e o papel do ensino superior

3. A CONCEPÇÃO DAS ESCOLAS DE DIREITO E A SUA ESTRUTURA

3.3 O perfil da primeira proposta curricular das escolas de direito

3.3.1 A função da educação e o papel do ensino superior

A visão dos parlamentares sobre o ensino do direto e sobre a sua estrutura curricular estava inserida dentro da dimensão mais ampla que abrangia as funções da educação no início do Oitocentos. As primeiras intervenções sobre a necessidade dos cursos jurídicos no território nacional, tanto na Constituinte, como na Assembleia Geral, foram acompanhadas de reflexões acerca do papel da educação e do ensino superior na época. Na Câmara, as propostas sobre a criação das escolas de direito foram contestadas pelos deputados Ferreira França e Lino Coutinho com o argumento de que o fortalecimento dos “estudos menores” era prioritário no momento. Até o advento da Revolução de 1820, a organização dos estudos na metrópole obedecia à seguinte classificação: a educação era dividida em estudos “menores” e “maiores”, sendo que os primeiros compreendiam dois níveis – as “primeiras letras” e as “humanidades”. As “primeiras letras” eram dedicadas às atividades de ler, escrever, contar, seguidas das “humanidades” que abrangiam filosofia racional, retórica, língua grega, gramática latina, desenho. Os estudos maiores correspondiam ao ensino superior, dentro do qual se destacava o ensino universitário. No Brasil, após a expulsão dos jesuítas, os estudos menores foram transferidos para as aulas régias, financiadas pelo subsídio literário. Os deputados concordavam que, em diversas províncias do país, a sua oferta era precária e a qualidade insatisfatória.

Os pronunciamentos de Ferreira França e Lino Coutinho sobre as prioridades de investimento na instrução pública desencadearam debates esclarecedores no tocante aos estudos maiores e menores e o seu respectivo papel e grau de importância. Para Coutinho, os brasileiros seriam mais “felizes com a instrucção do povo, do que com o grande numero de doutores”.23 O deputado insistiu no papel do ensino primário como a base da moralidade e da

23 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 12/05, p. 61-62.

“felicidade da nação”, trazendo o exemplo positivo da Inglaterra.24 Para Vasconcellos e Baptista Pereira, ao contrário, o ensino superior possuía essa função e devia ocupar, em consequência, lugar prioritário na pauta da Assembleia Geral. Baptista Pereira expôs o seu ponto de vista com um argumento hierarquizante:

Quando um criado de servir lê uma gazeta e lhe dá valor, não é por saber ler, é pelo trato, que tem com homens de instrucção. (....) Por isso não posso concordar com o illustre deputado, que disse que a prosperidade da nação vinha de saber ler, escrever e contar e não dos grandes doutores.25

Os membros da Assembleia Constituinte já tinham enfatizado a função do ensino superior para o aprimoramento moral do homem e para o avanço civilizacional. A palavra “civilização” foi constantemente utilizada pelos parlamentares no seu sentido original setecentista. Esta foi descrita pela historiadora portuguesa Ana Cristina Araújo como a que instaurou, no plano da linguagem, “a ligação entre a arte de bem regular as acções práticas do indivíduo em sociedade, em sintonia com a ideia de perfectibilidade moral e intelectual assinalada ao homem” e “a maneira de conceber a conservação e o engrandecimento dos povos e das nações, em sintonia com a ideia de progresso”.26 Três anos mais tarde, na mesma direção interpretativa das funções do ensino, os parlamentares demonstraram convicção no papel da educação como caminho para evitar situações de crime e desordem. Marco Antonio de Sousa resumiu o funcionamento do processo educativo nos seguintes termos:

Ninguem, Sr. presidente duvidará que os conhecimentos humanos fazem o homem mais reflexo, e moral, porque as idéas sobre a virtude passão ao coração, e nelle excitão sentimentos nobres, e virtuosos.

24 Ibid., sessão de 17/05, p. 65.

25 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 17/05, p. 66.

26 ARAUJO. Ana Cristina. A cultura das luzes em Portugal. Temas e Problemas. Lisboa: Livros Horizonte,

2003, p. 11.

(APOIADO.) Os homens sábios por via de regra são os menos ferozes, e mais bem morigerados. (APOIADO)27

Faz-se registro de que essa visão sobre as funções da educação era amplamente compartilhada também pelos senadores.

Em Portugal, no início dos anos 1820, foram atribuídas funções semelhantes à instrução pública. Segundo o historiador português Luís Reis Torgal, o uso do conceito de “instrução pública” e a sua institucionalização tiveram começo nas reformas pombalinas; contudo, este ganhou o seu significado diferenciado após a revolução liberal.28 A instrução pública passou a compreender, simultaneamente, o desenvolvimento das faculdades intelectuais no ambiente público, ou seja, fora do doméstico, o acesso do povo ao ensino e o dever do Estado em garanti-lo. De acordo com o autor, as várias tendências do liberalismo em Portugal expressavam sua fé na instrução como base do edifício social e, em contrapartida, viam na ignorância a causa da perversão.

Nota-se que no Brasil de 1826, os parlamentares que debatiam a instrução pública – tema essencial das primeiras décadas do Novecentos –, recorreram, em regra, à linguagem pré-revolucionária. O diálogo sobre a questão foi marcado pelas expressões “ensino das primeiras letras” (que compreendia “a arte de ler e escrever”), “primeira instrução”, “estudo da gramática e da filosofia”, “aulas ou estudos maiores”.29 Apenas por duas vezes aparecem termos novos, como foi o caso do uso de “liceus” e de “academias”, em substituição às designações tradicionais de “humanidades” e de “universidades”, respectivamente.30 O uso da linguagem antiga sugere que os parlamentares não estavam mobilizados, naquele momento, em repensar a organização da instrução pública no país. Para a maioria, o investimento em “doutores” era mais relevante.

27 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 05/08, p. 55.

28 TORGAL, Luís Reis. Instrução Pública – o sentido e a força de um conceito liberal. In: MATTOSO, José.

História de Portugal, v. 5. Lisboa: Estampa, p. 609-610, 1998.

29 Anais da Câmara dos Deputados, sessões de 12/05, p. 61-62, e de 17/05, p. 64-67. 30 Ibid., sessão de 17/05, p. 64-65.

É digno de menção o projeto do deputado Januário da Cunha Barbosa que procurava repensar de forma ampla e inovadora a organização da instrução pública no país, desde a educação primária até o ensino superior. O projeto, apresentado na Câmara dos Deputados no dia 16 de junho de 1826, chama atenção pela sua extensão, complexidade e pela ambição de mudar a educação no seu conjunto. A proposta, recorrendo a novas ideias e terminologias, previa a divisão do ensino em quatro graus – pedagogias, liceus, ginásios e academias. Todavia, o projeto não chegou a ser posto em discussão e, no seu lugar, foi debatido e aprovado um outro, de teor e concepção bem mais restritos, que tratava apenas da criação das “escolas de primeiras letras” em todo o país. Este foi convertido em lei – a Lei de 15 de outubro de 182731 dois meses após a aprovação da lei fundadora do ensino jurídico nacional. Dessa forma, o Parlamento cumpriu o seu papel no tocante à educação primária, mas absteve-se de dar a sua contribuição para uma regulamentação inovadora de toda a instrução pública.

Reformar o ensino e ampliar a sua oferta, com ênfase na educação primária, foi uma das principais tarefas dos representantes nas cortes portuguesas. Na leitura do resumo dos projetos que surgiram sobre a educação durante o triênio liberal, chama atenção a mudança de terminologia utilizada na divisão do ensino, que passou a incluir novos termos como “escolas secundárias”, “liceus”, “academias”, “escolas centrais”.32 É importante registrar que a implementação das reformas estruturais no ensino em Portugal, com as novas denominações que as acompanhavam, teve início apenas em 1835.33

31 Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1827. Parte I. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878. 32 Torgal informa que existiam dois tipos de projetos no triênio liberal: de tipo reformista, ou seja, os

que levavam em consideração as reformas pombalinas, e de tipo revolucionário. TORGAL, Luís Reis. Instrução Pública – o sentido e a força de um conceito liberal. In: MATTOSO, José. História de Portugal, v. 5. Lisboa: Estampa, 1998, p. 611.

33 Apesar de não conseguirem dar efetividade aos projetos sobre a reformulação do ensino no seu

conjunto, o triênio vintista deixou como legado avanços marcantes no campo da instrução primária, como a instituição de 60 escolas distribuídas por todo o país, a criação de seis escolas femininas, a valorização do professor, com repercussões, nos seus vencimentos e aposentadoria. TORGAL, Luís Reis. Instrução Pública – o sentido e a força de um conceito liberal. In: MATTOSO, José. História de Portugal, v. 5. Lisboa: Estampa, 1998, p. 616-618.

3.3.2 A natureza e a função dos cursos: as contribuições dos