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Se a escolha das matérias que iam compor o futuro currículo dependia da sua respectiva relação com o “mundo velho” ou o “mundo novo”, existiam mais razões ainda para esse critério ser aplicado na apreciação dos compêndios utilizados em Coimbra e das teorias neles contidas. Enquanto selecionavam as cadeiras, os deputados se referiam com frequência aos autores já estudados em sala de aula, para esclarecer o conteúdo delas e argumentar sobre a sua permanência ou não no currículo. A definição dos procedimentos sobre a seleção e aprovação dos manuais para uso em sala de aula mobilizou a Câmara, provocando a manifestação da opinião dos parlamentares sobre as práticas análogas em Coimbra.

O projeto em trâmite não fazia indicação de compêndios, apenas das disciplinas que iam compor o curso, fato que dificultava a formação de opinião sobre o novo currículo. Porém, os deputados mostravam-se preocupados com a demanda por manuais que iria surgir após a abertura dos cursos. Alguns deles não viam problemas em adotar os compêndios utilizados em Coimbra. Almeida e Albuquerque reagiu a essa ideia, considerando-a completamente inapropriada para o Brasil, regido por uma “constituição liberal”. Ao comentário de que existiam bons compêndios de direito pátrio que podiam ser utilizados no Brasil, o deputado pernambucano respondeu, com ironia, que estes existiam certamente e que fundamentavam “toda a legislação no poder absoluto do monarcha”, demonstrando “quase todas as theses pelos principios da

75 Nesse sentido, ver SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português. Fontes de direito.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 515-17.

considerava “fóra de proposito” a autorização do compêndio do Pascoal José de Melo Freire, ficando claro, no contexto do debate, que Almeida e Albuquerque também tinha se referido a este jurista.77

Outros autores também foram mencionados, na maioria das vezes para serem criticados, procurando-se demonstrar que a sua obra era inadequada para o momento histórico que se vivenciava. Os nomes citados com frequência foram os de Cavallario, Rieger, Martini, Heinecio, Waldeck. Os autores de livros de direito romano – Waldeck e Heinecio – eram acusados de ensinar os princípios e teorias do governo absoluto. As teorias de Cavallario e Rieger, na opinião de alguns parlamentares, seriam inúteis por tratar de história eclesiástica. Para Baptista Pereira, aliás, o estudo de qualquer História seria irrelevante no exercício das profissões jurídicas.78 Ademais, como já mencionado, os compêndios de Cavallario, o “defensor do ultramontanismo”, não deveriam ser recepcionados no Brasil, segundo Vasconcellos e Baptista Pereira. É importante frisar que não existia unanimidade entre os deputados na avaliação da obra dos autores aqui mencionados, da mesma forma que coexistiam pronunciamentos díspares sobre os compêndios de Pascoal José de Melo Freire.

Contudo, a seleção de bibliografia não foi uma tarefa que o Parlamento quis enfrentar naquele momento de fundação do ensino jurídico nacional. Quando se discutia o tema dos compêndios, a questão principal dizia respeito ao controle do conhecimento por parte dos poderes políticos que remetia às tarefas de escolha ou de aprovação dos compêndios. Como o projeto de lei determinava que a seleção dos manuais era direito dos professores e a sua aprovação dependia da congregação, cabendo ao governo a impressão, vários parlamentares, adiantando a sua posição, pronunciaram-se a favor da sanção do Legislativo nesta matéria. Quando o assunto entrou em pauta, a opinião da Câmara já estava consolidada: a aprovação dos compêndios deveria ser feita

76 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 26/08, p. 264. 77 Ibid., sessão de 26/08, p. 267.

78 Ibid., sessão de 08/08, p. 79.

Parlamento, por ser a matéria objeto de lei. O deputado apoiou o seu argumento no exemplo dos estatutos portugueses que regulavam detalhadamente os diversos aspectos da estrutura do ensino e que faziam parte de uma lei. Não se deve esquecer que, após as revoluções liberais, o conceito “lei” sofreu uma forte transformação, passando a remeter à vontade dos cidadãos expressa pelos seus representantes no Parlamento, e não mais à vontade do monarca. No seu segundo pronunciamento, Lino Coutinho percebeu que o exemplo não era apropriado, em função desse deslocamento do lugar da soberania – que deixou de ser prerrogativa de um monarca –, e atualizou o seu argumento, afirmando que o assunto exigia “a maior vigilância”, pelas razões que seguem:

[...] é á nação inteira que se vão transmittir essas doutrinas, e dellas depende em grande parte a sorte da mesma nação. Portanto, a assembléia geral, que representa a nação inteira, é que deve julgar dos livros porque se deve instruir a nação: não é isto um objecto que se confie a um ou outro homem em particular.79

A intervenção retificadora do deputado abre espaço para novas reflexões relativas ao conceito de nação aqui pressuposto, de caráter bastante restrito.

Com a questão sobre a aprovação dos compêndios resolvida, ainda restava tomar decisão sobre o direito de selecionar os livros e doutrinas, que poderia ser também da Assembleia ou dos “lentes”. Para esse debate, Vergueiro evocou boas lembranças de Coimbra e saiu em defesa dos professores daquela universidade e da sua capacidade de fazer uma seleção crítica dos conhecimentos a serem transmitidos em sala de aula.80 O deputado de São Paulo se mostrou confiante no bom senso dos lentes que os impediria

79 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 11/08, p. 115.

80 Vergueiro contou o seguinte episódio ocorrido em sala de aula: “Lembro-me que um dos meus lentes

em Coimbra era obrigado a explicar por um compendio, com cuja doutrina elle nem sempre se conformava, principalmente quando este compendio, definindo os poderes espiritual e temporal, dizia que o espiritual era o poder da igreja e o temporal o poder dos reis. Elle reproduzia esta mesma idéa e depois accrescentava – Vamos com os nossos estatutos, que nos obrigão a seguir esta opinião – e por fim dava uma risada”. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 11/08, p. 117.

a opinião da maioria, que preferiu inserir uma emenda, como garantia, explicitando essa determinação.

Em resumo, no entendimento da Câmara, a produção ou escolha dos manuais faria parte das atribuições dos professores, contudo estaria sujeita à aprovação do Parlamento. Deve ser feito registro da posição contrária de Almeida e Albuquerque para quem a escolha dos compêndios não deveria estar sujeita à aprovação do Legislativo. O deputado pernambucano fez a seguinte colocação:

Eu nunca vi o corpo legislativo intrometter-se na escolha destas sciencias, sem ser taxado de despotico, que é justamente o que fazia o antigo governo, que não queria que houvesse liberdade de ensinar as doutrinas.81

Albuquerque ainda lembrou que na época “se ensinava na universidade de Coimbra que o poder dos reis vinha de Deus”, lia-se Mably, Voltaire, Rousseau e outros escritores, chamados pelo governo português de “perigosos” e cuja leitura costumava ser proibida. E continuou o seu raciocínio, posicionando-se contra a “inquisição sobre os conhecimentos humanos” em um “tempo constitucional”.82

O parlamentar pernambucano referiu-se à censura literária como uma prática do Antigo Regime, incompatível na sua visão como o constitucionalismo. Faz-se necessário o registro de que a palavra censura possuía no sec. XVIII significado mais amplo do que o contemporâneo, abrangendo não apenas a atividade de proibição de circulação de impressos, mas também o exame da qualidade das obras avaliadas.83 De fato, tratava-se de uma atividade comum em Portugal na época dos governos absolutos. O governo josefino tinha promovido mudanças no regime de censura da época,

81 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 11/08, p. 118. 82 Ibidem.

83 KIRSCHNER, T. C. A reflexão conceitual na prática historiográfica. In: Dossiê: A escrita da história: os

desafios da multidisciplinaridade. Textos de História. Revista do Programa de Pós-Graduação em

História da UnB. Brasília: UnB, v. 15, n. 1-2, 2007, p. 52.

seja, tinha transferido para o Estado a atividade, por meio dos censores régios. De acordo com Graça Almeida Rodrigues,84 naquele momento, o espírito de vigilância foi redirecionado para a defesa rigorosa do poder real, atingindo as obras dos autores que escreviam contra leis, costumes, privilégios e disciplina nos governos absolutos. Não se deve esquecer, portanto, que apesar dos seus méritos, a reforma do ensino superior português institucionalizou as ideias iluministas em um ambiente de ensino, o que contribuiu para a perda do seu vigor combativo. Ademais, ela filtrou essa cultura, censurando as principais obras do iluminismo, estrangeiras ou nacionais.85 A prática de vigilância do saber foi mantida também no governo de D. Maria.

Foi nesse ambiente intelectual que os parlamentares tinham realizado seus estudos. Os livros por eles utilizados em sala de aula começavam a ser impressos após o parecer da Junta de Providência Literária e após aprovação régia.86 Em 1826, a tradição de controle do conhecimento que existia no reino português e nos seus domínios voltava a se manifestar no ambiente da Câmara dos Deputados. A decisão de manutenção deste tipo de censura que contrariava a liberdade de pensamento recebeu crítica aberta somente de Almeida e Albuquerque para quem essa prática não era compatível com o novo ambiente político.

No Brasil, vários deputados criticavam o conteúdo dos manuais selecionados para o ensino em Coimbra,87 mas não a prática de terem sido impostos por ordem do governo ou adotados após a sua aprovação. O Parlamento não se posicionou criticamente em relação a esse tipo de interferência dos poderes políticos nas instituições de ensino superior que

84 RODRIGUES, Graça Almeida. Breve história da censura literária em Portugal. Oficinas Gráficas da

Livraria Bertrand, 1980.

85 Este argumento foi elaborado a partir de um diálogo com a historiadora portuguesa Ana Cristina

Araujo, realizado no dia 03 de dezembro de 2012, na Universidade de Coimbra.

86 A leitura da legislação sobre o ensino superior promulgada no período faz menção constante a esse

procedimento. Ver ABREU, José Maria de. Legislação Academica. Desde os Estatutos de 1772 até ao fim do anno de 1850. Coimbra: 1851.

87 No início deste tópico aparecem os autores cujos compêndios foram objeto de frequentes críticas na

Câmara dos Deputados.

prática. Os deputados defendiam a necessidade de vigilância das teorias ensinadas, argumentando que a consolidação do Estado constitucional dependia do tipo de formação que iam receber os bacharéis. Dessa forma, no novo contexto do constitucionalismo foram elaborados novos argumentos para justificar essa espécie de controle político do conhecimento.