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A natureza e a função dos cursos: as contribuições

3. A CONCEPÇÃO DAS ESCOLAS DE DIREITO E A SUA ESTRUTURA

3.3 O perfil da primeira proposta curricular das escolas de direito

3.3.2 A natureza e a função dos cursos: as contribuições

As primeiras escolas de direito no Brasil foram pensadas como cursos de ciências jurídicas e de “ciências sociais”.34 Foi a comissão de instrução

pública que imprimiu essa concepção mais ampla aos cursos, por entender que o perfil profissional dos bacharéis neles formados não seria restrito ao de magistrado ou advogado. As funções de legislador, de diplomata e de “homem de Estado” também demandariam uma formação universitária. É nos seguintes termos que se expressou Cunha Barboza: “Ora a politica não é mais facil de aprender-se do que a medicina, nem os seus resultados são menos importantes para a nação, mormente quando o governo é constitucional e representativo”.35 Nota-se que o curso projetado pela comissão era abrangente e que era composto por poucas matérias jurídicas. As outras matérias o projeto denominou de “sociais”, sendo que no decorrer das discussões estas foram também vinculadas a estudos da política. Os debates parlamentares contêm algumas indicações, nem sempre explícitas, de quais seriam as disciplinas não abarcadas pela ciência jurídica. Nesse quadro estavam inseridas a Estatística Universal, a Geografia Política e a Economia Política. No tocante às numerosas disciplinas vinculadas ao campo da História – História da Legislação Nacional, História das Legislações Antigas e seus efeitos políticos, História Eclesiástica, e História Filosófica e Política das Nações – as opiniões divergiam. Esse perfil da proposta curricular que constava do projeto foi mudando no decorrer das discussões, sendo que matérias jurídicas como Direito Mercantil e Marítimo, e Prática do Processo foram acrescentadas, por meio de emendas, no lugar de algumas disciplinas de ciências sociais, como Estatística e Geografia. No sentido inverso dessa tendência, a Diplomacia integrou o rol das disciplinas não jurídicas.

34 Ver o art. 1 da Lei de 11 de agosto de 1827, no anexo III. 35 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 07/08/1826, p. 63.

A concepção e as funções dos cursos jurídicos geraram divergências no Parlamento. Não existia concordância entre as elites políticas se os cursos seriam de direito ou de direito e de ciências sociais. Vasconcellos e Baptista Pereira se posicionaram contra o estudo das “ciências sociais”. Para Baptista Pereira, que era magistrado, o curso jurídico deveria ser dedicado à

“habilitação daquelles cidadãos que se dedicão ao foro”, sendo que o curso de

ciências sociais compreendia muitos ramos “que se não fazem necessarios ao magistrado e ao advogado, para as funções dos seus cargos”.36 Nesse ponto, o deputado preferiu não afastar-se da concepção tradicional de ensino jurídico que compreendia a dedicação exclusiva ao estudo de matérias jurídicas. Na Universidade de Coimbra, estas foram o Direito Romano, o Direito Pátrio e o Direito Canônico. Não era o caso de Lino Coutinho. Ele rechaçava a opinião do deputado acima mencionado para quem o ofício de julgar não dependia do conhecimento das “doutrinas sociaes”, e não aceitava a conformação do currículo às “matérias puramente jurídicas”. Coutinho argumentou, acertadamente, que o magistrado desempenhava “muitos outros empregos de importância” na sociedade, como os de chefes de polícia, oficiais da saúde, deputados da junta da fazenda, juízes de alfândega, diplomatas, conselheiros e ministros, ou seja, ofícios que demandavam formação mais ampla.37 A partir desse contexto discursivo conclui-se que a formação mais ampla do bacharel, proposta por Lino Coutinho, decorria do estudo de “doutrinas sociais” e que estas eram exemplificadas no projeto da comissão de instrução pública e nos debates pelas disciplinas Economia Política, Geografia Política, Estatística, Diplomacia. Ademais, os parlamentares utilizavam de forma indistinta os vocábulos “doutrinas sociais” e “ciências sociais”.

Aparecem neste debate dois tipos de argumentos favoráveis à introdução das “ciências sociais”, relativos a não restrição da formação às profissões jurídicas clássicas – em especial, à magistratura – e à formação ampla do próprio magistrado ou advogado. O argumento predominante na Assembleia foi o de criar cursos voltados à capacitação de quadros para as

36 Ibid., p. 65.

37 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 07/08/1826, p. 67-68.

necessidades do Estado e não à formação ampla do jurista, como pretendia Lino Coutinho. A introdução das ciências sociais ia incrementar os saberes dos bacharéis; contudo, eles permaneceriam juristas. A Câmara dos Deputados não fez a opção de oferecer cursos mais práticos, como os de administração, economia ou estatística, igualmente úteis na administração estatal. E, provavelmente, nem poderia, em função das circunstâncias específicas dentro das quais se dava o debate sobre o ensino superior. Carecia o país, ainda, dos cursos tradicionais, não existindo condições, naquele ambiente, para o êxito de propostas sobre novos cursos superiores. Ou seja, os juristas continuariam a acumular as várias funções que a administração estatal compreendia, mas, a partir de então, com algum preparo prévio. Em 1823, um debate semelhante, em parte, tinha ocorrido nas cortes liberais portuguesas. Na ocasião, um ministro do reino formulou críticas à falta de quadros especializados para o funcionalismo e ao indevido preenchimento dos cargos no Estado por teólogos e juristas, nos seguintes termos:

É forçoso confessar que os meios de instrução que por ora temos não estão ainda em harmonia com a ilustração do século, nem com as necessidades da Nação. A administração e a economia pública ressentem-se da falta de economistas e administradores, ao mesmo tempo que nos sobejam teólogos e juristas.38

A opção da Câmara por um curso de ciências jurídicas e sociais teria os seus desdobramentos importantes nas matérias do currículo, correspondendo a uma nova forma de organização dos estudos de direito no Brasil, fruto das necessidades de funcionamento do aparelho estatal. O currículo que tinha orientado os estudos dos deputados brasileiros em Portugal estava direcionado para a formação de juristas com base nas matérias chamadas por Coutinho de

“puramente jurídicas”. Não houve necessidade de esclarecimentos no

Parlamento sobre a definição dessa espécie de matéria. Tratava-se das cadeiras que tradicionalmente integravam a formação e que não eram próprias de outros campos do saber. Na época em que as elites políticas brasileiras

38 Apud TORGAL, Luís Reis. Instrução Pública – o sentido e a força de um conceito liberal. In: MATTOSO,

José. História de Portugal, v. 5. Lisboa: Estampa, 1998, p. 642.

estudavam no reino de Portugal, “puro” era o currículo inteiro, cabendo discussão apenas sobre o estatuto da matéria Direito Natural, por ter caráter interdisciplinar.

O Parlamento, como é possível concluir, distanciou-se, nesse ponto, do modelo da Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra que não oferecia estudos em ciências sociais. Essa foi a sua primeira contribuição para a formação de um perfil próprio das escolas de direito no Brasil. Prevaleceu, portanto, a concepção que previa a criação de cursos de direito como forma de suprir a demanda por quadros para a administração do Estado. A decisão foi tomada visando expandir as opções profissionais dos juristas e não em função de um projeto de qualificar a formação dos bacharéis que iriam exercer a profissão no foro, ampliando a sua compreensão sobre o funcionamento da vida social. Para a maioria dos parlamentares, as disciplinas que pertenciam ao campo dos estudos sociais não eram relevantes na formação de magistrados e advogados. Na sua visão, esta deveria estar voltada para a aprendizagem dos modos de interpretação e aplicação do direito.

Dessa forma, a Lei de 11 de agosto de 1827 inaugurava ao mesmo tempo, cursos de direito e de ciências sociais. Observa-se que os estudos sociais ocupavam lugar secundário não somente na estrutura curricular, mas também na mentalidade dos parlamentares. Alguns poucos deputados persistiram na defesa da ideia de que não estavam sendo criadas apenas escolas de direito, mas de ciências sociais também. Porém, os cursos foram pensados e consolidados como cursos jurídicos, fato confirmado pela mudança de sua denominação, em 1854, para “faculdades de direito”. É possível que em função do projeto de oferecer uma formação mais ampla, e em razão da inexistência de outros cursos superiores nessa área do conhecimento, os primeiros bacharéis em direito formados no país estariam preparados a fazer reflexões sobre a sociedade, formulando as primeiras interpretações sobre o Brasil.39

39 Ver, por exemplo, a obra Ensaio sobre o direito administrativo do visconde de Uruguai (Paulino José

Soares de Sousa), que se formou na primeira turma do curso de São Paulo. SOARES DE SOUSA, Paulino

Apenas em 1879 os estudos sociais iriam obter a sua autonomia, por meio do Decreto n° 7.247, de 19 de abril de 1879.40 Esse decreto dividiu as faculdades de direito em duas “sessões” – de ciências jurídicas e de ciências sociais, e estabeleceu para cada uma a relação das matérias pertinentes. A cadeira Direito Natural, com as suas várias ramificações, era comum às duas áreas. Chama atenção que, cinquenta anos mais tarde, as matérias específicas dos estudos sociais preservariam a mesma natureza e finalidade presentes na lei fundadora dos cursos jurídicos. Diplomacia, Ciência da Administração, Economia Política, Ciência das Finanças do Estado integravam a formação do “bacharel em ciências sociais”, voltada, de acordo com a mesma lei, para o preenchimento dos “lugares nas repartições públicas”. Entretanto, não causa estranheza que apenas o grau de bacharel em direito habilitava para o exercício da advocacia e da magistratura.

O termo “ciências sociais”, como foi possível constatar, possuía no século XIX significado diferente do utilizado a partir do século XX, principalmente com a consolidação disciplinar da Sociologia. A rigor, tratava-se de doutrinas sociais e não ainda de teoria social ou de ciência social. O uso do vocábulo ciências sociais no Parlamento remetia, em especial, a estudos na área da economia e da política. Esses saberes eram vistos como instrumentos de administração estatal.