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5 SENSAÇÃO E CONHECIMENTO

5.3 Estrutura não encouraçada

5.3.1 A função da empatia

Em um texto enxertado em 1949 no livro Character analysis — “The expressive language of the living” (A linguagem expressiva da vida) —, Reich fez algumas referências à dimensão empática do contato humano. Apresentando importantes fundamentos de seu terceiro método terapêutico (a orgonoterapia), ele ponderou que “apenas quando tivermos sentido a expressão facial do paciente estaremos em condições de compreendê-la”. O termo “compreender”, realçou o autor, significaria “literalmente saber qual é a emoção que está se manifestando naquela expressão facial”, ou seja, qual é o estado ou grau de mobilidade protoplasmática que o rosto traduz. Não faz diferença, ponderou o autor, “se a emoção é móvel e ativa, ou se é imóvel e contida”, pois o que importa, a seu ver, é a apreensão da condição plasmática: “Precisamos aprender a reconhecer a diferença entre uma emoção móvel e uma emoção contida” (REICH, 1949/1973g, p. 362, tradução nossa, grifos do autor).

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Retomando, no último livro por ele publicado — Contact with space (“Contato com o espaço”), de 1957 — a importância desse contato empático mediado pelas sensações ou impressões de órgão, o autor descreveu a situação em que um indivíduo, em busca de tratamento para um incômodo sintoma corporal, consulta vários médicos, sem obter deles uma solução para o seu enigmático desconforto; ainda com esperanças de encontrar uma saída para o seu sofrimento, ele resolve procurar um orgonoterapeuta. Reich relatou os procedimentos iniciais que ele costumava adotar em casos como esses e em outros, semelhantes, que impunham alto grau de dificuldade:

A primeira coisa a fazer em tais situações é relaxar, sentar-se, olhar o paciente, conversar com ele e saber que ‘impressão’ ele nos dá (get

‘the feel’ of him), impressão essa que é desdenhada tanto por

‘cientistas exatos’, quanto pela ‘psicologia’ ou pelo ‘misticismo’ (REICH, 1957, p. 11, tradução nossa, grifo do autor).

Essa atitude empática se manifestaria, por vezes, de forma mimética: “os movimentos expressivos do paciente eliciam involuntariamente uma imitação em nosso próprio organismo. Imitando esses movimentos, nós ‘sentimos’ e compreendemos a expressão em nós mesmos e, consequentemente, no paciente”. Partindo do pressuposto de que toda expressão indicaria uma “condição emocional do protoplasma”, Reich acreditava, como comentamos logo acima, que “a linguagem da expressão facial e corporal” do paciente representaria uma via privilegiada de acesso às suas “emoções”, ou seja, ao grau de motilidade plasmática: “Quando falamos de ‘atitude caracterial’ estamos nos referindo à

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impressão global que o organismo provoca em nós” (REICH, 1949/1973g, p. 362,

tradução nossa, grifos do autor).

5.4 Considerações gerais

Pudemos observar que haveria, no entendimento reichiano, uma instância — denominada pelo autor, entre outras caracterizações, de estrutura biopsíquica — que determinaria a atitude geral do indivíduo em relação às suas próprias sensações de órgão: distanciamento radical (estrutura mecanicista), distorção projetiva (estrutura mística), aproximação vívida (estrutura desencouraçada). Convicto de que a estrutura mecanicista e a estrutura mística seriam predominantes no mundo atual, o autor procurou compreender, também, como esses estilos de organização biopsíquica influenciariam o trabalho do profissional de ciência, especialmente dos cientistas que estariam, na avaliação reichiana, sob forte efeito da concepção de mundo mecano-materialista.

Distanciado, na avaliação reichiana, do principal indicador corpóreo do movimento espontâneo — as sensações plasmáticas —, o pesquisador de estrutura mecanicista ficaria agarrado às ranhuras da substância, tentando decifrar seus mínimos detalhes e se protegendo, assim, do contato direto com os aspectos irregulares e contraditórios dos fenômenos. Pois, para garimpar leis científicas gerais em terrenos movediços ou instáveis seria preciso que o pesquisador sobrepujasse, de acordo com Reich, sua “angústia orgástica” (o temor da motilidade vegetativa espontânea). Caso contrário, a estrutura mecanicista dificilmente acessaria a lógica ‘funcional’ dos fenômenos, em que a propriedade do

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automovimento desempenha importante papel. O encouraçamento, como salientou o autor, representaria o reverso da motilidade espontânea.

Outro tipo de funcionamento bastante comum, seria, na visão reichiana, a estrutura mística. Com essa designação o autor não estava se referindo a uma preferência pessoal (por temas esotéricos, por exemplo), mas a uma remodelação do funcionamento global do indivíduo que alcançaria e perturbaria o estrato profundo da motilidade espontânea. Estabelecendo contraposições entre a estrutura mecanicista e a estrutura mística, o cientista chegou à conclusão que esta última, diferentemente da primeira, estabeleceria alguma aproximação com as móveis correntes vegetativas. Tratar-se-ia, porém, de um contato espelhado ou enevoado, visto que a couraça da estrutura mística impediria que o indivíduo reconhecesse suas sensações plasmáticas como acontecimentos inerentes à própria corporalidade; distorcidas, as percepções dos fluxos vegetativos se converteriam em fantasmagorias que o sujeito atribuiria a instâncias suprafísicas.

Por mais que as estruturas mecanicistas contribuíssem continuamente para um melhor entendimento de uma ampla gama de fenômenos (inclusive, acerca das minúcias da matéria) e as estruturas místicas sempre denunciassem as limitações da dureza materialista, ambas compartilhariam, mesmo que inconsciente e involuntariamente, de certa crueldade em relação ao vivo: as estruturas mecanicistas porque se esqueceriam, com frequência, de que os seres humanos não podem ser tratados como máquinas, e as estruturas místicas porque poderiam recorrer, por vezes, à uma intensa agressividade na tentativa de apalpar o espelhamento da motilidade.

Partindo do pressuposto de que a sensação de órgão representaria o principal indicador da existência de processos energéticos primários (funcionais ou

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automoventes, na linguagem técnica reichiana), o autor tentou demonstrar que o pesquisador mecano-materialista, por conta da paralisia de sua própria motilidade sensorial, não conseguiria alcançar certos estratos dinâmicos da realidade. Estaria vedado a ele, em especial, os estratos que teriam relação direta, no entendimento reichiano, com o automovimento da energia orgone; distante dessa dimensão ‘funcional’, o cientista mecano-materialista precisaria se limitar aos aspectos superficiais e quantitativos dos acontecimentos. O indivíduo de estrutura mística, por sua vez, ainda que tivesse algum contato com suas sensações de fluxo, pouco ou nada contribuiria para um melhor entendimento científico do movimento plasmático espontâneo ou do automovimento dos fenômenos externos, pois sua couraça não lhe permitiria reconhecer a concretude objetiva da pulsação orgonótica e faria, assim, com que ele atribuísse a entidades suprafísicas acontecimentos ‘funcionais’ estritamente objetivos.

Reich era da opinião, contudo, que o cientista não encouraçado teria chances de enxergar para além da causalidade mecânica e examinar as propriedades funcionais automoventes, tanto na natureza inorgânica, quanto na natureza viva. Por vivenciar a intensa experiência da convulsão orgástica, o pesquisador desencouraçado não temeria suas sensações plasmáticas, tendo mais chances, assim, de captar sinais do automovimento orgonótico, nele próprio e externamente a ele, e desenvolver uma atividade científica ‘funcional’ ou não mecanicista.

Para o autor, a pesquisa científica estaria, em suma, diretamente associada à estrutura de funcionamento do pesquisador, estrutura essa que seria definida, basicamente, pelo tipo de contato que o indivíduo estabelece com suas sensações vegetativas. As estruturas mecanicistas, apesar do bloqueio de suas sensações de

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órgão, realizariam pesquisas extremamente relevantes, que não alcançariam, porém, os estratos orgonóticos profundos (espontâneos) da realidade; as estruturas místicas, com sua espiritualização das sensações de órgão, pouco ou nada contribuiriam para a pesquisa científica objetiva, mas cumpririam importante papel ao denunciar os limites do pensamento mecano-materialista; as estruturas não encouraçadas, por apresentarem contato direto e sem ruídos com suas sensações de órgão, teriam, por sua vez, mais chances de chegar aos níveis operacionais funcionais (não mecânicos e automoventes).

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