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3.1 Psicologia como ciência natural

3.1.1 Psicologia sem alma

Lange produziu um amplo estudo na área da Teoria do Conhecimento, que marcou não apenas Reich, mas também outras influentes personalidades, tais como o filósofo Friedrich Nietzsche, o filósofo e psicólogo Franz Brentano (1838-1917), o

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médico e psicólogo Wilhelm Wundt (1832-1920) e o físico Albert Einstein (1879- 1955). Trata-se da obra Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung

in der Gegenwart (“História do materialismo e crítica de sua significação atual”),44

publicada em 1865 e considerada, por alguns estudiosos, como uma das mais significativas produções filosóficas do século XIX (TEO, 2002).

Percorrendo a história do materialismo desde os primeiros filósofos gregos até Kant, e deste até importantes pensadores e cientistas do século XIX, inclusive Marx e Darwin, o ambicioso estudo de Lange impressionou o jovem Reich e, como veremos mais adiante, continuou repercutindo ao longo de sua obra. Uma das provas desse contínuo interesse vem da terceira esposa do cientista, Ilse Ollendorff (1909-2008). Na biografia que escreveu a respeito do marido, Ollendorff relatou que ele frequentemente dizia que a Geschichte des Materialismus “deveria constar de toda biblioteca” e relembrou ainda que, nos quatorze anos em que estiveram casados, o fato de ela nunca ter podido estudar o livro resultou em “frequentes discussões” (OLLENDORFF DE REICH, 1978, p. 143). Em Ether, God and Devil, Reich, além de fazer elucidativas alusões a Geschichte des Materialismus (como veremos mais à frente), citou Lange como uma de suas principais referências teóricas (REICH, 1949/1973b).

Tecendo uma série de reflexões epistemológicas que ecoaram intensamente nos debates, entre o final do século XIX e início do século XX, a respeito da constituição e escopo da ciência psicológica, Lange esboçou, como ponderou um comentador, o programa teórico geral de uma “psicologia objetiva”

44 Recorremos aqui a duas versões da obra do pensador alemão: The history of materialism and criticism

of its present importance (LANGE, 1865/1950) e aos dois volumes de Histoire de matérialisme (LANGE,

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aproximadamente “meio século antes de Jonh Watson (1878-1958) expressar suas ideias” (TEO, 2002, p. 286, tradução nossa). E não é improvável, a nosso ver, que essas reflexões langeanas estivessem de alguma forma presentes para Reich quando, na década de 1920, ele se perguntava se poderia haver “uma psicologia científico-natural no stricto sensu da palavra” (REICH, 1942/1989, p. 91, tradução nossa).

Em sua Geschichte des Materialismus, Lange criticou as abordagens psicológicas que adotavam como objetos de estudo, exclusivamente, certos conceitos filosóficos (por exemplo, alma e vontade) e recorriam à introspecção como método investigativo. Fomentando, em sua época, uma “verdadeira cruzada” (ARAUJO, 2007, p. 238) para livrar a reflexão psicológica de seus vícios metafísicos, o filósofo propôs a construção de uma Psychologie ohne Seele ― uma “psicologia sem alma” (LANGE, 1865/1879, vol. 2, p. 403, tradução nossa). Para Lange, não haveria a menor razão “para se admitir uma alma” (p. 402, tradução nossa), qualquer que fosse o sentido, mais ou menos preciso, que se atribuísse ao termo. A psicologia científico-natural precisaria se pautar, a seu ver, não por conceitos filosóficos, mas pela investigação experimental dos eventos psíquicos, distanciando-se, dessa forma, do “turbilhão metafísico” suscitado por noções como “alma” e “substância” (p. 398, tradução nossa). Pois a moderna perspectiva científica, à qual a psicologia necessitaria se associar, não deveria se preocupar em encontrar a essência última ou substrato dos acontecimentos mentais, mas sim, em retratar o continumm dos fenômenos psíquicos em suas relações dinâmicas e dependências recíprocas, substituindo a visão substancialista por uma perspectiva relacional, ‘funcional’, processual.

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O campo de pesquisa dessa “nova” ciência psicológica seria, no entendimento langeano, bastante amplo. Caberia à psicologia se dedicar não somente “aos fatos da vida sensível”, mas também, “ao estudo do comportamento e da linguagem humanas”, podendo, inclusive, ir além e dirigir sua atenção para “todas as manifestações da vida”, desde que permitissem extrair conclusões sobre “a natureza e o caráter do homem” (LANGE, 1865/1879, vol. 2, p. 411, tradução nossa).

Lange era da opinião, ainda, que a maior parte dos ramos da psicologia teria grande sucesso caso adotasse o “método somático”: uma orientação de pesquisa que deveria contemplar, o máximo possível, os processos corporais que estariam “indissolúvel e forçosamente ligados aos fenômenos psíquicos”. Caberia aos psicólogos determinar as bases físicas ou fisiológicas dos eventos mentais, sem, contudo, cometer reducionismos epistemológicos que perigosamente entronassem o mecano-materialismo como visão de mundo privilegiada, totalizadora e absoluta. Ainda que o “método somático” pudesse ajudar a construir e validar a psicologia científico-natural, os “processos corpóreos”, na opinião do pensador, jamais deveriam ser encarados à maneira dos “materialistas”, ou seja, como “fundamento último dos fenômenos psíquicos” (LANGE, 1865/1879, vol. 2, p. 418, tradução nossa).45

Entre os autores que ouviram o chamado de uma psicologia não essencialista e se propuseram a “reservar aos estudos psicológicos um território próprio” (FIGUEIREDO; DE SANTI, 2004, p. 13) estava o médico, filósofo e psicólogo alemão

45 O ponto de vista idealista também seria fundamental, de acordo com Lange, para o desenvolvimento

da ciência, como veremos mais adiante. Quanto ao método somático proposto pelo filósofo alemão, é de se supor que essa sugestão langeana tenha alimentado, de forma mais ou menos direta, o interesse de Reich pelas bases biológicas, ou melhor, bioenergéticas dos fenômenos psíquicos.

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Wilhelm Wundt (1832-1920). Wundt realçou que, entre ele e Lange, havia diferenças metodológicas (Lange, como comentamos há pouco, não via com bons olhos o método da introspecção psicológica), mas admitiu explicitamente a influência positiva das proposições langeanas em seus estudos na área da psicologia (ARAUJO, 2007). Dado que examinaremos, logo a seguir, certas críticas de Reich à psicologia experimental de Wundt, interromperemos momentaneamente nossas apreciações sobre Lange e retomaremos alguns aspectos da teorização wundtiana.

Tentando romper, como sugerira Lange, os “laços tradicionais com a especulação metafísica” e se aproximar das ciências naturais, Wundt concebeu, como explica um comentador, um amplo programa no campo da ciência da mente, programa esse que abarcava “desde os processos psíquicos elementares até os mais altos níveis da vida” (ARAUJO, 2007, p. 27). Pesquisador extremamente erudito, o médico alemão circulava com desenvoltura, não apenas nos terrenos da psicologia e fisiologia, mas também em áreas como filosofia e linguística, tendo como pressuposto que a ciência psicológica jamais “poderia prescindir de uma fundamentação filosófica sólida de seus princípios e conceitos” (ARAUJO, 2009, p. 219).

Em sua clássica obra Grundzüge der physiologischen Psychologie, Wundt esforçou-se, desde a primeira edição de 1874, em demonstrar que existiria uma conexão direta entre a psicologia e a fisiologia e que os objetos de estudo dessas disciplinas seriam intimamente relacionados (WUNDT, 1874/1904).46 No entanto,

ele considerava a fisiologia, como admitira em carta enviada em 1872 à sua futura esposa, tão somente “um estágio preparatório para, a partir da vida corpórea, com

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Valemo-nos aqui da tradução norte-americana da obra — Principles of Physiological Psychology —, publicada em 1904 e realizada por Edward Titchener (a partir da quinta edição alemã, de 1902).

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a qual esta ciência se ocupa, lançar várias pontes para chegar ao lado da vida mental” (WUNDT, 1872, citado em ARAUJO, 2007, p. 153).

Uma dupla de comentadores destacou que, para o médico e psicólogo alemão, as “funções mentais mais simples, como a sensação e a percepção” seriam passíveis de estudos laboratoriais, ao passo que os “processos mentais superiores, como a aprendizagem e a memória” fugiriam ao controle experimental e exigiriam abordagens semelhantes às empregadas (usando-se uma terminologia mais atual) “na antropologia, na sociologia e na psicologia social” (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, p. 83). Wundt estabeleceu, assim, uma distinção entre “a psicologia individual, fisiológica ou experimental” e a “psicologia dos povos (Völkerpsychologie)”. Se a primeira poderia ser alcançada por meio da experimentação, a segunda exigiria, contudo, uma análise profunda dos “fenômenos culturais e coletivos (linguagem, mito, religião etc.)” (ARAUJO, 2009, p. 214). A associação das duas esferas possibilitaria, na perspectiva wundtiana, um entendimento mais amplo da vida mental.

No pioneiro e antológico Laboratório de Psicologia Experimental de Leipzig, fundado por Wundt em 1879, foram realizadas cerca de uma centena de investigações marcadamente experimentais. De acordo com um levantamento realizado pelo psicólogo e historiador da ciência Edwin Boring (1886-1968), metade das pesquisas laboratoriais empreendidas por Wundt e seus alunos inseria-se na área da sensação e da percepção: “Em termos de percepção, os wundtianos estudaram temas como as imagens residuais positivas e negativas, o contraste visual e a percepção de tamanho, profundidade e movimento” (GOODWIN, 2010, p. 126). Boring constatou, ainda, que aproximadamente 17% dos experimentos procuravam medir os tempos de reação, ou seja, o período de tempo que o sujeito

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do experimento precisava para responder a um dado estímulo (HOTHERSALL, 2006, p. 112).

Foram abordagens experimentais desse tipo, acerca do fenômeno sensorial, que Reich criticou com veemência em suas breves apreciações sobre a psicologia wundtiana. Seria preciso, a seu ver, investigar a sensorialidade a partir de outro ponto de vista, como veremos a seguir.