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4 SENSAÇÃO E EMOÇÃO

4.2 Emoção plasmática

Comentamos, em outro momento, que Reich, ao tentar flexibilizar o encouraçamento de seus pacientes, deparou-se com a irrupção de uma série de fenômenos somáticos que tinham em comum a impressão subjetiva de que algo se movia ou passara a se mover no corpo como decorrência do processo terapêutico de desformatação da couraça. Vimos que o cientista denominou aquelas impressões de sensações plasmáticas, vegetativas, de órgão ou orgonóticas, e que, a seu ver, tais apreensões sensoriais estariam diretamente associadas à motilidade protoplasmática ou a função vegetativa humana. Focando a mais emblemática daquelas percepções — as sensações de corrente —, vimos, ainda, que Reich não se limitou a averiguá-las do ponto de vista clínico e que as reexaminou durante seus experimentos com a bioeletricidade da pele.

A questão dos fluxos plasmáticos ou vegetativos se tornou “tão importante” para o cientista que ele decidiu estudá-los não apenas em seres humanos, mas também “microscopicamente em protozoários” (REICH, 1938/1979, p. 25, tradução nossa). O seu pressuposto era de que as correntes ou movimentações protoplasmáticas se fariam presentes tanto em unicelulares, quanto em

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multicelulares, e que a função vegetativa humana, como vimos anteriormente, nada mais representaria do que um aparato organizador da atividade plasmática do corpo como um todo.

No final de 1935, Reich, procedendo a investigações que logo o levariam ao estudo experimental dos bions, passou a observar pormenorizadamente o comportamento plasmático de alguns seres unicelulares (preocupando-se muito mais com as formas ou tipos de movimento, do que com os aspectos estruturais ou bioquímicos), inspirando-se, entre outros trabalhos, nas pesquisas dos protozoologistas Ludwig Rhumbler (1864-1939) e Max Hartmann (1876-1962).62 No

contexto das investigações que submetiam seres unicelulares a diversos tipos de estímulos (químicos, térmicos, elétricos, luminosos), Rhumbler e Hartmann, como esclareceu um comentador reichiano, constataram que as amebas, em função da quantidade e qualidade dos estímulos, moviam-se em direção a eles ou os evitava, assumindo, nesse segundo caso, uma forma esférica do tipo “‘fingindo-se de morto’”. Os pesquisadores também identificaram dois tipos de correntes plasmáticas nas amebas: fluxos de plasma em direção à superfície (que poderiam ser acompanhados por uma “aproximação ativa” do unicelular em relação a um dado objeto) e fluxos de plasma que seguiam da superfície em direção ao núcleo (denotando retração do micro-organismo). A dupla de cientistas também notou que a ameba, quando em repouso, apresentava “movimentos pulsáteis na forma de um ritmo alternado de expansão e contração” (SHARAF, 1983, p. 208, tradução nossa). Podia-se observar na ameba, em suma, tanto uma pulsatilidade, quanto fluxos plasmáticos.

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Hartmann interessou-se profundamente pela “morfologia comparativa de diferentes protistas”, pelo “processo sexual em protozoários” e pela “análise e organização de seu núcleo” (FOKIN, 2004, p. 291- 292, tradução nossa).

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Em um estudo publicado em 1934, Reich sintetizou da seguinte forma aquelas pesquisas:

De acordo com Max Hartmann, o movimento da ameba depende diretamente do fluxo de plasma. Quando a ameba se move para frente, o plasma flui do centro para a periferia (formando assim o pseudópodo) [...]. Se a ameba for tocada, o fluxo de plasma reverte- se a si mesmo, isto é, o plasma se desloca do pseudópodo para o centro. É dessa forma que os pseudópodos se retraem. Se a ameba lançar vários pseudópodos e, por acaso, tocar em algo sólido, o plasma flui em direção ao pseudópodo que está em contato com o corpo sólido, enquanto os demais pseudópodos se retraem por esvaziamento de plasma. Quando ela se alimenta, o plasma sempre se move em direção à periferia. O plasma reage negativamente se afastando, em resposta a estímulos químicos, térmicos, elétricos ou luminosos. [...] A subestrutura do sistema de atividade vital da ameba nada mais é do que um fluxo vegetativo de plasma (REICH, 1934/1982a, p. 43, tradução nossa, grifo do autor).

Sempre preocupado em encontrar denominadores comuns entre distintos fenômenos e níveis de funcionamento, o autor, associando suas pesquisas teóricas, clínicas, laboratoriais e epistemológicas, acreditou ter identificado um inédito e bastante peculiar ponto de ligação entre o comportamento dos seres unicelulares e a vida “emocional” humana:

A palavra ‘emoção’ significa, literalmente, ‘mover para fora’,

‘empurrar para fora’. Assim, não só podemos como devemos tomar ao pé da letra a palavra ‘emoção’ quando nos referimos às sensações e movimentos. A observação, por meio de microscópio, de amebas vivas submetidas a discretos estímulos, revela inequivocamente o significado do termo ‘emoção’. A emoção nada mais é, basicamente,

do que um movimento plasmático. Os estímulos agradáveis eliciam

uma ‘emoção’ no protoplasma, do centro em direção à periferia. Os

estímulos desagradáveis, por sua vez, provocam uma ‘emoção’, ou

melhor, uma ‘remoção’ do protoplasma, da periferia em direção ao centro do organismo. Essas duas direções básicas das correntes biofísicas plasmáticas correspondem aos dois afetos básicos do aparato

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psíquico: prazer e angústia. O movimento plasmático corporal e a correspondente sensação, como demonstraram os experimentos com o oscilógrafo, são funcionalmente idênticos (REICH, 1949/1973g, p. 356- 357, tradução nossa, grifo nosso).

Pautando-se por suas pesquisas experimentais, o autor insistiu que o sistema plasmático do ser vivo teria como propriedade básica a “MOTILIDADE ESPONTÂNEA” (REICH, 1952/1991b, p. 14, tradução nossa, grifo do autor). Por resultar, segundo o cientista, da coligação entre matéria e forças orgonóticas, a motilidade espontânea teria herdado o automovimento da energia orgone cósmica (pré-massa) e estaria, também, sob o efeito das determinações físico-químicas. Essa motilidade espontânea ou automovimento protoplasmático, com suas ações elementares de dilatação-retração e deslocamento por fluxos ou correntes, seria, na visão reichiana, a própria “emoção”. Indivíduos humanos e organismos unicelulares seriam “funcionalmente idênticos” (apresentariam características comuns) no que se refere: a) “às excitações biológicas básicas”, b) “às direções das correntes [plasmáticas]” (REICH, 1950/1990e, p. 19, tradução nossa).

Nessa perspectiva, criaturas unicelulares, desprovidas de sistema nervoso, seriam dotadas, elas também, de emoções no sentido reichiano do termo; mais que isso, teriam alguma percepção dessas “emoções” ou do próprio movimento protoplasmático: “Os impulsos e sensações são ações biológicas do organismo total. Estão presentes no sistema vital muito antes do desenvolvimento de um sistema nervoso organizado” (REICH, 1942/1989, p. 287, tradução nossa).

No âmbito dessa peculiar linha de investigação reichiana, os processos “emocionais” humanos, por estarem diretamente coligados à motilidade plasmático-vegetativa, aparentar-se-iam filogeneticamente às “formas de

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movimento dos moluscos e protozoários” (REICH, 1949/1973g, p. 398, tradução nossa, grifo do autor):

O sistema nervoso vegetativo é [...] um sistema plasmático contrátil, um órgão contrátil que permeia todo o organismo. Representa a ‘ameba no organismo multicelular’. [...] O ‘animal no homem’ [...] realmente existe como o elemento mais primitivo da natureza, que une o animal humano e a massa plasmática móvel (REICH, 1937/1982b, p. 125, tradução nossa, grifos do autor).

Procedendo a uma espécie de ‘despsicologização’ e enfatizando muito mais os aspectos dinâmicos do que os estruturais, o cientista ponderou, no estágio orgonômico de sua produção, que as “emoções” devem ser vistas como “funções

plasmáticas, bioenergéticas”, não como “funções mecânicas, químicas ou mentais” (REICH, 1949/1973h, p. 443, grifo do autor, tradução nossa). Mas não apenas as “emoções” receberam, por parte de Reich, uma inédita caracterização; o conceito de “expressão emocional” também foi reexaminado, pelo autor, em termos plasmáticos.