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A função do Direito na Teoria dos Sistemas

PARTE II – A INTERPRETAÇÃO ENQUANTO ATRIBUIÇÃO DE VALORES AOS

VI.III A função do Direito na Teoria dos Sistemas

As ações humanas são vítimas do tempo, que com o seu passar se apagam e se tornam fugazes. Essa realidade tende a causar uma imensa sensação de insegurança nos homens que, para viverem em paz, necessitam de um mínimo de garantia de que algo que foi combinado hoje possa prevalecer no futuro.

No dizer de Luhmann, o Direito é composto por generalizações congruentes de expectativas normativas. Todas essas expressões organizadas em uma só estrutura frásica não remetem, instantaneamente, à sua significação, pelo menos para quem se defronta pela primeira vez com tão rica teoria, razão pela qual tentaremos clareá-las, dentro das nossas limitações.

Dentro do sistema social, o Direito age contra essa contingência temporal que afeta as expectativas recíprocas. Dizemos recíprocas, porque numa relação humana ambos os participantes alimentam expectativas em relação à atitude do outro, assim como espera que o outro tenha uma determinada expectativa em relação a si e às condutas em geral. Num contrato de compra e venda, v.g., tanto o comprador espera receber a coisa como o vendedor crer na percepção do preço, assim como cada um espera de si mesmo o cumprimento do próprio dever. Isso é o que Luhmann denomina “dupla contingência”.

Sem essa previsibilidade ofertada pelo Direito, não há como tornar estáveis os comportamentos recíprocos; por conseguinte, não há comunicação. É

169 O autor afirma que a alopoiese se dá quando o sistema perde a sua força operacional, em

razão da sobreposição de outros códigos de comunicação sobre o código originário do sistema corrompido, diluindo, inclusive as fronteiras entre sistema e meio ambiente. (NEVES, M., 1994, p. 129.)

diante de um conflito que o Direito decide quem tem razão sob os seus ditames legais, estabilizando as expectativas normativas que lhe sejam consonantes (conforme o Direito).

Seria humanamente impossível que o Direito regulasse cada um dos conflitos intersubjetivos de forma individualizada; para tanto, este instituto conta com as normas, que são generalizações aplicáveis a vários casos ao mesmo tempo e representam expectativas comuns de um dado grupo social situado no tempo e no espaço, gerando um fictício consenso sobre o que é aceito pela sociedade, com o intuito de impulsionar os indivíduos a agir em sua conformidade.

Mesmo assim, o Direito não tem ingerência direta no agir humano, os homens podem atuar conforme as normas legais ou não; logo, o máximo que aquele pode fazer é impor sanções para as práticas em dissonância com os ditames legais. Daí porque Luhmann afirma que este garante as expectativas e não os comportamentos correspondentes. Destarte, a desobediência das normas não deslegitima o Direito, vez que as expectativas se mantêm mesmo nessa hipótese e a sua força se reafirma pelo fato de se ter estabelecido previamente a punição aplicável em cada caso de inobservância, daí porque são chamadas de expectativas contrafáticas.

Esse raciocínio muito se assemelha com a idéia desenvolvida pelo prof. Tércio Sampaio Ferraz Junior, embora este não se utilize das expressões aqui citadas, de que o Direito deve ser confirmado, admite a sua negação, mas não a sua desconfirmação ou a sua ignorância, vez que esta o deslegitima.

Porém, não é qualquer expectativa que o Direito alberga. Luhmann divide as expectativas em cognitivas, que são aquelas oriundas da observação dos acontecimentos, em razão das quais o homem aprende que determinado fenômeno se dará sempre de uma determinada maneira. Daí porque se diz que as expectativas cognitivas obedecem à regularidade dos fenômenos. Tanto que

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sempre que houver modificação nos acontecimentos que lhe deram origem, elas também se alteram; são, pois, expectativas que se adaptam aos fatos ou expectativas fáticas.

Já as expectativas normativas não guardam relação direta com os fenômenos empíricos, isto é, elas se mantêm, mesmo que no mundo fático elas sejam frustradas, melhor dizendo, mesmo que as pessoas não se comportem em conformidade com o que aquelas prevêem, razão pela qual são denominadas “expectativas contrafáticas”. Portanto, as desilusões causadas pela sua inobservância não abalam a sua mantença.

Em resumo, ensina-nos Orlando V. Filho:

toda e qualquer expectativa consiste numa antecipação do futuro que, enquanto tal, é suscetível de frustração. Assim é que existiriam basicamente duas formas de se lidar com a frustração: adaptar a expectativa à situação que a frustra ou mantê-la contra tal situação. No primeiro caso se está diante de uma expectativa cognitiva, que aprende e se adapta à situação que a contraria. No segundo, se está diante de uma expectativa normativa, que se mantém mesmo contra a situação que a decepciona.170

A generalização das expectativas normativas deve se dar: no âmbito temporal, através da aplicação das sanções; no âmbito social, através dos procedimentos; e, na dimensão prática, a partir dos programas condicionais de decisão. Ou seja, o direito faz uso da sanção para absorver as frustrações na dimensão temporal; do consenso fictício para generalizar as expectativas na dimensão social, imunizando-as contra as condutas em desconformidade ao Direito; e dos programas decisórios condicionais para, na prática, obter decisões a partir do esquema “se/então”.171 Daí porque se diz que as generalizações das expectativas normativas são congruentes.

170 VILLAS BÔAS FILHO, 2006, p. 187, 188. 171 Ibid., p. 190.

Com seu código e programas, como diz Orlando V. Filho,

o sistema jurídico está apto a desempenhar sua função de estabilização contrafática de expectativas normativas, função essa que ele exerce de forma exclusiva a partir da aplicação programática dos valores de seu código e que o caracteriza enquanto subsistema funcional da sociedade moderna. É a consecução dessa função que torna o direito discernível do sistema social global (sociedade) e demais subsistemas funcionais, tais como a ciência, a política, a economia, etc., que tal como o direito, têm seu código e respectivos programas. Trata-se, bem entendido, de funções concorrentes que não podem ser sobrepostas umas as outras nem mesmo hierarquizadas, pois isso se chocaria com a auto-referencialidade que é própria dos subsistemas que as desenvolvem.172

Faz-se mister ressaltar que, embora o Direito não seja capaz de assegurar todas as expectativas normativas, ele precisa se impor regulando os conflitos e determinando que as expectativas que contarem com o respaldo social serão protegidas; caso contrário, produziria generalizações de frustrações e não de expectativas.173 Por outro lado, para a teoria dos sistemas, não importam os motivos pelos quais as pessoas agiram conforme as generalizações congruentes, o que importa é que as expectativas sejam estabilizadas.

Como diz Luhmann:

La función del derecho de introducir orden conserva su peculiaridad por la importancia de saber lo que se puede esperar justificadamente de los otros (¡y de uno mismo!). O dicho con menos elegancia: con qué tipo de expectativa uno no queda en ridículo. La inseguridad respecto a las expectativas es más insoportable que experimentar sorpresas y desencantos.174

172 VILLAS BÔAS FILHO, 2006, p. 203.

173 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1985, p. 82 apud VILLAS BOAS FILHO, 2006, p. 206.

174 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México:

Universidade Ibero-americana, 1998, p. 209. “A função do direito de introduzir ordem conserva sua peculiaridade pela importância de saber o que se pode esperar justificadamente dos outros (e de si mesmo!). Ou dito com menos elegância: com que

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É imperioso que se advirta que em razão do elevado grau de complexidade e contingência que atinge a sociedade contemporânea, as funções dos sistemas são insubstituíveis, nenhum sistema pode fazer as vezes do outro sem que isso afete gravemente a sua diferenciação funcional, causando, como já dissemos, a alopoiese do sistema.

O prof. Tércio Sampaio Ferraz Junior, ao apresentar, brilhantemente, a obra Legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann, afirma que

O direito é visto, então, como uma estrutura que define os limites e as interações da sociedade. Como estrutura, ele é indispensável, por possibilitar uma estabilização de expectativas nas interações. Ele funciona como um mecanismo que neutraliza a contingência das ações individuais, permitindo que cada ser humano possa esperar, com um mínimo de garantia, o comportamento do outro e vice-versa.175

VI.IV A relação do Direito com o subsistema econômico – o paradoxo da