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A vagueza e a ambigüidade inerentes à linguagem

PARTE II – A INTERPRETAÇÃO ENQUANTO ATRIBUIÇÃO DE VALORES AOS

IV.II A vagueza e a ambigüidade inerentes à linguagem

Como já dissemos retro, a língua é um sistema de signos voluntariamente produzidos e convencionalmente aceitos, mediante o qual o homem se comunica com seus semelhantes, expressando suas idéias, sentimentos e desejos.111 São justamente os fatos de a linguagem ser produzida a partir da vontade humana e de ser compartilhada em razão de uma convenção entre os homens, que, ao nosso entender, geram os “problemas” que nela encontramos.

Como se não bastasse, é fácil constatar, pela nossa própria experiência, que a língua é estruturalmente aberta. Cada vocábulo pode absorver inúmeras significações, a depender do contexto lingüístico ou da situação humana em que é utilizada. Sem falar que uma só palavra tem diversos critérios de aplicação, que estão conectados, fácil ou dificilmente perceptíveis. Casos há

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em que somos capazes de apontar um sentido central para uma dada expressão e outras extensões metafóricas.

Como se não bastasse, a linguagem ordinária, em contínua construção, leva ao hábito de usarmos uma palavra para objetos absolutamente distintos, sem que consigamos encontrar qualquer conexão entre suas propriedades. Um célebre exemplo é o utilizado por Wittgenstein, ao demonstrar que a palavra jogo pode ser utilizada para o futebol, o rugby, os jogos de palavras, a loteria, as brincadeiras de rodas infantis, etc., mas não pode ser utilizado para outras atividades esportivas como o boxe.

Na maioria das vezes, o simples contexto, ou uma explicação mais acurada, são capazes de extirpar os mal-entendidos e fazer prosseguir a conversação, mas casos há em que não se pode seguir adiante. Todos esses problemas, solucionáveis ou não, são ocasionados pelo fenômeno da ambigüidade.

Almeida Torres define ambigüidade como: “disposição viciosa de palavras, que apresenta dualidade de sentido.”112

De forma mais abrangente, Luiz Alberto Warat diz que uma palavra é ambígua:

Primeiro quando a palavra expressa mais de um significado ou possui um campo referencial múltiplo. Depois se através de seu grafismo ou significante, pode-se fazer referencia a uma família de significados relacionados metaforicamente. Afinal, quando o termo possui um uso vulgar e outro científico.113

Ocorre que, às vezes, nos deparamos com certas situações em que não nos faltam informações acerca daquele objeto, mas temos dúvidas acerca do

112 TORRES, Almeida A. Moderna Gramática expositiva da língua portuguesa. Rio de

Janeiro: Editora Fundo de Cultura S/A, 1959 apud PENTEADO, 2001, p. 151.

seu campo de aplicação, isto é, se naquele momento é adequado o uso daquela palavra ou não. Melhor dizendo, não se consegue vislumbrar claramente os limites do uso daquela expressão.

A vagueza consiste, portanto, na falta de precisão de significado de uma palavra, fazendo com que a sua aplicação seja duvidosa em alguns casos. Tal qual a ambigüidade, essa também é uma característica inerente à linguagem, todas as palavras são vagas em alguma medida.

Ricardo Guibourg faz uso de uma analogia, também citada por Genaro Carrió, em sua Notas sobre el derecho y el lenguage, bastante esclarecedora, no que pertine à vagueza:

El significado de las palabras, pues suele presentarse – según una clásica comparación – con una luz proyectada sobre una superficie. Habrá una parte claramente iluminada en el centro, y en torno seguirá reinando la oscuridad. Pero entre claridad y oscuridad habrá un cono de penumbra, en cuyo ámbito el objeto iluminado será visible, aunque no con la misma facilidad. Del mismo modo, y para cada palabra, existe un conjunto central de casos en los que el nombre resulta aplicable: encajan sin dificultad en los criterios usuales, y estamos habituados a aplicar el vocablo a tales situaciones. Habrá un número infinito de casos (el entorno) a los que no aplicaríamos la palabra en modo alguno. Pero existe también un cono de vaguedad, donde nuestros criterios resultan insuficientes y los casos no pueden resolverse sin criterios adicionales más precisos.114

Genaro Carrió nos faz um alerta:

114 GUIBOURG, Ricardo A. et al. Introducción al conocimiento cientifico. Buenos Aires:

Editora Universitária de Buenos Aires, 1985, p.49. “O significado das palavras, costuma se apresentar, segundo uma clássica comparação, com uma luz projatada sobre uma superfície. Haverá uma parte claramente iluminada no centro e em torno seguirá reinando a obscuridade. Mas, entre a claridade e obscuridade, haverá um cone de penumbra, em cujo âmbito o objeto iluminado será visível, não com a mesma facilidade. Do mesmo modo, e para cada palavra, existe um conjunto central de casos nos quais o nome resulta aplicável: encaixam sem dificuldade nos critérios usuais, e estamos habituados a aplicar o vocábulo a tais situações. Haverá um número infinito de casos (o entorno) aos quais não aplicamos a palavra de modo algum. Mas, existe também um cone de vaguidade, onde os nossos critérios resultam insuficientes e os casos não podem se resolver sem citérios adicionais mais precisos.” (tradução nossa).

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No todas las palabras vagas lo son de la misma manera. Hay veces en que las vacilaciones que suscita la aplicación de un rótulo general a un hecho o fenómeno concreto se originan en que los casos típicos están constituidos por un conjunto de características o propiedades que allí aparecen estructuradas o combinadas en una forma especial, y no resulta claro se el criterio implícito en el uso del término considera a todas ellas, o solo a algunas, condición necesaria y suficiente para su “correcta” aplicación. El problema irrumpe con la aparición de los casos marginales o atípicos, en los que faltan algunas propiedades, por lo común concomitantes, o está presente una adicional, de carácter insólito.115

Ou seja, existem vocábulos que nos parecem claros em situações extremadas, gerando-nos dúvidas apenas em algumas hipóteses em que suas propriedades não surgem tão nítidas, como a palavra edifício, v.g., o Tomie Ohtake, certamente o é, mas e um iglu? E uma pirâmide do Egito? O seu uso por si não é capaz de apresentar quais as condições necessárias e suficientes que um elemento deve ter para integrar à sua classe.

Há quem acredite116 que as indeterminações da linguagem podem ser dissipadas a partir da transformação do sentido vulgar das palavras em sentido técnico, a partir de cinco fenômenos observáveis no Direito, que são: operatividade, as palavras utilizadas pela lei têm sentido preciso e dispositivo; definição, o princípio da não contradição faz com que as impurezas das palavras ordinárias sejam extirpadas; quantificação, a lei estabelece limites precisos para o uso das palavras que emprega; tipificação, a lei regula as condutas através de

115 CARRIÓ, 1990, p. 32. “Nem todas as palavras vagas o são da mesma maneira. Há vezes

em que as dúvidas que suscita a aplicação de um rótulo geral a um fato ou fenômeno concreto se originam porque os casos típicos estão constituídos por um conjunto de características ou propriedades que ali aparecem estruturadas ou combinadas em uma forma especial e não resulta claro se o critério implícito no uso do termo considera a todas elas, ou só algumas, condição necessária e suficiente para sua ‘correta’ aplicação. O problema suge com a aparição dos casos marginais ou atípicos, nos quais faltam algumas propriedades, comumente concomitantes, ou está presente uma adicional de caráter insólito.” (tradução nossa).

116 Soler apresenta tais idéias ao criticar Carrió. (SOLER, Sebastian. La interpretación de la

tipos precisos, sem deixar dúvidas acerca do seu emprego; constituição, a lei constitui a sua realidade através de conceitos antes inexistentes.

Basta uma mirada rápida para nossa própria experiência jurídica, para vermos que as coisas não se comportam tal como prevista acima. Este se trata de um esquema ideal, que muitas das vezes não confere ao intérprete a precisão de que ele necessita. Mesmos os tipos legais trazem dúvidas no momento do seu emprego a um caso concreto. Portanto, não há processo ou fenômeno jurídico capaz de clarear as zonas de penumbra inerente à linguagem ordinária.

O dialogismo, do qual falamos na primeira fase desta investigação, é um dos causadores dessa polifonia, já que aquele consiste em muitas vozes, e estas dizem respeito, no dizer de Bakhtin, àqueles textos em que a polifonia se deixa ver e que se contrapõe aos textos monofônicos, onde o diálogo não se mostra, ainda que não se possa dizer que lá não estejam presentes, já que ele é condição da linguagem humana.

É nesse sentido que Solange Jobim e Souza se posiciona:

Dialogismo e polifonia constituem as características, essenciais e necessárias, a partir das quais o mundo pode ser compreendido e interpretado de muitas e diferentes maneiras, tendo em vista seu estado de permanente mutação e inacabamento117.

Muitos foram os estudiosos ao longo da história, que empenharam seus esforços em conferir univocidade à linguagem, que o digam os positivistas legalistas. Porém, o completo êxito dessa empreitada é, sabemos desde já, inalcançável, vez que a vagueza e ambigüidade são inerentes à própria palavra, não havendo como extirpá-las plenamente.

Não estamos sós nesse sentir; Carrió afirma contundentemente:

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Es verdad que de hecho usamos muchas palabras sin que se susciten oportunidades de duda; tales palabras no son actualmente vagas. Pero también es verdad que todas las palabras que usamos para hablar del mundo que nos rodea, y de nosotros mismo, son, al menos, potencialmente vagas. Sus condiciones de aplicación no están determinadas en todas las direcciones posibles; siempre podemos imaginar casos, supuestos o circunstancias frente a los cuales el uso no dicta la aplicación ni la no aplicación del término.118

Charles Bally nos adverte que a busca pela unidade significativa de cada palavra pode trazer prejuízos à comunicação, à medida que o rigor e a sofisticação podem ser tantas que a mesma tornar-se-á ininteligível para o povo, ocasionando um uso degradante e confuso dos vocábulos.119

Sem falar que, se partirmos para uma postura extremada, tais dificuldades podem levar ao niilismo lingüístico e este a uma obstaculização da compreensão dos significados.

Assim, somos obrigadas a concluir que debalde foi a busca incessante de Savigny por um método capaz de conferir universalidade e unidade à interpretação. Hoje sabemos que, em tendo como matéria-prima as palavras, a atividade hermenêutica há de ser sempre inconstante. É bem verdade que podemos tentar minimizar essa insegurança, fazendo com que o intérprete transite em uma certa zona de precisão, mas extirpá-la, jamais.120

118 CARRIÓ, 1990, p. 34. “É verdade que de fato usamos muitas palavras sem que se

suscitem oportunidades de dúvida; tais palavras não são atualmente vagas. Mas também é verdade que todas as palavras que usamos para falar do mundo que nos rodeia, e de nós mesmos, são, ao menos, potencialmente vagas. Suas condições de aplicação não estão determinadas em todas as direções possíveis; sempre podemos imaginar casos, supostos ou circunstâncias frente aos quais o uso não dita a aplicação nem a não aplicação do termo.” (tradução nossa).

119 BALLY, Charles. El lenguaje e la vida. Buenos Aires: Editorial Losada, 1957 apud

PENTEADO, 2001, p. 39.

120 Em se adotando uma postura analítico-hermenêutica e cientes de que, ao apreciar um

texto normativo, podem-se analisá-los nos três âmbitos semióticos (sintático, semântico e pragmático), pensamos que o melhor método interpretativo é o sistemático, mas ainda assim este não seria capaz de aplacar plenamente o indeterminismo que circunda perenemente o fenômeno de contrução de sentido.

É ilusório pensar que existem regras e critérios para o uso de todas as palavras. Como diz Carrió,121 é um equívoco crer que todas as propriedades que não forem apontadas para definir uma palavra não são relevantes. Só se pode dizer que uma delas não é importante se ela houver sido cogitada e descartada. Como é humanamente impossível se realizar tal tarefa a cada vez que nos deparamos com uma situação de construção de sentido, sempre existirão características pertencentes a uma classe de palavras que não puderam ser trazidas à baila e que, por isso, não se sabe se são relevantes ou não, deixando constantemente em aberto um possível uso.

Há que se asseverar, ainda, que a própria criação de regras que visassem sanar a indeterminação da linguagem também requereriam nova construção de sentido ou até se poderia alocá-las dentro da zona de penumbra.