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3 A LEGITIMIDADE DA FUNÇÃO POLÍTICA DO PODER JUDICIÁRIO NA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL

3.6 A Função Política do Judiciário para os Procedimentalistas

Segundo Vianna, para o eixo procedimentalista de Habermas-Garapon, o predomínio, por décadas, do tema da igualdade, sob o Welfare State, teria erodido as instituições e os comportamentos orientados para a valorização da vida associativa, daí derivando um cidadão-cliente, dependente do Estado. A igualdade, ao reclamar mais Estado em nome de uma Justiça distributiva, não somente enredara a sociedade civil na malha burocrática, como favorecera a privatização da cidadania. A crescente e invasora presença do Direito na política seria apenas um indicador deste processo e deveria encontrar reparação a partir de uma política democrática que viesse a privilegiar a formação de uma cidadania ativa. (VIANNA et

al, 1999, p.24).

Para Vianna, a democratização social, no andamento descrito por Marshall, teria como conseqüências perversas a perda da democracia, significando a estatalização dos movimentos sociais, a decomposição da política, a erosão da lei como expressão da soberania popular, a politização da razão jurídica e sua

contraface necessária: a judicialização da política. A invasão da política e da sociedade pelo Direito, e o próprio gigantismo do Poder Judiciário, coincidiriam com o desestímulo para um agir orientado para fins cívicos, o juiz e a lei tornando-se as derradeiras referências de esperança para indivíduos isolados, socialmente perdidos. (VIANNA et al, 1999, p.24).

Segundo Garapon, a presença total e absoluta do Direito e das instituições do Judiciário na vida social preencheria, assim, um vazio, devolvendo à sociedade um sentimento de justiça que "decênios de marxismo e [de predomínio do Estado de] bem-estar providencial tinham levado ao embotamento". Essa nova sensibilidade traduziria uma demanda moral: "a expectativa de uma instância que se pronuncie sobre o bem e o mal, e fixe a idéia de injustiça na memória coletiva [...], a procura de identificar, na vida democrática, um Outro que possa satisfazer as suas questões existenciais". A judicialização da política e do social seria, então, um mero indicador de que a justiça se teria tornado um "último refúgio de um ideal democrático desencantado". (VIANNA et al, 1999, p.25).

Tal processo não seria conjuntural nem de base local, mas universal e inteiramente articulado à própria dinâmica das sociedades democráticas, cuja escalada de demandas dirigidas ao Poder Judiciário não se explicaria apenas pelas facilidades introduzidas na forma de acessá-Io: "a explosão do número de processos não é um fenômeno jurídico, mas social". A valorização do Poder Judiciário viria, pois, em resposta à desqualificação da política e ao derruimento do homem democrático, nas novas condições acarretadas pela decadência do Welfare State, fazendo com que esse Poder e suas instituições passem a ser percebidos como a salvaguarda confiável das expectativas por igualdade e a se comportar de modo substitutivo ao Estado, aos partidos, à família, à religião, que não mais seriam capazes de continuar cumprindo as suas funções de solidarização social. (VIANNA

et al, 1999, p.25).

As sociedades democráticas – entendidas por Garapon, em sentido rigorosamente tocquevilleano, como aquelas que "sediam a igualdade de condições em seu coração" – conheceriam um movimento total, absoluto, universal de migração do lugar simbólico da democracia para o da Justiça: "em um sistema providencial, o Estado é todo-poderoso, podendo a tudo satisfazer, remediar, atender. Daí que, diante de sua decadência, as esperanças nele depositadas se

transfiram para a Justiça. Doravante é nela, e, via de conseqüência, fora do Estado, que se encaminha a realização da ação política. O sucesso da Justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, em razão do desinteresse existente sobre elas e a perda do espírito público". (VIANNA et al, 1999, p.25).

A subsunção da igualdade pelo Direito deslegitimaria a República, esvaziaria de substância o soberano, enfraquecendo a cidadania politicamente ativa, em um movimento que brotaria da própria sociedade civil, que, desanimada e inarticulada, transferiria para a lei e seus aplicadores institucionais a esperança de "uma real capacidade de transformação social". Ignoradas as mediações institucionais da vida republicana, a Justiça passa a ser percebida como o lugar de produção da transparência social e da "imediata mediação", "naturalizando" a democracia, tal como nas análises mais pessimistas de Tocqueville. Ao cidadão sucede a sua versão judiciária: o sujeito de Direitos. (VIANNA et al, 1999, p.26).

Da perspectiva de Garapon, o redimensionamento do papel do Judiciário nas sociedades contemporâneas seria conseqüência da ruína do edifício institucional da modernidade, revestindo-se dos sombrios contornos de uma crise monumental do paradigma político da democracia e da sua expressão dogmática – a soberania popular –, construído a partir da Revolução Francesa. Assim, segundo ele, o Judiciário tem avançado sobre o campo da política onde prosperam o individualismo absoluto, a dessacralização da natureza simbólica das leis e da idéia de justiça, a deslegitimação da comunidade política como palco da vontade geral, a depreciação da autonomia cidadã e a sua substituição pela emergência do cidadão- cliente e do cidadão-vítima, com seus clamores por proteção e tutela, a racionalidade incriminadora e, afinal, o recrudescimento dos mecanismos pré- modernos de repressão e de manutenção da ordem. (VIANNA et al, 1999, p.26).

A incontida expansão do Direito seria um indicador de "malaise" nas sociedades atuais, uma vez que, mais do que ameaçar a democracia representativa, poria em risco os próprios fundamentos da liberdade ao transferir a criação das leis do soberano para uma casta sacerdotal, praticante de uma justiça de salvação e usurpadora do papel e das funções que antes couberam às burocracias weberianas nas sociedades modernas. O Direito se poria como a última moral comum de uma sociedade que estaria dela destituída. Tocquevilleano, Garapon se recusa a aceitar

o "círculo fatal" delimitado pelas circunstâncias, que devem ser corrigidas por uma ciência política que intervenha diretamente sobre as causas da "malaise". (VIANNA

et al, 1999, p.26).

Para Habermas, segundo Vianna, o risco da escalada da publicização da esfera privada, levando a uma sociedade ‘crescentemente funcionalizada’, estaria na conformação de um vasto Estado Administrativo a tutelar a cidadania, cenário inóspito à cultura cívica e ao espírito republicano. No qual o avanço dos valores da igualdade poderia resultar, como no velho dilema tocquevilleano, em perda da liberdade. Pois, tanto os Direitos à liberdade negativa como os de participação social "podem ser concedidos de forma paternalística", uma vez que, "em princípio, o Estado de Direito e o Estado social são possíveis sem que haja democracia". (HABERMAS apud VIANNA et al, 1999, p.20).

"pois Direitos de liberdade e de participação podem significar, igualmente, a renúncia privatista de um papel de cidadão, reduzindo- se [este], então, às relações que um cliente mantém com administrações que tomam providências". (HABERMAS apud VIANNA et al, 1999, p.19).

Assim, a agenda igualitária dos movimentos sociais, ao se realizar no

Welfare State, não somente teria produzido um déficit de igualdade, especialmente

no caso dos indivíduos desvinculados de grupos sociais com poder institucionalizado de pressão sobre as agências governamentais, como teria, sobretudo, se afastado do tema da liberdade. (VIANNA et al, 1999, p.19-20).

A "densificação dos complexos organizatórios", típica do Welfare State, teria provocado a autonomização dos diferentes subsistemas sociais de intenções e interesses dos atores, cada subsistema tendendo a se fechar em torno de si mesmo, por meio de semânticas próprias. No Welfare State, dissociado o sistema político da formação democrática da opinião, a Administração não apenas se racionaliza e se burocratiza como também, e principalmente, se autoprograma, apropriando-se da iniciativa das leis, quer por deter o monopólio das informações essenciais sobre a vida social, quer pela perícia técnica dos seus quadros em atuar sobre ela. De outra parte, extrai legitimação no campo da opinião pela mediação de partidos que são, na

prática, de Estado e não de representação da sociedade civil. (VIANNA et al, 1999, p.20).

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