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A Genealogia depois da “Segunda Intempestiva”

2.3 O QUE É A GENEALOGIA DE NIETZSCHE PARA FOUCAULT

2.3.2 A Genealogia depois da “Segunda Intempestiva”

Para Foucault, depois da Segunda intempestiva as três modalidades de cultivo da história – monumental, antiquaria e crítica – são reformuladas e passam a desempenhar funções mais críticas com relação ao estudo tradicional da história. Com o decorrer da reflexão de Nietzsche sobre o sentido da história ganha relevo a concepção de que esse sentido não está submetido a um “telos” incontornável, com isso se poderá escrever a historia de três modos com os quais é possível anular a tradição metafísica que domina a historiografia tradicional e que a leva descreve e assim educar grupos, povos e indivíduos a se

conceberem como peças passivas em um tabuleiro onde o poder está antecipadamente e irretocavelmente distribuído de forma desigual e os acontecimentos possuem uma intenção aquém e além dos confrontamentos de suas forças.

Em primeiro, o sentido histórico descrito pela investigação genealógica pode servir para “um uso paródico e burlesco” do passado pelo homem moderno. A esse homem europeu sem identidade definida, anônimo para si e também com relação aos outros, que procura infrutiferamente relembra ou reconhecer quem ele é, a história orientada pelo método genealógico lhe oferece, segundo Foucault, “[...] identités de rechange, en apparence mieux individualisées et plus réelles que la sienne” (FOUCAULT, [Fr. 1971] 2012, p. 1020). O Império Romano, a Revolução Francesa, o Cavaleiro Medieval são lhe oferecido como mascara, cenário, figurino, personagens carnavalescos cujo papel pode ele então reinventar ou improvisar quantas vezes queira ciente de que nenhum lhe pertence propriamente e por isso mesmo é livre em relação a tudo que assumir com eles, que sua originalidade está em ser o encenador. Escreve Foucault, “Plutôt que d`identifier notre pâle indiviualité aux identités fortement réelles du passé, il s`agit de nous irréaliser dans tant d`identités réapparues [...] (FOUCAULT, [Fr. 1971] 2012, p. 1021). Fica a disposição dos homens modernos a possibilidade de serem encenadores cômicos da história, que fazem da paródia do passado, a originalidade do seu presente.

Para Foucault, Nietzsche retoma nessa proposta, a “história monumental” da Segunda intempestiva (HL/Co. Ext. II, 2), então o conhecimento histórico teria como objetivo recuperar e preservar o que houve de grandioso de monumental no passado e que serviria como fonte de veneração e instrução para as escolha e ações do ser humano moderno. Como vimos, Nietzsche objetava que o perigo deste modo de escrever a história estaria em que ela poderia sufocar o que surge de especificamente original e importante no presente. Com o amadurecimento da analise histórica genealógica que se dá nos textos que se seguiram a Segunda intempestiva a questão exposta em 1874 sobre as virtudes e os perigos do uso monumental da história dará lugar à proposta de um uso paródico dessa “história monumental”, da condição de busca por se comparar com os epígonos dos elevados momentos do passado o ser humano moderno deveria assumir de boa vontade a possibilidade de ver nos momentos monumentais do passado motivações temáticas para mascaradas na qual, esse o homem de uma época sem identidade, poderia experiência tantas quantas escolher sem o peso de um compromisso definitivo.

Em segundo, o sentido histórico genealógico pode servir para dissipar a identidade proposta pela tradição histórica de um devir humano linear, contínuo, que limita o ser humano vivente a condição de um zelador da tradição. A esse grande numero de seres humanos modernos confusos e estranhos a si mesmos que procuram se apegar ao pouco do passado que lhes permite responder a pergunta sobre quem são, que procuram com o conhecimento histórico se encontrarem na continuidade de uma tradição e com isso justificarem a própria existência, o sentido histórico genealógico revela que, além da possibilidade do paródico, suas identidades escoradas por tradições é feita de muitas almas distintas, descontínuas, nada coerentes ou homogêneas, nos diz Foucault, “L`histoire, généalogiquement dirigée, [...],

entreprend de faire apparaître toutes les discontinuités qui nous traversent. (FOUCAULT, [Fr. 1971] 2012, p. 1022). O múltiplo o heterogêneo perfaz o homem moderno, ele é o “homem mistura” por mais que queira negar isso com a procura de uma tradição identitária, de uma continuidade propriamente sua na dispersão absoluta do devir.

Nietzsche tratara na Segunda intempestiva (HL/Co. Ext. II, 3) do tema da preservação do histórico como continuidade identitária que se sustenta pelo cuidado em preserva a tradição, a história assim preservada é então chamada de “História Antiquária”, serviria para preservar a tradição, presentificar cuidadosamente o passado para proporcionar a esse ser humano moderno incerto de si a ideia de que comunga uma mesma continuidade identitária reconfortante em meio à fragilidade da memória, ao acaso inumano do devir; o zelo pela tradição reconforta também porque com isso se proporcionaria aos que nascerão as condições identitárias reconfortantes nas quais já se viveu, ainda se vive e poderão eles ainda viver. Em 1874 Nietzsche objetava a esse uso da história que ao recusar reconhecer o que surge de novo em prol da fidelidade à tradição, sufocava-se a criação, a capacidade de inovação de toda nova geração. Segundo Foucault, anos mais tarde no § 274 de Humano Demasiado Humano, esse modo perscrutar a história reaparece, só que, sobre o prisma genealógico a crítica feita será a noção de identidade que a história proporciona através da continuidade de uma tradição que ligaria o passado ao presente. Agora a pesquisa histórica orientada pela analise genealógica entenderá que o que há na história é a heterogeneidade dos elementos que a constituem, a confluência dispersiva das forças que se digladiam com esses elementos que a constituem, assim sendo, por traz da tradição que se quer preservar há a deriva dos elementos que cedo ou tarde inevitavelmente são perdidos, o banimento dos que traem e se desviam, a cegueira fingida para a miríade de elementos que acediam e adentram

para parasitarem, serem assimilados ou desafiarem a estabilidade homogênea de uma tradição.

Por fim, o sentido histórico descortinado pela genealogia procura fazer ver que, por trás da busca irrefreável por conhecimento que tem na pesquisa histórica a chave mestra instrutora e segura dessa busca, do próprio conhecimento como procura insaciável da verdade, está um “grande querer-saber”, escreve Foucault, “[...] la vlonté de savoirion, qui est instinct, passion, acharnement inquisiteur, raffinement cruel, méchanceté (FOUCAULT, [Fr. 1971] 2012, p. 1023). Essa “vontade de saber” é um irrefreável procedimento em que se destroem indiscriminadamente certas ilusões, preconceitos e opiniões que resguardam salutarmente indivíduos, povos e culturas em uma “felicidade ignorante”, busca imoderada pela verdade insensível ao que possa haver de perigoso nesse empreendimento que em não poucas situações é inusitadamente pernicioso para a alma humana. A “vontade de saber” é uma imponderável fixação por mais conhecimento que a tudo se dispõe pela verdade.

O estudo da história que se dá pela analise genealógica vê nesse “querer-saber” um instinto de conhecimento destruidor e injusto. Em vez da conquista de uma verdade universal que possa nortear todos os fins que se propuser, de um conhecimento que oriente um controle responsável da natureza, essa “vontade de saber” não para de produzir perigos para o sujeito. Mesmo a noção de um sujeito autônomo, portanto livre, que investiga o mundo com os parâmetros da razão que podem ser demonstráveis, esse sujeito parece ser uma ficção diante de cogito movediço naquilo que crer ser sua identidade, contraditório aquilo a que propôs chamar de liberdade.

Essa “vontade de saber” parece não considerar tanto o conhecimento e a verdade, em seu proceder imponderável e indiscriminado perde todas as amarras ao trazer a questão da historicidade, da temporalidade do próprio sujeito de conhecimento que não passaria de mais um construto humano. Mas, para Foucault, é mérito de Nietzsche ter não só proposto a hermenêutica como tarefa na qual o interprete deve se aventurar a perder suas certezas ao sempre ter que interpretar criticamente sua interpretação, Nietzsche também percebeu que na imponderabilidade dessa “vontade de saber” poderia está a destinação prodigiosa da humanidade, que através do conhecimento concebido como um aventurar-se em ir além do humano poderia se criar uma auto destinação para o animal humano, além da biológica. O conhecimento como procura intangível da verdade universal e necessária tem no sacrifício do homem do conhecimento pela “vontade de saber” uma nova proveniência.

Na Segunda Extemporânea Nietzsche havia tratado do uso da história como crítica do passado, a “história critica” (HL/Co. Ext. II, 3), esse modo de lidar com a história pretendia romper os laços do presente com o passado apontando seus erros, falhas, injustiças, as limitações que fazem desse passado uma herança incomoda. Posteriormente Nietzsche ponderou esse uso da história e destacava o perigo de se desvincular o presente de suas fontes no passado, além de se querer em nome da verdade condenar a vida pelos erros, falhas e injustiças que lhes são inerentes. Segundo Foucault, anos depois pelo prisma genealógico Nietzsche retoma o tema da “História Crítica” sob uma problemática diferente, se em 1874 a questão era operar uma crítica do passado para se desvencilhar do que não se gostaria de dele ter herdado e a favor das virtudes e verdades próprias do presente, progressivamente nos textos seguintes a questão será a de propor uma crítica historiadora da “vontade de saber” visando não primordialmente temporalizar a verdade do que se crê absoluto e intemporal, mas, nas palavras de Foucault, “[...] la destruction du sujet de connaissance dans la volonté, indéfiniment déployée, de savoir” (FOUCAULT, [Fr. 1971] 2012, p. 1024). O sujeito do conhecimento não encontra fronteiras ou limites para a crítica com que a “vontade de saber” nele opera, nessa imoderação se vê sempre na eminência de ir além do que acreditava ser o chão seguro do que até então acredita conhecer e se o saber é o que lhe define como sujeito terá sempre dificuldade em se reconhecer.

Ao lado de Marx e Freud e mesmo os superando, Nietzsche em 64 era para Foucault o mestre da hermenêutica moderna que convidava o interprete a se aventurar na suspeita de toda interpretação que se pretende conclusa, em 1971 Nietzsche será aquele que nos convida a assumirmos as consequências corrosivas da “vontade de saber”, em ambos os momentos a dissolução do sujeito do conhecimento é vista como positiva, pois abre a possibilidade ou esperança de novos arranjos humanos insuspeitos, ou melhor, além do humano que até aqui conhecemos.