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A Intempestividade da Genealogia

Jacob Burckhardt (1818-18897) foi para Nietzsche um interlocutor influente a respeito dos problemas que a história acarreta para a cultura moderna (Cf. CHAVES, 2000), ele sintetiza o problema levantado pela Segunda Intempestiva em uma carta endereçada a Nietzsche,

[...] o livro coloca uma incongruência realmente trágica ante nossos olhos: o antagonismo entre o conhecimento histórico e a capacidade de fazer ou de ser e, depois, novamente, o antagonismo entre o enorme amontoado de conhecimento adquirido e as razões materialistas da época. (Burckhardt, 2003, p. 296 a 297)

É patente o modelo da cultura grega clássica no pensamento de Nietzsche, é esse modelo que permitiu a ele “[...] opor à sociedade massificada o aristocratismo e o heroísmo das grandes culturas” (Chaves, 2000. p. 48). E segundo Giacoia (1990, p. 33), a dinâmica da história grega em sua dialética conflituosa entre as potencias instintivas apolíneas e dionisíacas que alcançaram segundo Nietzsche equilíbrio na tragédia ática e na cultura helênica pré-socrática, serve não só de modelos explicativos para o impasse da moderna cosciência trágica imobilizada entre a compreensão frustrante dos limites da razão e o reconhecimento da necessidade de ilusão incapaz, porem, de se auto iludir-se. Essa noção de história que toma a história grega como “função paradigmática” nos incita a ir além do reconhecimento de que o dilema dessa consciência manifesta “o movimento pendular que constitui o devir da cultura ocidental”, ela capacita o engajamento do “[...] médico da cultura para o exercício do diagnóstico e da intervenção terapêutica” (GIACOIA Jr. 1990, p. 33).

Espraiamento do racionalismo socrático, a moderna vontade imoderada de saber sobre o passado que temporaliza de forma irrestrita a condição humana, cria um ambiente intelectual pouco favorável para o empreendimento criativo de qualquer cultura sujeita a esse excesso de conhecimento sobre o inevitável destino das ações humanas, de se tornarem coisas do passado. Na Segunda Intempestiva Nietzsche destaca que as noções de a-histórico e de supra-histórico recobririam necessidades vitais de indivíduos e povos, ao mesmo tempo mostra que, se essas necessidades olvidativas são prejudicadas pelos excessos da cultura histórica moderna quando esta apresenta uma diversidade de “sentido histórico” a nossa temporalidade. A consideração dessas necessidades vitais olvidativas seria o procedimento necessário de moderação desses excessos. Tal moderação é importante por que para Nietzsche é preciso proteger e promover as forças singulares próprias a toda nova geração da

diversidade dispersiva de “sentido histórico” moderno para que elas se compreendam por si mesmas e alcancem a realização das necessidades vitais que nascem especificamente com elas e possam assim fazer parte da história, não como simples tributárias passivas e curiosas do passado e sim, como criadora de possibilidades e de novos destinos.

Visto porem que a moderna cosciência histórica insone torne inviável a consideração do a-histórico e do supra-histórico é possível ainda lidar com o pernicioso excesso de “sentido histórico” que carrega orgulhosa consigo e que segundo Nietzsche tanto prejudica a ação engenhosa da vida humana: isso demandaria três procedimentos, primeiro, reconhecer que o que impede o surgimento de um “novo tempo” de uma nova “mentalidade moderna” se constituiu historicamente, portanto, nada tem de fatalismo determinista e pode ser revertido; segundo, essa reversão se dará historiando o surgimento histórico dessa mentalidade moderna vaidosa de seu saber sobre o passado, mas desalentada e pessimista com relação ao futuro, a cultura histórica pode e deve ela mesma resolver os problemas do excesso do “sentido histórico”; terceiro, ao se fazer essa analise a contrapelo da cultura histórica é preciso reconhecer as condições, possibilidades e limites históricos de todo e qualquer conhecimento e sua equidistância de qualquer perenidade ou vinculo com noções absolutas, assim, aprenderemos a fazer uso historiográfico do ferrão crítico do conhecimento contra si mesmo para que ele possa ir além, para que ele tenha um futuro e não permaneça enterrado com o passado.

Ao tomar as coisas humanas no seu todo como históricas submetidas ao tempo e considerar que isso gera para nós desafios decisivos, que para entendê-las consequentemente é preciso historiá-las e que para esse fim pode-se prescindir de noções atemporais e absolutas sobre o mundo e a natureza humana, esses são elemento que em nosso entendimento já fazem da Segunda Intempestiva o anuncio do que viria ser a analise genealogia.

Relacionado a isso e de maneira emblematicamente pode-se reconhecer na Segunda Intempestiva o elemento da analise genealógica que usa a história como instrumento esclarecedor e crítico das condições temporais de todo e qualquer conhecimento, bem como o procedimento de investigação histórica que objetiva identificar as condicionantes arcaicas constituinte do presente que em certos casos limitam o acesso a um futuro promissor, é o reconhecimento desses entraves atávicos do presente que abre a possibilidade de se franquear o futuro como novas possibilidades, sobre isso Nietzsche escreve programaticamente, “[...] a história precisa resolver o próprio problema da história, o saber precisa voltar o seu ferrão

contra si mesmo” (HL/Co. Ext. II, 08) Nesse uso da história como diagnostico de elementos do passado que se perpetuam no presente como conflito-impasse à ação futura criadora de novas possibilidades, nos parece, estaria já anunciada em linhas gerais o caráter programático da genealogia como procedimento de analise filosófica historiográfica – ainda que pese nesse momento da obra de Nietzsche a ausência da dinâmica agônica das forças que surgirá com a hipótese da vontade de potência em relação a qual será papel da genealogia fazer a emergência e a proveniência das mesmas em um acontecimento.

Pode-se também reconhecer na Segunda Intempestiva a antecipação de outro elemento da genealogia filosófica, o questionamento de valores culturais insuspeitos –nesse caso a educação legitimada pela importância dada ao ensino de conhecimentos históricos – tomando como referência a vida sem se ater a questionamentos propriamente epistemológicos ou metafisico a respeito da origem fundante desses valores: por exemplo, na Segunda Intempestiva Nietzsche orienta sua analise a respeito do conhecimento da história não propriamente por questionamentos sobre a viabilidade de um conhecimento rigoroso cientifico do passado, mas pela questão do valor que o conhecimento histórico tem para a vida de indivíduos e povos e o resultado disso para à cultura. Nietzsche, segundo P. Woltling (2011, p. 54), “[...] redefine o pensamento da história à luz da teoria dos valores”, claro está que, ainda não havendo uma extensiva “teoria dos valores” – que só surge consistentemente com o ensinamento de Zaratustra – na Segunda Intempestiva10, nela a vida já é tomada como a referência para se avaliar a pertinência das coisas humanas, – dai por que a intenção de fazer da história a “ciência do vir-a-ser universal” propõe uma causa digna de toda a suspeita quando assevera: “Fiat veritas pereat vita” (que se faça a verdade e que pereça a vida).

Outro traço da continuidade entre a genealogia e a Segunda Intempestiva nos parece está na consideração da dinâmica da história não como um processo linear ou teleológico e universal do destino humano, o móbile de nossa história é a fatuidade das paixões humanas a imponderabilidade do nosso egoísmo a insubordinação dos instintos que fazem da ação humana um empreendimentos precário se se visa à coerência da história com ideais altivos, como escreve Nietzsche “[...] a condição de todo acontecimento, [é ] aquela cegueira e injustiça na alma do agente [...] (HL/Co. Ext. II, 1), a casuística das paixões do egoísmo e dos instintos dá a dinâmica da história um caráter contingencial onde as noções atemporais e absolutas são incognoscíveis, essa precariedade em reconhecer alguma longa constância na

história será um dos principais pressupostos da genealogia filosófica de Nietzsche e que será esclarecida pela analise da dinâmica irreconciliável e agônica das forças envolvidas nos acontecimentos.

Já com a publicação de a Origem da Tragédia a história é o procedimento para a se questionar a validade de algumas ideias caras a cultura moderna, em especial o que Nietzsche denominou de racionalidade socrática que se espraia desde a Grécia Clássica aos nossos dias arrefecendo a pluralidade e imoderada expansividade da vida. E se na Segunda Intempestiva o conhecimento da história deve resolver o problema dos excessos de “sentido histórico” proliferados pela cultura histórica em seu afã de cientificidade ao investigar o passado, a história continuará sendo o elemento estruturante da reflexão de Nietzsche sobre uma das questões centrais de seu pensamento: o diagnostico das ideias, ideais e valores da cultura moderna. Como observa Giacoia, independente das diferentes acepções de história no pensamento de Nietzsche, ela é “[...] um dos elementos fundantes da estrutura argumentativa em cada um dos momentos do seu filosofar” (GIACOIA, 1990, p. 26)

Nas páginas seguintes buscaremos explicar em linhas gerais quais novos elementos da filosofia de Nietzsche surgem entre a Segunda Intempestiva e Para a Genealogia da Moral e que serão importantes para a elaboração da genealogia. Estariam esses elementos circunscritos a reavaliação dos pros e contra dos usos monumental, antiquário e crítico da história como pensa Foucault? Quais direcionamentos surgem com o aparecimento da teoria da vontade de potência?