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Em a Verdade e as Formas Jurídica, constituída por uma série de cinco conferências pronunciadas entre os dias 21 a 25 de maio de 1973, na Universidade Católica do Rio de Janeiro, Foucault apresenta um balanço dos trabalhos que tivera feito até então e aponta o caminho que sua pesquisa estava tomando. Para André Queiroz nessa conferencia “Foucault parece lançar as bases de sua investigação genealógica” (QUEIROZ, 2000, p. 57).

Apresentando o que seriam os dois eixos de suas pesquisas anteriores, a primeira onde havia perguntado como é possível que práticas sociais deem origem a domínios de saberes, e a segunda em que buscou conceber o discurso não apenas como fato textual, mas também como estratégia, como jogos impessoais de esquadrinhamento do real, Foucault aponta para onde estaria convergindo sua pesquisa, que “[...] consisterait em une réélaboration de la théorie du sujet” (FOUCAULT, (Br. 1973] 2012, p. 1407).

Em Descartes no Discurso do Método ou em Kant na Crítica da Razão Pura, por exemplo, a figura de um sujeito do conhecimento que possuiria as condições interna que garantiriam a possibilidades do conhecimento verdadeiro é um pressuposto discutido, mas não questionado em sua legitimidade. A genealogia filosófica para Foucault servirá para, pondo de lado essa inquestionabilidade, inquirir esse sujeito do conhecimento,

[...] comment se produit, à travers l`histoire, la constituition d`un sujet qui n`est pas donné définitivement, qui n`est pas ce à partir de quoi la vérité arrive à l`histoire, mais d`un sujet qui se constitue à l`intérieur même de l`histoire, et qui est à chaque instant fondê et refondê par l`histoire. C`est vers cette critique radicale du sujet humain par l`on doit se diriger” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1408).

Há uma história da verdade na qual ela é descrita como sendo auto corrigível se depurando em traços mais precisos ou essenciais, assim ela é apresentada, por exemplo, em uma tradição da historia das ciências que não abre mão da concepção de progresso epistêmico do conhecimento humano. Mas a genealogia reconhece outro processo histórico de elaboração do verdadeiro, outra dinâmica da verdade que surge e desaparece a partir de regras de jogos de poder que dão origem a “[...]certaines formes de subjectivité, certains domaines d`objet, certains types de savoir[...]” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1409). Um dos exemplos apresentados por Foucault são os sistemas judiciário e penal que com suas regras de exercício de poder não apenas definem inocentes e culpados, mas estabelecem a verdade estigmatizadora e prática sobre o indivíduo inocente e o indivíduo culpado. Nesse caso, a

verdade do sujeito não é desvelada ou descoberta inata ou necessária, mas é o que lhe foi atribuído impingido em um processo de subjetivação subjugadora que resulta de jogos de poder onde desempenha papal importante as instituições na qual os indivíduos encontram-se inserido, neste caso, como nos diz André Queiroz “[...] o sujeito deixar de ser o produtor atemporal do saber para ser efeito de sua mecânica” (A. QUEIROZ, 2000, p.69).

Essa analise histórica genealógica de como se produz a verdade põe em questão o sujeito do conhecimento ao colocar os seguintes questionamentos: primeiro, a relação sujeito/objeto do conhecimento não está dada ou garantida, por que a noção de Deus que intermediaria esses dois termos já não mais convence e desse modo a “coisa em si” torna se inacessível, e do outro lado, o sujeito mostra-se sem esse lastro divino como campo de força instável no qual não há mais nenhuma instância psicológica factível e, por conseguinte: segundo, o sujeito do conhecimento não é o eu-referencial transcendental estático ou um ente cognoscente que se aprimora com a história, mas o animal homem com seus instintos cuja relação com o objeto é de domínio, violência, diversa da contemplação distante ou imparcial, assim, não apenas Deus como também a própria instância de um eficaz sujeito do conhecimento se tornam impertinente, “[...] alors disparaît nom plus Dieu, mais le sujet dans son unité et as souveraineté” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1415). Prestanto reconhecimento sobre o motivador dessas questões em seu pensamento Foucault afirma que, “La rupture de la théorie de la connaissance avec la théologie commence de manière stricte avec une analyse comme celle de Nietzsche” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1415).

Desse modo a pesquisa genealógica da histórica da verdade põe também em questão o conhecimento como adequação, como conhecimento apodítico de um sujeito a respeito de um objeto, não há o espelhamento cognoscível hologramático e translucido de todos os recantos do objeto na mente do sujeito, visto que: primeiro, purgado de atributos divinos ou transcendentais o sujeito do conhecimento, se existe, parece atuar não pela razão gestada por uma constância inabalável do eu-consciente como um seu instrumental cognoscente absoluto, esse sujeito se nos afigura do início ao fim um epifenômeno perpetuamente instável dos instintos, impulso, paixões que fazem desse eu-ciente ou cartesiano um seu títere e que são cegos, ou melhor, alienígena ao alegado “em si” dos objetos, eles só “reconhecem” a si mesmo; segundo, tal como para Nietzsche, o conhecimento é uma invenção da vontade e com o qual a vontade quer dominar, submeter e não reconhecer o objeto salvaguardado de todo o erro ou distorção. Nas palavras de Foucault,

Il n`y a doc pas , dans la connaissance, une adéquation à l`objet, une relation d`assimilation, mais plutôt une relation de distance et de domination; il n`y a pas, dans la connaissance, qualque chose comme bonheur et amour, mais haine et hostilité; il n`y a pas unification, mais système précaire de pouvoir. (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1417)

Foucault destaca essas inovações da genealogia de Nietzsche, mas finaliza descrevendo a sua própria estratégia com a genealogia. Afirma ser mais eficiente discutir a questão do conhecimento se dirigirmos nossa atenção não necessariamente aos temas próprios de Nietzsche “[...] la forme de vie, d`existence, d`ascétisme propre au philosphe” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1417), e sim, se nos concentrarmos nos políticos, em suas relações de luta e de poder, em como os homens conflitam entre si, odeiam uns aos outros, dominam uns aos outros, submetem uns aos outros através de relações de poder, é assim que compreenderemos a fabricação do conhecimento, como de fato ele nasce. Para Foucault essa seria uma “[...] histoire politique de la connaissance, des faits de connaissance et du sujet de connaissance” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1418), que poderá nos explicar o que é o conhecimento, quem é esse sujeito que alega conhecer e o que acontece como o objeto sobre o qual recai um saber. Foucault mais uma vez reconhece que, a estratégia que se propõe empreender já estava assinalada por Nietzsche, “[...] existe chez Nietzsche um certain nombre d`éléments qui mettent à notre disposition un modele pour une analyse historique de ce que j`appelerais la politique de la vérité”(FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1418).

Na analise histórica do conhecimento em seu processo de legitimação que toma como modelo a “politica da verdade”, o conhecimento não possui sustentação em si mesmo ele não nasce de uma necessidade humana pela verdade e sim decorre de condições político- sociais das organizações político-históricas que estão distante da busca pela verdade imparcial, atemporal e absoluta, o conhecimento e sua legitimidade é uma resultante das relações de poder humano que tem no subjugar o seu deslace e não a verdade objetiva universal como sua meta.

Voilà donc comment, à travers les textes de Nietzsche, on peut restituer non pas une thérie générale de la connaissance, mais un modèle qui permet d`aborder l`objet de ces conférences: le probleme de la formation d`un certain nombre de domaines de savoir à partir des rapports de forces et des relations politiques dans la société” (FOUCAULT, [Br. 1973] 2012, p. 1420).

A declinação que Foucault propõe a genealogia filosófica de Nietzsche nos parece poder ser compreendida como uma recusa em tomar a teoria da vontade de potência como um absoluto, tal como proposto por Nietzsche (ZA/ZA II “Da superação de si” e JGB/BM §36)25,

como observa Veyne, ainda que Foucault assuma as concepções nietzschiana de que o sujeito, o objeto e o conhecimento legítimo sejam constructos históricos, não concorda em fazer da ilusão, ou qualquer outro atributo, uma das condições da existência humana, Foucault, nas palavras de Veyne, “[...] não generaliza, tampouco faz metafisica, nem mesmo a da vontade de potência” (P. VEYNE, 2011, p.165). Dentro de seus interesses “políticos” Foucault especifica o âmbito das relações políticas como local nevrálgico para melhor entendermos como as relações de poder produzem a veracidade do conhecimento e com ela o sujeito que sabe, não é discutindo, portanto, a capacidade ou insuficiência cognoscente do ser humano que compreenderemos como se dá a legitimação do conhecimento e sim que, é nos embates políticos e seus desfechos que melhor se “[...] savoir ce qu`ele est, l`apprehender dans as racine, dans sa fabrication[...] (FOUCAULT, [Fr. 1971] 2012, p. 1017-1018). É tangindo os questionamentos de Nietzsche sobre a constituição sempre agônica do sujeito e do conhecimento humano, que tem como pressuposto a teoria da vontade de potência, é desconsiderando o caráter absoluto que essa teoria tem no pensamento de Nietzsche e enquadrando esses questionamentos nos embates políticos ou da “vida publica” que Foucault fará da genealogia seu instrumental conceitual.

Desse enquadramento dos questionamentos genealógicos de Nietzsche foi possível afrontar todo fatalismo humano e reconhecer na luta insone e não na paz perpetua, o mote da liberdade. No circulo encantado entre vontade de saber e vontade de potência do qual parecia não haver saída para as sujeições dos sujeitos tornou-se factível craveja a revolta frente ao instituído incomodo, ao estabelecido opressor, ao vigente arrefecedor. Mas nada muito fácil, como a própria política escrachadamente nos mostra: a luta não tem fim.

25 Sobre o caráter absoluto da vontade de potência e a implicação para a genealogia ver S. Marton (2010) A

Constituição Cosmológica: vontade de potência, vida e forças (Capitulo I), pag. 40 a 79. E ainda, nas palavras de S. Marton (2010, p. 104), “Moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida a um exame, deve passar pelo crivo da vida. E vida é vontade de potência. Assim, em última analise, pode-se dizer que genealogia repousa numa cosmologia”.