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A Gente: a problemática da miscigenação para a formação da identidade

3 A BAHIA REGIONALISTA DE AFRÂNIO PEIXOTO: A TERRA, A

3.2 A Gente: a problemática da miscigenação para a formação da identidade

Tão importante quanto a paisagem natural também se destaca o aspecto humano da Bahia regionalista de Afrânio Peixoto. O brasileiro, aos olhos do romancista, é o indivíduo retratado como fruto do meio em que nasceu e se criou. Não olvidando sua posição científica arraigada ao determinismo darwiniano e ao positivismo ainda em vigor nas primeiras décadas do século XX, Peixoto apresentou em suas narrativas um cenário natural que havia produzido um tipo singular de homem no contexto da identidade nacional.

Dessa maneira, o aspecto humano era elemento atrelado ao espaço geográfico que o limitava. Como homem da ciência, o médico e escritor via no processo histórico da civilização uma forma de se compreender as diferenças existentes entre as raças humanas através do processo biológico de adaptação.

Em Clima e Saúde, Peixoto já anunciava a necessidade do homem adaptar-se ao meio em que vive, e que tal processo de conformidade resultaria na criação de um tipo humano ajustado ao ambiente. Em outras palavras, o homem seria a reação ou a conformação deste ao meio em que vive, o que resultaria na raça.

O homem sertanejo retratado nas narrativas regionalistas de Afrânio Peixoto compreende tanto as raças que se moldavam ao ambiente quanto aquelas que de forma “relativa” a ele se ajustavam. Tal inferência se justificava na tese de que o Brasil era, todavia, um país em construção, inclusive em termos de formação étnica.

A ideia de que a nação brasileira era ainda jovem na trajetória de seu desenvolvimento corroborou para que o escritor pudesse dar sua contribuição à posteridade, especialmente por meio de suas pesquisas de caráter antropológico e pedagógico. Nesse sentido, seus romances regionalistas retratam com vivacidade a busca por um elemento humano genuinamente brasileiro, a partir do processo de mestiçagem.

Em Bugrinha, tal questão é discutida pelos personagens João Sobral e Gonzaga em meio a uma recepção no sítio São José. Na ocasião, o primeiro comenta que:

[...] É uma lástima... somos descendentes de pretos escravos, caboclos selvagens, e os Portuguêses... foram degredados. Não há mal que não digam dêsses aventureiros, os mais nobres ricos homens, a princípio depois os mais esforçados rapazes do

reino, cujo único defeito foi faltarem à Pátria que deixaram, e virem felicitar a outra que procuravam para ingratos filhos e espúrios descendentes, os quais insistem na calúnia dos degredados, ontem, e hoje nos marotos, pés de chumbo... Dos selvagens, alguns assimilamos e por isso desapareceram da vista: depomos que os matamos a álcool, doenças e trabalhos forçados... Dos negros, tão pacientes e servis, que nos ajudaram a fazer isto, pretendemos que, minoria ínfima e misturada, seja a totalidade da raça, e a execrada mestiçagem, diminuta fração, são todos os Brasileiros... (PEIXOTO, 1947, v. IV, p. 43-44).

No contexto do romance, Sobral é descrito como um homem culto que se contrapunha ao pensamento de que os verdadeiros brasileiros eram os “descendentes de pretos escravos” e de “caboclos selvagens”. Ao citar o elemento branco na formação da identidade nacional, novamente o personagem se exaspera, crendo ser equivocada a ideia de que os portugueses que vieram ao Brasil fossem “degredados”, vendo-os apenas como homens desbravadores de além-mar. É o que ele declara a seguir, quando diz:

[...] E, entretanto, não há povo no mundo que tenha, como o nosso, ascendência mais nobre e mais ilustre: ajudamos a restauração da fé contra os Infiéis, e o triunfo da Civilização Cristã na Península e nas Índias, forçando o refluxo, da Europa, para as nascentes ameaçadas do Islamismo; descobrimos o mundo, todos os mares e terras, e demos, por oceanos desconhecidos, voltas à mesma terra; com o nosso fausto enriquecemos a Igreja, a Europa, o mundo [...] Descendemos dêles... e entretanto lhes chamamos degredados; misturamo-los com alguns índios bravos e negros boçais e, parece que nos honra isso mais, provirmos dêstes mestiços... (PEIXOTO, 1947, v. IV, p. 44-45).

Na citação acima, Sobral louva os portugueses pela sua trajetória histórica, crendo que o verdadeiro elemento brasileiro era o de origem europeia, porquanto o homem ibérico era o de “ascendência mais nobre e mais ilustre”. De fato, tal personagem representa a voz do próprio romancista sob a influência das correntes científicas do período em que viveu. À medida que Peixoto amadurecia seu pensamento acerca das raças, da história e da cultura brasileira, maior era a sua aproximação de Portugal.

Para que se possa exemplificar tal argumento, basta que se aprecie o prefácio de Trovas Brasileiras, obra na qual o escritor, descrevendo o modo como este gênero de manifestação medieval veio para o Brasil, já declarava seu sentimento pela pátria lusitana. Desse modo, vê-se Peixoto apontar que:

Um reparo cabe particularmente como diferença entre a trova portuguêsa e a brasileira — uma é mais sentimental, a primeira, a outra mais sensual. Resultado de clima, pois que a raça é a mesma? Poder-se-ia lembrar a intrusão das raças colaboradoras, das sub-raças derivadas, para o efeito: nenhuma das que para a nossa formação étnica contribuíram foi mais sensual que a lusitana. Se tôdas amaram muito, nenhuma soube mais, ou melhor amar. A prova é que poucos, diluídos em africanos e aborígenes, predominaram. (PEIXOTO, 1947, v. XI, p. 17).

Numa reflexão a tal pensamento, percebe-se que o escritor omite os aspectos negativos da colonização. Nem mesmo em seus romances regionalistas há um posicionamento contrário à presença do elemento ibérico na formação do homem brasileiro, não mencionando

a exploração mercantilista colonial e tampouco mencionando a violência da conquista da América Portuguesa.

Em Trovas Brasileiras, outra passagem memorável de seu prefácio esclarece o pensamento de Afrânio Peixoto sobre a influência lusitana no Brasil: “[...] Não é fácil suprimir de nós o que temos de lusitanos. Quando Portugal o reclama, nós lho restituímos, e já é muito; quando não, pertence-nos, pois fomos dêle e ainda não somos bem nossos.” (PEIXOTO, 1947, v. XI, p. 5).

Outro aspecto que suscita discussão acerca do aspecto humano nas narrativas regionalistas de Peixoto é a figura do mestiço. No Brasil dos primeiros anos do século XX, vigorava a ideia de que a nação era um verdadeiro “laboratório racial”, onde a cada dia a figura de uma “sub-raça” prevalecia no cenário social.

Desde a Faculdade de Medicina, em Salvador, Peixoto foi integrante da chamada “Escola de Nina Rodrigues”, cujos estudos vinculados ao desenvolvimento da Medicina Legal, dialogavam a prática médica com a Antropologia. A finalidade desse grupo de peritos baianos, assim como o da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, vislumbrava “curar” um país considerado enfermo por causa da miscigenação.

Só para exemplificar a força desse discurso, Lilia Moritz Schwarcz, em O Espetáculo das Raças, afirma que a escola de formação a qual Afrânio Peixoto pertencia acreditava que a suscetibilidade do brasileiro em contrair enfermidades como a febre amarela ou a malária, revelava:

[...] o longo caminho que nos distanciava da ‘perfectibilidade’, ou mesmo a ‘fraqueza biológica’ que imperava no país. Na Gazeta [Médica], a associação entre doença e mestiçagem era demonstrada não só por meio de relatos médicos e estatísticos, como também por imagens e fotos, que expunham, de forma muitas vezes cruel, a grande incidência de moléstias contagiosas na população mestiça brasileira. (SCHWARCZ, 2017, p. 274).

Por ocasião da atividade dessas escolas médicas, os debates não se limitavam apenas às questões de higienia e de combate às epidemias, mas era também uma forma de se combater delinquências. Dessa maneira, o “[...] o objeto privilegiado não é mais a doença ou o crime, mas o criminoso. [...]”. Várias eram as teses de Medicina Legal publicadas defendendo os problemas causados pela degeneração racial: casos de “[...] embriaguez, alienação, epilepsia, violência e amoralidade [...]” serviam de mote para demonstrar que o cruzamento racial era algo pernicioso, sobretudo ao apoiarem-se nos modelos darwinistas que pregavam as idéias de “[...] imperfeição da hereditariedade mista [...]” e do “[...] enfraquecimento da raça [...]” motivados pela miscigenação. (SCHWARCZ, 2017, p. 274, 277).

Sobre tal abordagem no contexto da prosa regionalista de Afrânio Peixoto, destaca-se, particularmente, o enredo de Fruta do Mato. Além de tratar do assunto da escravidão no país e apresentar a problemática do elemento mestiço na formação do povo brasileiro, a história se passa exatamente um ano após a Abolição da Escravatura (1888).

No romance, Vergílio de Aguiar obtém informações sobre os antigos proprietários da fazenda que pretende adquirir: o avô de Joaninha, a protagonista, havia sido um comerciante de escravos que enriqueceu a custo do tráfico negreiro; e que por causa de sua ganância e crueldade para com os cativos corria o boato de que a fazenda Corre-Costa havia se tornado mal-assombrada.

Nesse ambiente hostil, a narrativa destaca o personagem Onofre, filho de uma escrava e de um sobrinho do então falecido dono da propriedade, que após tornar-se adulto passou de feitor a administrador da herdade de Joaninha. Eis os seus atributos físicos: “[...] Era um homem forte, espadaúdo, desempenado, tostado de sol e de raça, mestiço claro, disfarçado, sobrecenho carregado sôbre olhos móveis que não fitavam de frente o interlocutor. [...]” (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 95).

Sendo Onofre um homem mestiço, fruto do cruzamento do negro com o branco, sua caracterização psicológica é vista como desajustada. Tal incongruência é justificada pelo seu contraditório percurso no enredo: pela sua ascendência branca, mesmo não pertencendo ao núcleo na senzala, foi privado de habitar na casa-grande; pela ascendência negra, era visto como um traidor pelos escravos e cruel para com estes, porquanto havia se tornado o feitor da fazenda.

A posição até então ocupada por Onofre na propriedade intriga Vergílio, pois este não entende por que um homem filho de mãe negra agiria de forma tão impiedosa para com os negros. Eis a conclusão do bacharel, quando descreve que:

Olhei para o Onofre, como surpreendido pela confidência involuntária. Como se explicava no executor da justiça, — bárbara, desumana, mas justiça de escravidão — essa revolta contra os juízes, de quem era mandatário ou justiceiro? E não era piedade das vítimas porque a pena era aplicada com escrúpulo e até com excesso... Depois de refletir um instante nessa antinomia, creio que lhe achei a razão. Onofre é mestiço, ser ambíguo, transitório, em que duas raças ainda se digladiam num homem, quase um híbrido: resulta que despreza o negro, que já não é, mas cuja inferioridade ainda o envergonha, e inveja o branco, que não chegou a ser, e de cuja superioridade se vinga, detraindo, rebaixando-o à própria condição... Daí odiar os dois. (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 106).

No entanto, a percepção do bacharel sobre a natureza conflituosa do feitor é ampliada pelo depoimento dele próprio, o qual revela que o motivo da revolta pela sua condição de mestiço se deu a partir do dia em que Joaninha o havia humilhado por não ser da raça branca. Assim, Onofre revela que:

Desde êste dia que senti um espinho no coração, que odiei a meu pai e a minha mãe, os quais tiveram culpa de eu não ser branco; que odiei a todos os negros porque eu ainda não era branco, a todos os brancos porque eu era ainda negro. ‘Eu era bom até aí; foi daí que fui ficando e que acabei mau, acabei no que sou. Foi desdaí!’ (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 280-281).

A reflexão de Vergílio é um entendimento do próprio Peixoto acerca da questão racial no Brasil. Não se sentindo pertencente a nenhuma das raças que o haviam originado, Onofre passar a odiar brancos e negros, inclusive a si próprio. Assim como em Fruta do Mato, a problemática da mistura de raças era encarada como uma situação perniciosa, mas que suscitava o mesmo embate dos homens mestiços contra o ambiente rústico do sertão. É o que pondera o bacharel ao afirmar que:

Lembraram-me os infinitos mestiços que andam por aí além, por êste Brasil, e cuja psicologia só pode ser esta: rancor mais ou menos declarado a tôdas as virtudes, méritos, talentos, instituições, costumes, dos brancos, ainda hoje em dia, como outrora, o votaram aos outros seus parentes os pretos, êsses bons, humildes, pacientes, serviçais, afetuosos, que, com o seu sangue, o seu braço e o seu coração, do mato grosso de nossa terra fizeram o Brasil colonial. (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 106).

Comparando as inferências de Vergílio ao pensamento das elites dominantes quanto ao processo de miscigenação racial ocorrida no Brasil (sobretudo, do ponto de vista científico), é oportuno considerar a afirmação de Peixoto (1938, p. 142) em Clima e Saúde, ao dizer que “[...] O mestiçamento psicológico é que é odioso”. Em outras palavras, para o escritor, a mestiçagem mais danosa não seria a da cor, mas a psíquica, sobretudo para aqueles que julgavam a presença do negro um fator benéfico para a formação da sociedade brasileira.

Nessa mesma obra, o romancista é enfático em afirmar que “[...] são brancos os que não se revelam escuros na alma [...] muito preto e mestiço conheci, e venero, porque tiveram e têm culta alma branca. [...]” (PEIXOTO, 1938, p. 141-142). A estes, o escritor não apenas os acusa de aborrecerem a raça branca quanto os classifica de verdadeiros “mestiços”, pois assim como Onofre, em Fruta do Mato, um traço recorrente da mestiçagem é o ódio a quem os engendrou.

Para Afrânio Peixoto, tal discussão era certamente inconveniente para alguém que defendia em seus livros o processo de colonização ibérica, a exemplo de Minha Terra e Minha Gente e Trovas Brasileiras. A saída encontrada era não apenas redimir o conquistador português das consequências maléficas que a escravidão havia causado, mas também absolver a sociedade colonial que deu vezo ao processo de mestiçagem. Neste quesito, o elemento mestiço era o maior obstáculo a ser vencido para a criação de uma identidade brasileira.

Em Clima e Saúde, o romancista já anunciava que os diferentes tipos humanos apresentam uma lenta marcha de evolução em vista de uma homogeneização, o que resultaria

então numa “[...] raça mudada pelo ambiente diverso...” (PEIXOTO, 1938, p. 44). Ora, se era preciso adaptar-se ou reagir às condições ambientais adversas para que tal homogeneização ocorresse, logo seria necessário que o Estado interferisse nesse processo, a fim de que se pudesse alcançar o fim esperado, que era formar uma nação branca.

De fato, como aponta Lilia Moritz Schwarcz (2017, p. 219), o contexto histórico brasileiro das primeiras décadas do século XX foi marcado pela influência do governo e das elites dominantes para “homogeneizar” a população, quando afirma que o discurso em voga até então era “[...] Higienizar o país e educar seu povo é assim que se corrige a natureza e se aperfeiçoa o homem”.

Tal posicionamento também não passa despercebido em Minha Terra e Minha Gente, obra na qual Peixoto (1916, p. 229-230) conclamava seus compatriotas a preservarem o legado europeu que os brasileiros receberam. A prova maior desse amor lusitano do escritor se traduz na sua afirmação de que seria necessário criar “Um Brasil próspero e eterno, que honre a cultura greco-latina, as tradições lusitanas, a sua própria história, das quaes deve ter legitimo orgulho [...]”.