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3 A BAHIA REGIONALISTA DE AFRÂNIO PEIXOTO: A TERRA, A

3.1 A Terra: a interferência da paisagem na vida humana

Na análise dos romances regionalistas de Afrânio Peixoto, os espaços rurais e idílicos ali descritos desempenham um papel de destaque, de maneira que os personagens apresentados em Maria Bonita, Fruta do Mato, Bugrinha e Sinhazinha são apenas parte integrante de um quadro paisagístico maior.

O que se percebe na ambientação de tais narrativas é a relação que se estabelece entre os personagens e a paisagem que lhes dá cor, onde o homem é referenciado como um agente capaz de driblar as oposições impostas pelo espaço geográfico, a exemplo da seca que obriga o homem a mudar de localidade, ou as enchentes que interferem no transporte fluvial que interligam propriedades produtoras de cacau. Nesse contexto, homens e mulheres ali caracterizados devem assumir uma posição de superioridade sobre o ambiente que não foi transformado pelo poder devastador da civilização.

Assim, diante da paisagem rústica e agressiva do sertão baiano, restaria ao homem que dela extrai a sua sobrevivência adaptar-se, a fim de suportar as intempéries e obstáculos impostos por fatores de clima, relevo, hidrografia e vegetação. Para o romancista, as condições geográficas de uma região acabariam por imprimir no indivíduo os caracteres que seriam necessários à sua manutenção.

Em Poeira da Estrada, mais especificamente em seu discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Peixoto (1947, v. X p. 364) afirmava que “[...] é a terra que faz os viventes, é a terra diversa que produz asiáticos e europeus. [...]”. Em tal ocasião, sua fala registrava um percurso histórico de vários pensadores clássicos (Hipócrates, Heródoto e Aristóteles) e contemporâneos (Buckle e Taine) que compartilhavam da ideia de que “[...] tudo é determinado pelo meio e suas derivações no espaço e no tempo, a raça e o momento. [...]” (PEIXOTO, 1947, v. X. 365). Posteriormente, em Clima e Saúde, o escritor retomaria o tema, explicando de maneira didática que o homem é, de fato, um produto do meio.

Em anuência ao pensamento de Peixoto, os personagens de seus romances enfrentam com destemor uma paisagem rude, de difícil acesso e locomoção (cujo meio de transporte mais utilizado são as canoas), na qual o relógio do clima, marcado por épocas de seca e de enchente, acaba por afetar a vida dos que retiram dali a sua sobrevivência. Várias páginas de seus escritos descrevem esse enfrentamento entre o homem e o entorno que o circunda, como se demonstra a seguir.

Maria Bonita é um romance que referenda os resultados da ação da natureza sobre o homem. Após o seu lançamento nas livrarias, o autor explicava os motivos que o levaram a escrever a trama da bela sertaneja, quando diz que:

Êste, que devia ser, para mim, apenas um livro de saudade, pela lembrança de um tempo que passou e rememoro à distância, será hoje, para muitos, de evocação, do que cessou de existir. No comêço de 1914 uma cheia diluviana desfigurou completamente a região do rio Pardo, afogando e destruindo prósperas fazendas de cacaueiros, para ainda, depois de passada a praga das águas, subsistir outra, de vasa e das aluviões, que soterraram, sem recurso, tanto sítio encantador, pela verdura e abundância. O Jacarandá quase já não existe. Na ruína geral do que o homem plantou e construiu, o próprio rio não achou mais o leito secular. Outro, bárbaro e inculto, o Pardo anda agora, a espaços, por alheias paragens, em busca de um perfil de equilíbrio. (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 345).

Em seu paratexto à narrativa, Peixoto afirma reconhecer a força da natureza que modificou a paisagem da zona rural baiana até então existente. A região do rio Pardo que ele havia conhecido na infância, depois da catástrofe de 1914, já não mais existia. Este infeliz episódio, como afirma o romancista, foi um dos motivos que o levaram a escrever Maria Bonita.

Com efeito, o livro apresenta trechos emblemáticos que salientam o influxo soberano da natureza sobre os personagens, como se observa logo em suas primeiras páginas. A família de Maria Bonita não conhecia a região do Jacarandá (onde se situa a fazenda Boa Vista, ambiente do romance), senão quando tiveram que fugir da seca que assolava a região da Chapada Diamantina, onde anteriormente residiam. É o que diz a narrativa, ao afirmar que:

[André e Isabel Gonçalves] Não eram da terra. Provinham das cabeceiras do rio Pardo, muito além do rio das Pedras, do sertão entre Bahia e Minas, lá para as bandas de Condeúba, e vieram muitos anos atrás, com um filho crescido [Lucas] e uma filha ao colo [Maria], acossados pela sêca, que periòdicamente dizima aquelas zonas. Desciam assim, como êles, de tempos em tempos, retirantes para o litoral, à procura das terras baixas, aquém do Angelim, nas aluviões fartas de Canavieiras. [...] (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 33-34).

Estabelecendo-se na zona rural de Canavieiras, os pais da protagonista se tornaram agregados da propriedade do coronel Joaquim Pedro Moreira: “Foi assim, numa destas crises, que André Gonçalves, o tenente André Gonçalves, como gostava que lhe chamassem, e sua família, vieram ter à Boa Vista. [...]” (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 35-36).

Era essa a oscilação da maioria das gentes do sertão. Sem forças para lutar contra as intempéries que se lhes opunham, restavam a estes se resignarem à escassez de alimentos ou buscarem um novo local para viver. Nesses momentos, a natureza descrita na narrativa de Peixoto aparece como um ser grandioso, enquanto os personagens são vistos como engrenagens minúsculas da máquina geoambiental, vítimas da ação destruidora dos elementos do ambiente. Abaixo, o romance aponta que:

[...] O que a natureza fizera e ia fazendo, tão pequena fôra a colaboração do homem, que a impressão seria apenas sensível para os que vivessem muito e tiveram o dom de comparar, através de longas distâncias e de épocas espaçadas. Era o rio Pardo, o vestígio de suas cheias, as mostras de sua estiagem, um desbarrancamento aqui no cotovelo de uma volta, uma compensação a jusante, em procura de um perfil de equilíbrio, entre as aluviões de hoje, à custa das aluviões de outrora, as margens achegadas à mata próxima [...] (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 193-194).

Em Fruta do Mato as descrições de alguns episódios se assimilam aos de Maria Bonita: quando Vergílio de Aguiar vai até a fazenda Cajazeiras com a intenção de conhecer a herdade de Joaninha (a fazenda Corre-Costa), o bacharel em Direito só não pode visitar imediatamente a propriedade, por causa de uma inesperada enchente no rio da Salsa. É o que diz o trecho a seguir, quando descreve que:

[Américo] Sabia ao que vinha e estava pronto a ir mostrar-me o Chichio, na qual havia parte, herança da mulher [Joaninha]. Chegava eu [Vergílio] porém em mau momento, porque o rio enchera, havia também chovido nas cabeceiras do córrego que atravessava a fazenda do Corre-Costa, alargando grandes trechos de cacaueiros novos, as melhores terras da roça. Seria, porém, por pouco, e uns dias a mais não fariam mal ao negócio. Até lá, estava eu em casa, e aproveitaria a pausa forçada conversando coisas velhas e vendo novidades, que deviam ser para mim o amanho e a economia de uma exploração de cacaueiros. [...] (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 46).

Tal impedimento para se visitar a propriedade que Vergílio almejava adquirir se refletia na impressão de que o homem sertanejo era ainda rudimentar no uso de técnicas que possibilitassem a superação das intempéries naturais. Em Minha Terra e Minha Gente, Afrânio Peixoto considerava que era por causa de sua gente “apática” que o meio agreste ainda não havia sido dominado, ao dizer que:

[...] Quando [o sertão] for habitado, e a competência estimular o trabalho, para satisfazer as necessidades da vida, e um regimen apropriado facilitar a vida nova, estes brasileiros serão, na própria terra, o que são na Amazonia, que elles conquistaram para a civilização, como os brancos e delicados europeus não seriam capazes de fazer.

As condições de clima não impedem, nem o trabalho, nem a vida do homem. [...] (PEIXOTO, 1916, p. 211).

Conforme a citação acima, no contexto em que viveu o romancista, vigorava a ideia de que a intenção da civilização era imprimir um espírito de “urbanidade” no meio sertanejo, porquanto a terra só poderia ser “domesticada” através do povoamento. Tais ideias que influenciaram o meio intelectual brasileiro nos primeiros anos do século XX, sobretudo a partir dos escritos de Euclides da Cunha, consideravam que esta era discrepância essencial entre a cidade (litoral) e o sertão (interior).

Em Bugrinha, seu terceiro romance regionalista, Afrânio Peixoto exemplifica outro modelo de como a influência do meio ambiente impedia o homem sertanejo de desenvolver-se, desta vez na exploração de diamantes na zona rural de Lençóis, que constituía parte da Chapada Diamantina.

Durante um passeio do casal Bugrinha e Jorge pelas adjacências do sítio São José, a protagonista, diante dos escombros da casa em que viveu na infância, relembra a situação de abastança na qual vivia anteriormente com o pai, Manuel Alves, e sua falecida mãe, até que com a escassez da produção diamantífera, a família empobreceu. Na cena abaixo, ela aponta os escombros ao namorado dizendo que:

[...] Tudo isto que você vê, reduzido a pissarra, escavado de buracos, e aqui e ali cheio de terra nova, onde brotam plantas rasteiras, tudo isto era nossa casa. Meu pai era remediado, rico se diz aqui, com a paixão de ‘pedrista’, comprando e vendendo diamantes, principalmente nas catas felizes, achando formosas pedras. Tínhamos estado, escravos, móveis de luxo, cavalos de sela, vacas de leite, vestidos de sêda, que foram minguando, à medida que a terra ingrata foi ficando escassa e os novos garimpos davam menos que os grandes dispêndios em fazê-los. [...] (PEIXOTO, 1947, v. IV, p. 211).

Incapaz de administrar a natureza ao seu redor, o que causou consequentemente o esgotamento de seus recursos naturais, a narrativa afirma que o pai de Bugrinha veio à falência de sua empresa por causa do esgotamento da matéria-prima (pedras preciosas) que lhe havia trazido fortuna.

Nesse contexto, a falta de compreensão do homem sertanejo para entender o desgaste da atividade mineradora era o que causava a sua desgraça, pois, de outra forma, o Brasil que se anunciava em Minha Terra e Minha Gente era bastante rico, quando o escritor descrevia que:

A natureza não foi parca com o Brasil. Com effeito os minerios abundam, alguns bem ricos: ferro em serranias, quase puro; prata e oiro em minas compensadoras; diamantes, carbonados e pedras raras, em jazidas preciosas; praias extensíssimas de areias monazíticas. [...]

As quedas d’ágoa, os saltos enormes dos rios que descem do planalto, são riquezas intactas até agora, forças vivas que amanhã bastarão sosinhas á indústria, quando transformadas em energia elétrica. Só Paulo Affonso ou as cataractas do Iguassú, nas Missões, darão para as maiores ambições industriaes. (PEIXOTO, 1916, p. 197- 198).

Não obstante, Afrânio Peixoto se deparava com certos questionamentos ideológicos, os quais eram típicos do período positivista em que viveu, porém relevantes para a construção de seu pensamento, pois, ao mesmo tempo em que pregava a necessidade de se levar a civilização ao mundo sertanejo, havia também o receio de que tal paisagem idílica pudesse ser maculada em nome do progresso.

Enquanto o romancista vislumbrava que o meio agreste poderia se tornar um ambiente civilizado, ele sabia que o sertão era o lugar onde se levava um estilo de vida autêntico, não moldado aos costumes europeus de sua época. Tal pensamento é muito bem descrito em Sinhazinha, quando dona Emília, mãe da protagonista, lamenta que o marido e os

genros não compartilhem de sua opinião acerca das belezas naturais do meio rural, ao falar que eles:

[...] São sertanejos... sem consciência do sertão... Não amam a vida sertaneja, como aquêles que vieram de fora, da vida artificial das cidades... É o seu e o meu caso... Tudo que é para nós um encanto, porque é diverso e podemos comparar com vantagem, para êles é nada, porque não viram outra coisa, não têm têrmo de comparação. Meu pai, que foi educado na Côrte, dizia-me, por isso, que só os estrangeiros sabem amar o Brasil, a sua natureza, os seus defeitos e qualidades, diferentes dos de suas terras... O brasileiro é desamoroso porque não repara, não pode comparar. Por isso, êle sabia, e me fêz amar o sertão... (PEIXOTO, 1947, v. VII, p. 201-202).

A partir da declaração de dona Emília, sabe-se que apesar dela haver nascido no sertão, a instrução que recebeu de seu pai, homem da Corte, tornou-a uma mulher “civilizada”. Com propriedade, a fala da matrona torna-se a voz do próprio escritor, lamentando que o homem sertanejo tenha uma visão tão restrita da paisagem campesina que o cerca. Tal discurso ufanista de Afrânio Peixoto sobre a paisagem natural brasileira é igualmente percebido em Minha Terra e Minha Gente, quando ele afirma que “Um sábio inglês, Buckle, chegou a pensar que, numa pompa tamanha de natureza, não devia haver logar para o homem; outro mais prático, Agassiz, calculou que só o valle do Amazonas daria com que nutrir a humanidade inteira.”19 (PEIXOTO, 1916, p. 199).

Em outro trecho da mesma obra, as descrições sobre o clima e a vegetação eram momentos de peculiar embevecimento do escritor, quando declarava que:

A flora é prodiga e até desperdiçada. Num clima humido e quente, propício á vida, vicejam árvores frondosas, palmeiras esbeltas, lianas, cipós inextricaveis que apertam a intimidade num labyrintho de troncos, ramos, folhas, palmas e espinhos, emmaranhados, onde se encontram madeiras de lei, todas as especies uteis, e muitos germens damninhos.” (PEIXOTO, 1916, p. 198).

Em mais de uma passagem de Minha Terra e Minha Gente, se demonstra um Afrânio Peixoto sobretudo jactancioso pelas paisagens naturais do país em que nasceu, cujo desapreço manifesto pelos europeus não podiam sublevar o pitoresco clima tropical do Brasil. E era exatamente por causa dessas favoráveis condições climáticas que ele as descreve como “[...] mattas profundas e sombrias que, se occultam grandes reservas e provisões naturaes, possuem também miasmas e são difficeis de ser conhecidas e aproveitadas.” (PEIXOTO, 1916, p. 204-205).

Até então influenciado por ideias positivistas e deterministas, o escritor contestava qualquer sentimento antinacionalista, não aceitando desapreços ao espaço ambiental

19 Henry Thomas Buckle (1821-1862) e Jean Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873) foram defensores e

promotores do racismo científico do século XIX. Eram adeptos da poligenia: ideia de que as raças foram criadas separadamente e classificadas segundo as zonas climáticas nas quais se achavam.

brasileiro. Sendo médico, higienista e educador, Peixoto pregava a necessidade de o Estado intervir na vigilância sanitária por meio de iniciativas pedagógicas de higiene. Desse modo, entendia-se que a constituição étnica do homem sertanejo era resultado do próprio sertão, dando a ele situação favorável para enfrentar o clima do meio agreste.

Como resultado desse processo de adaptação, a comunidade rural parecia se resignar à sua vida enfadonha, como se descreve nas linhas de Maria Bonita, quando a narrativa aponta que:

[...] A gente viveria a sua vida calma, sem rumor, nem aspirações, feliz com as necessidades satisfeitas, e na ignorância de ambições a satisfazer, descuidada do mundo, da sociedade e de si mesmo. A fábula de uma civilização distante, da independência de um estado constituído, não os atingia ou interessava. Se pagavam impostos, eram indiretos, desfalcados no preço do cacau, aumentados no custo das mercadorias, e era só, embora muito... Nada lhes davam em troca, também nada reclamavam, por compensação. [...] (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 195).

Dessa maneira, entende-se que o cotidiano do homem sertanejo estava de fato sujeito às leis climáticas. Em outro trecho do romance, ilustra-se a tomada de medidas de higiene pelos moradores do sertão, haja vista a intenção em evitar doenças ou na prevenção contra possíveis calamidades do meio ambiente, como as constantes enchentes na região do rio Pardo. No caso, descreve-se que:

A casa soerguida e avarandada, suspensa nos esteios contra as inundações das cheias e para abrigo, nas épocas normais, dos tabuleiros onde é secado o cacau, tinha o aspecto e a simplicidade uniforme das que se distribuem pelas margens do rio. A sala, que de fora dava ingresso, de entrada, espera, visita, permanência, e até dormida, dos hóspedes ou de algum adventício ou agregado, possuía a mobília simples, da vida rústica: o relógio de parede, a mandolina sôbre a mesa, a espingarda num dos cantos, algumas cadeiras e bancos rudes para assento. (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 197-198).

Na passagem supracitada, a descrição do interior da casa rústica demonstrava, aparentemente, a hospitalidade do sertanejo em inclusive receber convidados para pernoite. Entretanto, a arquitetura da residência e das mobílias utilizadas é constituída por peças que ocupam grandes espaços, as quais são sempre arejadas e capazes de purificar o ar, e assim evitar possíveis doenças, como um autobenefício para a saúde do homem.

Em Clima e Saúde, comprova-se que o discurso médico de Peixoto se plasmava à escrita de seus romances, sobretudo ao considerar que o homem era sempre resultado do clima em que vivia. Em seu texto, ele argumenta que:

Esse ‘clima’ não é apenas ambiente, na terra, isto é, meio em que os sêres que nela existem se banham com satisfação ou dificuldade: é ação que determina reação, acomodamento, alterações, novas formas de sêres, dotados de qualidades que retratam êsses meios diversos. O clima é assim o artista da vida. Da variedade dêle, a onimodalidade dela... Euclides da Cunha deu-lhe, por isso, uma definição certa: ‘é a tradução fisiológica de uma condição geográfica’[...] (PEIXOTO, 1938, p. 15).

Tal elucubração sobre a influência do meio ambiente na vida da comunidade rural baiana é recorrente nas páginas de suas narrativas regionalistas, cuja matéria, revista pelo escritor, apresentava a tese de que o sertão criou um tipo específico de raça que se adaptou ao clima e à paisagem natural do Brasil.