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3 A BAHIA REGIONALISTA DE AFRÂNIO PEIXOTO: A TERRA, A

3.3 A Cultura: os costumes e as tradições do povo sertanejo

3.3.1 A influência ibérica

A presença do elemento lusitano é marcante nos romances regionalistas de Peixoto. Além do uso do idioma português, as referências feitas às tradições e aos costumes provenientes da Península Ibérica (Portugal e Espanha) são recorrentes nas narrativas do escritor.

Em Maria Bonita, logo às primeiras páginas da narrativa, Isabel, a mãe da protagonista, identifica que a filha está sendo vítima de “quebranto” por causa de sua beleza. Criada no meio rural, cercado de crendices populares, ela percebe que a menina “muitas vêzes volvera à casa lânguida, abatida, como uma florzinha murcha”. Para sanar tal problema, a mãe de Maria a levava constantemente para a rezadeira, quando o texto diz que:

[Isabel] Tinha então de procurar quem lha rezasse, com um ramo de vassourinha de Nossa Senhora, molhado na água, benta por três pingos de vela de igreja, para atalhar o quebranto. Por prevenção pusera-lhe figas de coral, colares de búzios furados, bentinhos, medalhas e rosários, que estiveram em pés dos santos. Mas há olhos bravos que vencem tudo, e de uma feita, por ocasião dos dentes, andara ‘ruinzinha mesmo’, desconfiada da vida. Durante muitos meses ficara impedida de sair ou de ver alguém de fora, para evitar malefício. (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 17- 18).

Segundo Luís da Câmara Cascudo (2012, p. 589), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, o conceito de quebranto já era registrado nos mais “[...] velhos dicionários portugueses [...]”, cujo efeito “[...] no Brasil implica sempre a influência exterior maléfica do feitiço, do mau-olhado, as forças contrárias. [...]”.

Nesse mesmo contexto de crendices populares, também se destaca a personagem dona Loló, de Fruta do Mato: quando Vergílio de Aguiar anuncia aos seus amigos que pretende comprar a fazenda Corre-Costa, considerada mal-assombrada, a velha senhora se posiciona radicalmente, anunciando que aquelas terras eram propriedade de Ramãozinho, isto é, o diabo. Abaixo, a narrativa descreve que:

Para romper o constrangimento, Dona Loló reatou a conversa interrompida:

— Então, tudo isto não são artes do ‘Capeta’?... Tôda aquela gente é excomungada... — Convenho, acudi eu na minha idéia, mas que tem a fazenda com isso?

— É dêles... Foi feita com suor e sangue de infelizes. Dinheiro mal ganhado. Ramãozinho quer a sua parte.

— Por isso, já êles dão pelo quarto do valor e não acham quem a queira...

— Pois têm aqui um destemido, exclamei então, avalentoado. Está me tentando ir ver a fazenda. Talvez seja até amanhã mesmo.

— Não faça isto, pelo amor de Deus!... interrompeu, aflita, Dona Loló. Não seja imprudente! (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 20-21).

O diabo, também chamado popularmente de “Ramãozinho”, é parte da contribuição ibérica incorporada por meio da religião Católica. Conforme explicita Câmara

Cascudo (2012, p. 264): “No Brasil é o diabo português [...] As estórias do diabo, tentações e logros são, na mais alta percentagem, vindos de Portugal, variantes e adaptações das façanhas ocorridas na Península Ibérica [...]”.

Em Sinhazinha, o sertanejo Tomé, homem nascido e criado na zona rural da Bahia, é também referenciado pela sua crença em superstições. Na cena abaixo, registra-se em sua fala uma alusão à “gesta” do boi e sua humanização, outro elemento de tradição lusitana incorporada à cultura sertaneja. Conforme o diálogo, o citado personagem fala que:

— Boi é gente, menino, é o que lhe digo. Pois você não vê como êles vêm, mansos, tristes, quando toca música? Há muita gente que não sabe escutar; todos os bois gostam e aproveitam. Pra que é o aboio? Já vi uma vaca meter o pescoço na janela, para ouvir Sinhàzinha tocar o realejo. Boi gosta e compreende. Êles não choram os companheiros mortos, o sangue derramado, quando farejam uma rês abatida? Sentem e compreendem... São gente, sim, melhor que gente. Só brigam por vadiação, ou por causa das fêmeas. Nós brigamos, por tudo, sem razão. Sem desfazer nos que me ouvem... há muito homem que não vale um boi, nem na coragem nem no juízo. Boi é mais que gente... (PEIXOTO, 1947, v. VII, p. 36-37).

Em Vaqueiros e Cantadores, Câmara Cascudo (2005, p. 118) explica que especialmente no Nordeste do Brasil formou-se uma literatura oral de origem portuguesa marcada pela “gesta” de vários animais, cujas composições poéticas dos cancioneiros encontraram lugar na zona rural às margens do Rio São Francisco durante o período colonial. O animal bovino como entidade glorificada fazia parte de uma fauna onde “[...] touros e bois, onças e bodes velozes contavam suas andanças, narrando as carreiras e os furtos cometidos [...]”.

Em consonância às tradições populares de origem ibérica, também são citados nos romances regionalistas de Peixoto alguns exemplos de eventos religiosos e devoções a santos católicos. Em Maria Bonita, por exemplo, aparecem os festejos de Nossa Senhora da Conceição; em Fruta do Mato, a devoção a Santa Rita dos Impossíveis e a devoção a Santo Antônio e seu responso; em Bugrinha, a festa do Divino Espírito Santo; e em Sinhazinha, a noite de São João e a devoção a Santa Rita de Cássia.

Os festejos em homenagem a Nossa Senhora da Conceição20, um rito católico e de

tradição portuguesa, está registrado em Maria Bonita. É no contexto desses festejos que ocorrerá o fatal desfecho do romance, na disputa entre os rivais Luís e João pelo lenço que havia sido bordado por Maria como prenda em favor da santa. Sobre tal evento, a narrativa diz que:

Terminava o ofício e o sino badalou em repique alegre. Subiram ao ar girândolas de foguetes. Celebravam-se as novenas da Conceição, e os mordomos da noite, um homem e uma senhora do lugar, ou das imediações, escolhidos no ano anterior,

proviam com luminárias, fogueiras e bombas a alegria ruidosa das celebrações religiosas. A multidão, depois de beijar o altar, saía, empuxando-se, para fora, pelo largo portal da frente. [...] (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 304).

Consta um registro de devoção a Santa Rita dos Impossíveis no enredo de Fruta do Mato: Joaninha, a protagonista, não deseja que Vergílio se dirija a fazenda Corre-Costa por conta das supostas assombrações que assolavam aquela propriedade. Em tom de súplica, ela fala de sua devoção à santa ao falar que:

— Tive esta noite uns sonhos horrorosos. Vi o senhor morto, baleado... Um horror! Acordei chorando...

— Fiquei perturbado, de comoção. Não soube o que responder. Ela abaixou a voz, ouvindo passos à distância, que subiam a escada.

— Enquanto o senhor estiver ausente, ficam duas velas bentas acesas no oratório, a Santa Rita dos Impossíveis...

Deu-me, dizendo isto, um olhar longo, lânguido e súplice...

Tive um estremecimento íntimo, como que o coração dilatado por um prazer secreto, de que eu mesmo não me queria dar conta. [...] (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 88).

De acordo com Câmara Cascudo (2012, p. 615), Santa Rita de Cássia viveu no período medieval italiano, cuja fama foi trazida ao Brasil pela via lusitana. Atualmente, como informa o estudioso, ela “[...] é padroeira de trinta paróquias e madrinha de cinco municípios no Brasil. [...]”. Ademais, sua popularidade se faz notória por trazer respostas ao povo, cujo rosário de invocação “[...] é divulgadíssimo por todo o Nordeste e Norte do Brasil. [...]”.

Em outra passagem da narrativa, é comentada através dos personagens a devoção a Santo Antônio e seu responso21. Tal evento é relatado pelo feitor Onofre, quando Joaninha,

ainda solteira, havia sido conivente com a tortura de uma escrava chamada Firmina, a qual era acusada de haver roubado as jóias de sua avó.

Durante os constantes suplícios da cativa, os mais consternados pelo seu sofrimento apelaram à sua devoção a Santo Antônio numa tentativa de localizar as peças valiosas, porquanto: “Em falta de confissão recorreram ao responso de Santo Antônio, que indicou sempre a pobrezinha. Novas surras eram ordenadas, e eu o executor. Só me consola pensar que de outro qualquer teria sofrido muito mais...” (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 287).

O responso de Santo Antônio22 consistia numa oração a fim de se achar coisas

perdidas. Segundo Câmara Cascudo (2012, p. 56), ele é “[...] Um dos santos de devoção mais popular no Brasil. [...]”, cujo [...] prestígio se mantém nos assuntos de encontrar casamento e deparar as coisas perdidas. [...]. Além disso, consta que “[...] Trouxeram os portugueses o culto antonino, que se divulgou e fixou através dos tempos. [...]”.

21 Fernando Sales (2001, p. 120-121) afirma que o próprio Afrânio Peixoto era um devoto de Santo Antônio. 22 A popularidade desse ritual antonino se faz notar em obras literárias de reconhecida tradição regionalista,

Em Bugrinha, ocorre a festa do Divino Espírito Santo. Em tal cena, a personagem Dona Estefânia convence o marido de que questões políticas locais não deveriam interferir num evento que fazia parte da tradição católica. Com a cessão do cônjuge, ela se mostra emocionada, permitindo que o cortejo adentre em sua casa. Assim, a narrativa descreve que:

Enquanto os serviçais iam às portas e janelas, a família corria efusivamente a grupar-se em tôrno de seu chefe [Coronel Castro], reconhecida e feliz a essa santa bondade que não resistira ao último apêlo, na hora suprema, contra os propósitos tomados da razão caprichosa... Abraçada ao espôso, Dona Estefânia não cessava de exclamar comovida:

— Bendito e louvado seja o Divino Espírito Santo! (PEIXOTO, 1947, v. IV, p. 313).

Como atesta Câmara Cascudo (2012, p. 266), tal festividade nasceu em Portugal (século XIV). Porém, há que se considerar que “[...] A festa do Divino é móvel. Quarenta dias depois do Domingo da Ressurreição é a quinta-feira da Ascensão do Senhor (Dia da Hora) e dez dias depois é Domingo de Pentecostes, dia do Divino Espírito Santo. [...]”.

A recepção do Divino na casa do coronel Castro era um indicativo de que tal evento religioso realmente se realizaria naquela localidade, o que causou comoção e alegria na comunidade sertaneja. Veja-se que uma vez:

Abertas as portas e janelas houve na multidão expectante uma imensa exclamação de júbilo, compreendendo a sua vitória. A folia parara em frente da casa. A bandeira do Divino entrava no lar que lhe haviam fechado e se não preparara para recebê-lo, mas que não pudera resistir à sua presença: não havia mais em Lençóis uma exceção... Glória ao Divino! Bendito e louvado seja o Divino Espírito Santo... Uma imensa aclamação de vozes, palmas, gritos, ovações, abalou frenético o povo, numa só exclamação de júbilo. As músicas atacaram com mais fôrça o dobrado... Com mais fôrça e mais efusão... Como lá dentro de casa, cá fora na rua a gente se abraçava, rindo e chorando de alegria. Alguns gesticulavam, como possessos; outros queriam dançar. Viva o Divino Espírito Santo! (PEIXOTO, 1947, v. IV, p. 313- 314).

Nas páginas de Sinhazinha, há uma das mais belas descrições da noite de São João. Tal evento ocorre logo às primeiras páginas da narrativa, com ricos detalhes da festa, com suas fogueiras e brincadeiras típicas do mês junino. No romance, o texto diz que:

SÃO os folguedos da noite de São João a festa mais popular do interior do Brasil. O nosso natal. As donas de casa e numerosa companhia de criados, serviçais, adventícios, entregam-se à confeição de mil e um acepipes e comezainas, iguarias e guloseimas, que devem ser ingeridas desde o jantar, principalmente noite adiante, até a madrugada, mesa posta e lauta, à discrição dos convidados. (PEIXOTO, 1947, v. VII, p. 25).

Segundo Câmara Cascudo (2012, p. 369), São João é um santo católico mais conhecido por ser o primo carnal de Jesus Cristo. “[...] O santo, segundo, a tradição, adormece durante o dia que lhe é dedicado tão ruidosamente pelo povo, através dos séculos e países. [...]”. Além disso, durante a noite de 24 de junho, diz-se que “[...] Se ele estiver acordado,

vendo o clarão das fogueiras acesas em sua honra, não resistirá ao desejo de descer do céu, para acompanhar a oblação, e o mundo acabará pelo fogo”.

Segundo a narrativa de Sinhazinha, o evento de São João corresponde ao Natal sertanejo, onde logo na sequência se faz uma descrição da fogueira e da farta alimentação típica que havia sido preparada para aquela ocasião. É o que aponta o texto, ao dizer que:

Na porta de entrada, no terreiro que a precede, arma-se a fogueira, uma árvore tirada do mato com a sua folhagem e ramaria replantada com uma carga de frutos estranhos: garrafas de vinho, espigas de milho verde, raízes de macacheira, queijos, caixas de charuto, invólucros com dinheiro, que devem ser prêmio dos mais ágeis, destros ou apressados, quando a fogueira ruir em brasa e o tronco, também combusto, fizer a árvore tombar por terra. (PEIXOTO, 1947, v. VII, p. 25).

Durante o evento, registram-se as brincadeiras que envolviam as gentes de todas as idades: das crianças aos mais velhos, todos estavam reunidos para celebrar uma das festas mais importantes do calendário sertanejo, conferindo autenticidade de que esta tradição havia sido incorporada ao Brasil através do colonizador europeu. Na ocasião, vê-se que:

Os fogos de artifício, foguetes e busca-pés, bombas e rouqueiras, cá fora, entre a arraia-miúda; lá dentro, os fogos de salão, craveiros, rodinhas, chuveiros, estrêlas, papel-relâmpago... constituem o encanto da meninada. As moças e os rapazes dançam, tocam, comem, cuidam de sorte, a previsão do futuro de cada uma, na constante indagação, discreta ou aparente, da questão que a tôdas preocupa, se casarão, se serão felizes, terão prole, ficarão para tias... No meio da noite um vozeirão, de quando em quando, enche o espaço, como um grito dominador:

— Acorda, João!

Como no Brasil, em Portugal, na Espanha... senão nas cidades, que mudam de caráter, ao menos no campo, perde-se na noite dos tempos êsse modo popular de festejo ao núncio do Salvador. [...] (PEIXOTO, 1947, v. VII, p. 26).

Em outra passagem de Sinhazinha, o personagem Juliano encontra em seu quarto uma efígie de devoção a Santa Rita de Cássia (cujo nome utilizado em Fruta do Mato em referência a mesma santa é “dos Impossíveis”), a mesma da fé de sua mãe, numa alusão ao milagre que só ela poderia realizar, a fim de que o mascate pudesse se casar com Clemência, a protagonista. Assim, na cena abaixo, descreve-se que ele:

Contentava-se, um tempo, com a psicologia fácil dessa metafísica. Contudo sorria a si mesmo, quando entre sua roupa branca achava ramos de alecrim, a perfumá-la, e um dia, de grande surprêsa, junto à imagem do Cristo, de cujas mãos escorriam raios de luz, outra efígie, de santa desta vez, um ‘registro’ como se diz no sertão, de Santa Rita de Cássia, com as suas flôres simbólicas, os seus ‘gladíolos’, ‘palmas-de-santa- rita’, o seu gládio ou espada com que tentara, e conseguira, graças ao amado espôso, Jesus, o impossível... Tinha na fronte a marca inefável e indelével dêsse casamento místico, um espinho da coroa sagrada que estivera na sua cabeça, um momento retirada da cabeça divina e que deixara marcada, para sempre, a fronte da espôsa. Grandes méritos devia ter Santa Rita, para êsse privilégio. Lembrava-se que a mãe, também devota da Santa, lhe dissera ser tamanho êsse prestígio que fôra a única criatura de Deus a penetrar no Inferno, para de lá retirar um pecador, que a invocara, arrependido. Daí a invocação à santa, para as coisas difíceis. Santa Rita dos Impossíveis... (PEIXOTO, 1947, v. VII, p. 152-153).

Além dos elementos de crendices e religiosidade presentes no ambiente sertanejo, destacam-se também outras manifestações populares de cunho artístico, as quais também foram incorporadas ao Brasil por meio do colonizador português. É o caso dos cantadores e trovadores que estão presentes nas narrativas de Maria Bonita e Fruta do Mato.

Do primeiro romance, descreve-se a manifestação de cantadores em desafio durante os festejos de Nossa Senhora da Conceição. Os personagens Luís e Gonzaga se deparam com esse tipo de disputa em meio à multidão que os assistia, quando a cena abaixo aponta que:

Lá perto da cancela, que punha têrmo ao Jacarandá, notaram um agrupamento maior, a invadir uma casa, pela porta e janela, nas quais espiavam os que não logravam entrar. Perguntaram o que era, depois de terem em vão indagado com a vista, levantando-se nas pontas dos pés, a espichar o pescoço curioso.

Era o velho Fabião [das Queimadas], provocado na cantiga pelo Manuel Tavares. Havia duas horas que disputavam, em desafio [...] Eram cantadores famosos, rapsodos como os possui o Brasil inteiro, desde antes de ser Brasil, pois cantar foi sempre de nossa índole. Terra farta de poetas, dos quais têm mais poesia não os que escrevem e publicam versos, dizia Gonzaga a informar. (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 313-314).

Em Vaqueiros e Cantadores, Câmara Cascudo (2005, p. 180) conceitua que o desafio “É o começo da luta que só termina quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia [...] sob uma avalanche de risos saudando-lhe a derrota...”. Ainda de acordo com seu apontamento, “Euclides da Cunha registrou ainda o desafio em quadras, modelo comum nos sertões da Bahia”. Tais modelos de quadras entoadas pelos disputantes é o da “[...] redondilha-maior de Portugal”.

Além dos cantadores Fabião das Queimadas e Manuel Tavares, os quais, na narrativa, participam dos festejos, também é mencionado o trovador Terêncio Martins da Silva e sua poesia cantada, quando Luís:

Lembrou então, como um símbolo dêsse desperdício, versos não escritos, do Terêncio [Martins da Silva], um funileiro de Canavieiras: contavam como flores do campo, abertas à tardinha, morriam pela manhã, sem o proveito dos beija-flores, que as sombras impediam de voar:

As boas-noites do prado Vão brevemente morrer... E o colibri namorado, Da rama oculta espreitando, Fica triste e lastimando

Tanto aroma a se perder! (PEIXOTO, 1947, v. II, p. 316-317).

Por sua vez, Fruta do Mato também exemplifica semelhante cantoria sertaneja, desta vez tendo a participação de uma mulher — a personagem Salvina — que desafia um dos clavinoteiros chefiados pelo bandido Rochael. Na ocasião, o líder do grupo grita que:

— Gente, disse alto o Rochael, desejando sem dúvida ser amável comigo, enquanto se espera a madrugada para arribar, um ‘côco’ ou um ‘choradinho’ tinha seu lugar... Para honrar a visita do ‘nosso doutor’ [Vergílio]... Anda, Zé Bernardino!

O designado era modesto:

— Eu só sei cantar para mim... Não chega para se divertir os outros. Depois de uma pequena pausa — Sinhá Salvina dizem que é boa cantadeira, por que não se pede a ela uma experimenta?

Pareceu boa a idéia. Rochael intercedeu junto ao Onofre, que foi pedir. A rapariga relutou, à insistência; talvez para nôvo empecilho, respondeu:

— Eu só canto em desafio... (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 138-139).

Zé Bernardino, um dos clavinoteiros, informa que Salvina “é boa cantadeira”, considerando que ela poderia ser convidada para lhes dar algum entretenimento. Entretanto, Rochael, o chefe do bando, não se dirige diretamente à rapariga, mas solicita a intervenção de Onofre, a fim de convencê-la. Obtido o consentimento dela, o clavinoteiro Tião aceita disputar a cantoria.

Estando os dois oponentes preparados, inicia-se o desafio de trovas, cuja prioridade é concedida a Salvina. Na cena seguinte, diz-se que:

Depois de palavras de mútua desculpa, que seria modéstia, ponteadas as violas, convidado um pelo outro contendor a começar, como as deferências exigiam, coube à rapariga ‘tirar a cantiga’. E, com boa voz, cantarolando apenas, veio a primeira trova:

Eu só canto em desafio Para ver se topo um ‘home’. Tenho topado porção, Quando começo, êle some...

Principiava bem a porfia. As risadas aplaudiram a petulância do intróito. Uma voz exclamou:

— Agüenta caboclo!... topaste gente pela frente. (PEIXOTO, 1947, v. III, p. 140).

Ademais, lendas e mitos de uma literatura oral portuguesa também estão presentes na vida dos personagens rurais criados por Afrânio Peixoto, os quais estão especialmente descritos em Bugrinha — as histórias sobre Carlos Magno e os Doze Pares de França e os contos de Trancoso.

Tais literaturas referendam, respectivamente, a lenda medieval sobre a tropa de guerreiros encarregada de proteger o rei franco Carlos Magno (742-814) e à obra Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, do português Gonçalo Fernandes Trancoso (1520-1596). Em Literatura Oral no Brasil, Câmara Cascudo (2006, p. 182-183) descreve que foi a partir do século XVI que tais “[...] estórias populares de Portugal são semeadas no Brasil [...]”, a exemplo de narrativas como a História da Imperatriz Porcina, Lazarilho de Tormes, História da Donzela Teodora, História da Princesa Malagona, História de João de Calais, do Marujo Vicente etc.

Do primeiro caso, destaca-se o trecho abaixo, quando Bugrinha e sua amiga Maria do Carmo estão esperando o regresso de Jorge a Lençóis; enquanto o aguardam, Mateus, que

as está acompanhando, se mostra animado com a possibilidade de poder ouvir novamente as contações de história da infância sobre o famoso rei franco e seus cavaleiros. Abaixo, o rapazote grita entusiasmado que:

— Então, vamos ter quem nos leia, de novo, entusiasmado, a história de Carlos Magno...

Sorriu Bugrinha, à reminiscência:

— Tanto que Mateus chorava sempre, à morte de Roldão!...

— Não brinque... pois, ainda hoje, quando me lembro, me vêm lágrimas aos olhos: ‘Não é êste Roldão, teu companheiro? Não é êste o capitão dos Cristãos? Não é êste