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2 O NEO-REALISMO LITERÁRIO PORTUGUÊS

2.2 A 1ª geração neo-realista

Uma geração literária pode ser definida como um grupo de escritores de idades aproximadas que participa de um mesmo contexto histórico e que, «defrontando-se com os mesmos problemas colectivos, compartilhando de análoga concepção do homem, da sociedade e do universo e adoptando normas e convenções estético-literárias afins, assume lugar de relevo numa literatura nacional mais ou menos na mesma data» (Silva, 1984: 427). Os membros de uma geração constituem-se em movimento literário quando existe «um programa estético-literário» (id.: 429), vinculando os que o defendem a subscrevê-lo e a pô-lo em prática.

Mário Sacramento apresentava «A geração de 40» (Sacramento, 1967: 51-61), de que o próprio fizera parte, do seguinte modo: «Pequenos-burgueses quase todos nascidos pela década de 10-20, herdáramos da geração ideológica anterior as decepções da Primeira República» (id.: 51). Empenhados que estavam, em consequência da situação política, internacional e nacional, «numa batalha ideológica e cultural» (id.: 56), adianta ainda:

[Actuavam] incluindo-se nos movimentos cívicos e reivindicativos, multiplicando-se nos jornais que subsistiam pela província, fundando o Sol Nascente ou prosseguindo O Diabo, promovendo palestras ou recitais nas agremiações, desencadeando movimentos estudantis e intelectuais (…), cri[ando] valores em quase todos os quadrantes da vida pública. (id., ibid.)

Esta intensa consciência e intervenção sociais seriam devidamente contextualizadas por Joaquim Namorado em 1979, quando já era possível clarificar dados sem enfrentar a perseguição política. Sem citar nomes, Namorado adiantava que os escritores neo-realistas «eram de formação marxista, alguns membros do Partido Comunista e outros seus simpatizantes, sofrendo uma influência ideológica das lutas que por toda a Europa se travavam na defesa da cultura contra a barbárie nazi-fascista» (Namorado, 1994: 284).

As observações acima transcritas aplicam-se na perfeição ao percurso de vida de Alves Redol, um dos autores a tratar. Não é de estranhar que isso aconteça, pois, como Namorado escreveu em 1969, «é impossível falar do escritor sem falar do movimento e falar

do movimento sem falar do escritor» (Namorado, 1994: 228). Assim, António Alves Redol (n. 1911 – m. 1969), que era oriundo de uma família da «burguesia comercial de Vila Franca de Xira» (Torres, 1979: 12), colaborou nos semanários locais Vida Ribatejana e Mensageiro do

Ribatejo, a partir de, respectivamente, 1927 e 1932 (Silva, 1990: 49). Depois do regresso de

África (onde viveu entre 1928 e 1931), aderiu ao PCP – em 1936, tinha «já ligações orgânicas com o Partido Comunista» (Madeira, 1996: 119). Foram várias as actividades cívicas a que Redol se dedicou: deu aulas num sindicato operário (Salema, 1980: 25), promoveu palestras, industriou na leitura, teórica e literária, os jovens que com ele se relacionavam – casos de Garcez da Silva ou de Arquimedes da Silva Santos86. A propósito

das leituras feitas, recorde-se que o escritor tinha a «paixão da leitura autodidáctica» (id.: 27), e que ela se pautava pela diversidade: a par de textos literários lia os de cariz marxista ou, e entre outros, textos de Freud – Redol chegou a proferir uma conferência sobre o livro deste psicanalista Totem e tabu (Silva, 1990: 139)87. De entre as leituras teóricas do âmbito

marxista, a do volume A arte e a vida social, de Plekhanov, espelhar-se-ia na conferência «Arte», que Redol proferiu em 17 de Junho de 1936, no Serão de Arte organizado pelo Grémio Artístico Vilafranquense (Silva, 1990: 79-80). Nos conceitos-chave bebidos em Plekhanov e expostos naquele texto, destaquem-se os seguintes:

A arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social (…).

Todos os assuntos devem servir em proveito do homem, se não querem ser uma vã e ociosa ocupação: a riqueza existe para que toda a humanidade a goze; a ciência para guia dos homens; a arte deve servir também para algum proveito essencial e não deve ser, apenas, um prazer estéril. (ap. Silva, 1990: 84)

Alves Redol enunciava ainda outros princípios materialistas, como o de Bukharine, já atrás citado: «a arte é um meio de socialização dos sentimentos» (ap. Silva, 1990: 83).

86

Como os próprios esclarecem (Silva, 1990, e Santos, 2001). V. infra «Bibliografia teórica» (ponto 3.2).

87 Voltarei às leituras de Alves Redol, que parecem ter sido postas ao serviço de uma cuidadosa preparação das diferentes criações literárias legadas pelo autor, aquando do estudo da relação estabelecida entre «Redol e a literatura infantil» (Parte II, cap. 3, ponto 3.1).

Com a condenação de uma arte que não estivesse empenhada em representar os problemas do homem social, aquela conferência constituiu «um ponto de referência, de suma importância, para a história do neo-realismo socialista em Portugal» (Silva, 1990: 91) e deu o mote para a polémica com os presencistas. Em 1937, João Gaspar Simões, na estreante Revista de Portugal, respondia a Redol com o artigo «Discurso sobre a inutilidade da arte». Elementos afectos ao movimento emergente, como António Ramos de Almeida, surgiriam com críticas às obras e às posições dos presencistas, em particular às de José Régio, figura central da presença. A polémica persistiu nesse ano e nos seguintes.

Ao longo de 1937 e 1938, Políbio Gomes dos Santos, Afonso Ribeiro, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Fernando Namora, João José Cochofel e Carlos de Oliveira publicaram, dispersamente ou em volume, textos líricos e narrativos onde diligenciavam uma escrita mais aberta ao social. Em 1939, surgia, em edição de autor, Gaibéus. Neste romance de estreia de Alves Redol, narrava-se a luta e o sofrimento dos trabalhadores sazonais que, vindos das Beiras e do Alto Ribatejo, migravam para a região das lezírias para a colheita do arroz; com ele, o autor firmou-se como «o introdutor, na nossa literatura, daqueles homens e daqueles problemas que os literatos seus antecessores não tinham visto ou não tinham sabido ver ou não tinham simplesmente querido ver» (Dionísio, 1942: 131). Na epígrafe do livro lia-se: «Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem»88. Tal declaração seria esclarecida anos mais tarde por

Redol, no prefácio à 6ª edição do título: aqui, o autor afirmava ter pretendido anunciar naquela epígrafe a urgência de uma «aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura» (Redol, 1965: 29).

Em 1940, saíram novos textos de Fernando Namora e de João José Cochofel. Alves Redol publicou o volume de contos Nasci com passaporte de turista e Manuel da Fonseca, outro dos autores do corpus do presente estudo, estreou-se com o livro de poemas Rosa

dos ventos (note-se, nos dois títulos citados, a utilização de um topos que viria a ser

recorrente do neo-realismo: o da viagem associada à procura de um rumo).

Manuel da Fonseca (n. 1911 – m. 1993), embora menos activo politicamente que outros elementos do movimento, era já militante do PCP no primeiro lustro de 1940 (Madeira, 1996: 204). Nascido no Alentejo, em Santiago do Cacém, o escritor trouxe para os seus poemas, bem como para os contos e romances de que viria a ser autor, a quietude das planícies alentejanas, as «vilas provincianas em marasmo» (Rodrigues, 1999: 24), com o seu largo modorrento, onde se reúnem os habitantes. Em paralelo com este tratamento do espaço, o autor imbuiu a sua obra de uma «estética [que] se fundamenta no entendimento do jogo das forças dinâmicas do social e se orienta para a expressão de um humanismo concreto, actuante» (Ferreira, 1987). Apesar de se ter revelado fundamentalmente como prosador, o facto de ter começado pela poesia talvez explique que «tudo o que há no novelista preexistiu em embrião no poeta» (Sacramento, 1959: 233). Aliás, a «interpenetração do género lírico» (Gonçalves, 1995: 1271) verificar-se-á nos contos do autor, tanto nos incluídos nesse «maravilhoso fresco alentejano» (Torres, 1977: 93) que é o volume Aldeia Nova, surgido em 1942, como nos contos que, publicados dispersamente ao longo dessa década89, viriam a ser compilados em O fogo e as cinzas (1951). Em ambos os

livros, como na demais obra poética, o «impulso de retorno à infância» (Reis, 1983: 533) está presente; disso procurarei dar conta.

Ao contrário da presença (ou de outros movimentos literários antecessores), os neo-realistas não se haviam congregado em torno de uma revista. Por isso, quando, em 1941, a série Novo Cancioneiro é inaugurada colmata-se essa ausência:

(…) a publicação desta colectânea [sic] será tão importante que a emergência do Neo-Realismo, como nova corrente, e sobretudo como expressão de um grupo, ou de uma geração, ficará para sempre ligada aos dez volumes que constituem esta série poética publicada em Coimbra, de 1941 a 1944. (Torres, 1977: 83)

Na série são publicados títulos de Fernando Namora, Mário Dionísio, João José Cochofel, Joaquim Namorado, Álvaro Feijó, sendo o nº 6 da colecção Planície, de Manuel da Fonseca. Nesse ano de 1941 saem ainda Marés, o segundo romance de Alves Redol, e Esteiros, o romance de estreia de Soeiro Pereira Gomes – outro dos autores a tratar.

Esteiros foi considerado pela crítica neo-realista coetânea como o livro que mais se

aproximou «daquilo que se pretende quando se fala num romance neo-realista» (Dionísio, 1942: 38). O título, que viria a ser qualificado como a «obra-prima do neo-realismo português» (Sacramento, 1968: 38), teve larga adesão do público, o que contribuiu para que o seu autor se tornasse o «mais popular dos pioneiros do neo-realismo» (Lopes, 2000: 1033). Joaquim Soeiro Pereira Gomes (n. 1909 – m. 1949), originário do concelho de Baião, partira, em fins dos anos 30, para África, onde permaneceu um ano. Regressado ao país, após o casamento, fixou-se na vila de Alhandra. Em 1935 conheceu Redol. Como sucedera com este último, Pereira Gomes aderiu ao PCP; colaborou em publicações regionais e nacionais; impulsionou movimentos culturais entre a população operária; realizou conferências sobre cultura e desporto (Azevedo, 1950: 7ss.). Enfim, a sua actuação revelava-se como mais um exemplo dessa geração que intervinha em «vários quadrantes da vida pública» (Sacramento, 1967: 56). Em Maio de 1944, passou à clandestinidade90, em

consequência da denúncia do seu envolvimento na liderança das greves ocorridas, e na condição de funcionário do PCP91. Esse é, presumivelmente, o ano de escrita do romance

Engrenagem (publicado postumamente, em 1951). A maioria dos contos e crónicas

incluídos noutro título póstumo (Refúgio perdido, 1950), saíra entre 1939 e 1943, em O

Diabo, no República, na publicação regional O Castanheirense e na colectânea Contos e Poemas (1942), organizada por Carlos Alberto Lança e Francisco José Tenreiro, autores

situados na «franja exterior ao Partido Comunista» (Madeira, 1996: 199).

90 Quando, entre 12 de Maio e 5 de Agosto de 1944, Alves Redol é preso pela PVDE, a justificação dada no relatório (datado de 1 de Agosto de 1944) é a de «se conhecer ser da intimidade de Pereira Gomes, comunista, empregado da Fábrica de Cimentos Tejo e que andava fugido à acção da Polícia» (ap. Falcão, 2005: 115). 91

Soeiro Pereira Gomes viria ser membro suplente do Comité Central do PCP a partir de 1946 (Madeira, 1996: 161).

O ano de 1942 é o da publicação de três novos títulos da série Novo Cancioneiro, da autoria de Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha e Francisco José Tenreiro. Neste ano, para além do já referido volume de contos Aldeia Nova, de Manuel da Fonseca, surge o terceiro romance de Alves Redol (Avieiros).

A colecção Novos Prosadores, que aparece em 1943, propunha-se «ser, para a prosa, o que, para a poesia, era ainda (estava ainda a ser) o Novo Cancioneiro» (Torres, 1977: 95). O título inaugural, Fogo na noite escura, é de Fernando Namora; segue-se-lhe

Casa na Duna, de Carlos de Oliveira. Nesse ano, fora daquela colecção, Manuel da

Fonseca publica o romance Cerromaior, e Vergílio Ferreira estreia-se com O caminho fica

longe – volume no qual «há uma hesitação em relação ao neo-realismo que acaba por se

resolver no fim do romance, pela aceitação dessa corrente» (Godinho, 1996: 190).

O romance Fanga, de Alves Redol, surgiu igualmente em 1943. A partir daqui e até à sua morte, o autor publicaria, com uma regularidade notável, mais de duas dúzias de obras literárias, distribuídas por romances, contos, peças de teatro, literatura para crianças. Continuando a revelar-se como «um dos fiéis representantes do Movimento» (Pavão, 1959: 19), o escritor passou a cultivar «temas e formas narrativas que beneficiam já de uma maior desenvoltura, relativamente aos padrões neo-realistas dominantes na década de 40» (Reis, 1996: 404); como pormenoriza Celso Cruzeiro:

(…) se há obra que reflicta toda a trajectória do neo-realismo português, essa obra é a de Alves Redol (…). E toda ela, no aperfeiçoamento progressivo que caracterizou a sua caminhada de escritor, acompanha e reflecte a um tempo o desenvolvimento qualitativo do neo-realismo como querem uns, ou a transposição do primeiro para o segundo neo-realismo, como preferem outros. (Cruzeiro, 1970: 833-834)

Numa entrevista concedida em 1963, ao comentar o romance O cavalo espantado (1960), Redol afirmava peremptoriamente que na sua obra não tinha havido «qualquer viragem [ideológica]» (in Gil, 1963). Na sequência das novas condições socioculturais e, em particular, como resultado da capacidade de dialogar com tendências diferentes, o autor

reelaborou processos formais, integrando na obra estéticas alheias à matriz inicial do neo-realismo, as quais, como especificado pelo próprio, considerava «tão necessárias para o que quer[ia] exprimir no conjunto da obra, como [as usadas] em Gaibéus ou Barranco de

Cegos» (in Gil, 1963). Segundo Urbano Tavares Rodrigues, é também esse o caso de Histórias afluentes (1963), nas quais Redol aplica «técnicas próximas do novo romance»

(Rodrigues, 1999: 28). A trajectória do escritor foi, portanto, pautada por «um caminho de busca» (Cruzeiro, 1970: 834) no domínio de novos recursos técnicos e estilísticos.

Na produção de Redol, destaque-se ainda a existência quer de estudos de cariz etnográfico, designadamente Glória, uma aldeia do Ribatejo (1938) – uma monografia que descrevia «rituais específicos de uma comunidade, enquanto expressão de uma vontade de conhecer o povo in loco» (Viçoso, 2002: 9), quer de recolhas de poesia popular. Alicerçado numa ideologia marxista, Redol defendia que os intelectuais e os artistas deveriam aprender com o povo e ter junto dele «um papel crítico e despertador das consciências» (Falcão, 2005: 117), papel que frisa no prefácio a Cancioneiro do Ribatejo (1950):

(…) o convívio dessas camadas com o povo que as saberia instruir em muito daquilo que ele pode ensinar, recebendo delas o muito que tem ainda para aprender. Eis todo um programa de conduta para intelectuais e artistas – saber ensinar o povo e aprender com ele (Redol, 1950: 20).

Tal fascínio pelo povo justifica o trabalho de compilação de textos provenientes da literatura oral e tradicional, que o autor incluiu no citado Cancioneiro do Ribatejo e no Romanceiro

geral do povo português (cuja publicação, em fascículos, iniciada em1959, ficou concluída

em 1964). Assumindo-se como aprendiz atento do saber e experiência acumulados através das gerações e reivindicando a origem popular dos seus ancestrais, Redol ocupava-se da divulgação de tais textos e entrosava neles o percurso individual – razão pela qual chegou a denominar o Cancioneiro do Ribatejo como uma «autobiografia colectiva» (id.: 35).

Regressando ao panorama literário da década de 40 que vínhamos a seguir, anote-se que em 1944 sai o último número da série Novo Cancioneiro, uma obra póstuma de Políbio Gomes dos Santos (A Voz que Escuta). Na colecção Novos Prosadores surgem

os romances Onde tudo foi morrendo, de Vergílio Ferreira, e Alcateia, de Carlos de Oliveira92. Mário Braga estreia-se com o volume de contos Nevoeiro. Em 1945, Redol

publica, na Vértice, Maria Emília, o seu primeiro texto dramático (o segundo, Forja, seria publicado três anos mais tarde). No ano seguinte, saem os romances Porto Manso, de Redol, e Minas de São Francisco, de Fernando Namora; na colecção Novos Prosadores, surge Vagão «J», um novo romance de Vergílio Ferreira – outro dos escritores do corpus do presente estudo.

Vergílio Ferreira (n. 1916 – m. 1996) foi, a partir de 1942, professor liceal de Latim, Grego e Português. Os três romances do autor acima enunciados (O caminho fica longe,

Onde tudo foi morrendo e Vagão «J») enquadram-se no movimento em análise e

inscrevem-se na primeira fase do percurso literário do escritor. António Rocha caracteriza o enquadramento do autor no neo-realismo deste modo:

(…) Vergílio Ferreira, no contexto do neo-realismo português, não surgiu nunca ligado à consciência ideológica, programática, de um novo humanismo literário, na qualidade de iniciador nem defensor. (…) Aproximava-se do esteticismo de Mário Dionísio ou de João José Cochofel, mas não demonstrou nem o entusiasmo combativo, nem a consciência crítica destes. (Rocha, 1999: 226)

Em diversas entrevistas, Vergílio Ferreira sempre afirmou que neste período fora neo-realista; esclareceria que, não obstante haver ainda alguma influência do presencismo em O caminho fica longe, neste título se verificara já «o anúncio do neo-realismo» (in Padrão, 1981: 216), e que os dois romances seguintes foram escritos de acordo com essa tendência. Com a publicação do seu quarto romance, Mudança (1949), dá-se «a passagem da atmosfera neo-realista, rarefeita pela obsessão ideológica, à aventura literária de cunho existencialista» (Lourenço, 1991: 10); o escritor não só se separa do neo-realismo, como se tornará um dos seus «mais convictos detractores» (Ferreira, 1992: 22). No prefácio à 2ª edição de Vagão «J» (1974), Vergílio Ferreira informava os leitores de que, depois de longos anos de hesitação, fora este o romance escolhido para representar a sua «chamada

fase neo-realista» (Ferreira, 1974: 33), por ser «o mais plausível ou o menos rejeitável» (id.: 15), e excluía O caminho fica longe e Onde tudo foi morrendo da obra.

No ano de 1947, forma-se o Grupo Surrealista de Lisboa. Nesse ano e no seguinte, vêm a lume publicações de escritores que não seguem nem as tendências deste Grupo, nem as dos neo-realistas (casos de Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Sebastião da Gama). Os títulos dos autores da 1ª geração neo-realista começam a rarear; nos anos 50 e 60, defende Urbano Tavares Rodrigues, «muitos dos escritores neo-realistas evoluem, em certa medida, transformam-se, através de uma valorização estética, recebendo técnicas que consideram como extractáveis, ou seja, aplicáveis aos seus romances, sem prejuízo da sua visão do mundo marxista» (Rodrigues, 1999: 27-28).

Se alguns críticos, como Carlos Reis, consideram que, ao longo da década de 40, em resposta a uma escrita que preconizava cumprir «as vinculações ideológicas do movimento e as intenções socioculturais que o inspiravam» (Reis, 1983: 637) houve, sobretudo nos primeiros romances neo-realistas, um «carácter pouco menos do que rudimentar (…), uma transparência conteudista» (id.: 638)93, outros, como Vítor Viçoso,

defendem que o neo-realismo «nunca se subordinou a um cânone estético rígido ou a um dirigismo exterior à prática de escrita» (Viçoso, 2002: 10), pelo que a comunhão ideológica não impediu «a proliferação de uma pluralidade estética legível quer no domínio da narrativa quer no domínio da poesia» (id., ibid.). Independentemente destas díspares apreciações, recorde-se que, em 1940, António Ramos de Almeida definira o neo-realismo como «o novo estado da arte que corresponde ao advento de uma nova consciência, de uma nova cultura, de uma nova vida» (ap. Reis, 1981: 109). Sabe-se hoje que tais intentos não se cumpriram, pois, ao longo das duas décadas seguintes, não só «a situação política portuguesa não evoluiu» (Reis, 1999: 1107) como a mensagem neo-realista se enunciou, «afinal, num meio cultural relativamente restrito, espartilhado pela censura e limitado por elevadas taxas de analfabetismo» (id., ibid.). Como Mário Sacramento observou, aquela geração «punha a

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Para Carlos Reis, essas características seriam debeladas passada esta década de 40, sendo o romance Uma

literatura ao serviço duma ética irreal, porque inexistente ainda» (Sacramento, 1967: 60); ora, explicita de forma delicada este crítico:

(…) a arte-necessária que o renovo do homem implica luta, em qualquer época, com a arte-possível – a existente e herdada. Mas, sendo a arte um produto ideo-sensível, o homem reconstruído pelas novas perspectivas históricas só passa a habitar a casa nova quando nela já instalou sensações e afectos. E isso nunca chegou a operar-se, entre nós, no terreno colectivo da praxis. (id., ibid.)