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1 A INFÂNCIA NA SOCIEDADE OCIDENTAL

1.1 Construção do sujeito criança

1.1.3 Delimitações etárias da infância

Em A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Philippe Ariès elucida-nos sobre a terminologia das idades usada nos tratados da Idade Média: infância e puerícia, adolescência e juventude, velhice e senilidade. A infância correspondia à idade dos 0 aos 7 anos, a puerícia à dos 7 aos 14 anos e a adolescência à dos 14 aos 21 anos (Ariès, 1988: 42). Já no decurso do século XVII, o entendimento era o de que «só se saía da infância quando se saía da dependência» (id.: 49). Alertando para que o desenvolvimento da instituição escolar se encontra ligado «a uma evolução paralela do sentimento das idades e da infância» (id.: 197), Ariès observa que, de maneira bem diversa, no mesmo século XVII, entre as classes sociais cujos filhos eram escolarizados, situava-se o termo da infância no início da escolarização (aos 5 ou 6 anos). Quando a idade escolar, «pelo menos a que dava entrada nas três classes de gramática, foi retardada para os 9-10 anos» (id.: 202), delimitava-se a infância nessa idade.

Daniel Teysseire encontrou na Encyclopédie (1751-1789) as seguintes definições de idades: «l’enfance, la puberté, l’adolescence, l’âge viril et la vieillesse» (Teysseire, 1982: 34). Relativamente à infância, aparecia esta acepção: «l’espace de temps que s’écoule depuis la naissance jusqu’a l’âge de raison, c’est-à-dire à l’âge de sept à huit ans» (id.: 24); o termo «puberté» era definido como «l’âge qui se termine à quatorze ans dans les hommes et dans les filles à douze» (id.: 34). É ainda Philippe Ariès quem nos informa que, no século XVIII, apesar da destrinça entre «enfance» e «puberté», a língua, quer no caso francês, quer no inglês, defrontava-se com ausência de palavras que distinguissem as crianças mais pequenas das maiores; só no século XIX o francês iria «buscar ao inglês a

palavra baby, que designava, nos séculos XVI e XVII, as crianças em idade escolar» (Ariès, 1988: 53). O aparecimento destes novos vocábulos no século XIX não foi todavia suficiente para superar «a ambiguidade entre infância e adolescência, por um lado, e essa categoria a que se chamava juventude» (id., ibid.).

Durante a primeira metade do século XX, os assinalados avanços da Pediatria, da Psicanálise, da Psicologia e da Pedagogia trariam variados contributos, se bem que não definitivos ou isentos de divergências, para uma delimitação etária da infância.

Baseadas no factor biológico, designadamente na emergência da puberdade, as delimitações etárias da infância propostas pela Medicina deveriam tender a poucas variações; contudo, até nesse campo a precaução é necessária. Vejamos um exemplo, referente às raparigas. Edward Shorter, após recolher «mais de uma centena de

topographies médicales e levantamentos especiais dos anos posteriores a 1750» (Shorter,

1995: 312), concluiu que, em meados do século XVIII, «a rapariga francesa ou alemã típica começava a ser menstruada por volta do 16 ou 17 anos» (id.: 96); um século depois, esta idade desceria para 15 anos, para «em 1950, estar nos 13,5 anos» (id.: 312). Nestas médias, avisa Shorter, «não há qualquer dúvida de que as jovens da classe média atingiam a puberdade mais cedo do que as jovens da classe baixa, resultado de uma dieta melhor» (id.: 350). A determinação da puberdade feminina está, portanto, interdependente do meio social e precisa de ser enquadrada num tempo e espaço históricos.

Nos anos 40 do século XX, no plano pediátrico, parece ter havido consenso quanto à delimitação final da infância por volta dos 12 anos. Sobretudo, houve uma enorme divulgação desse limite, tendo algumas publicações assumido uma difusão de proporções imprevisíveis. Foi o caso de Common sense book of baby and child care (1946), do pediatra norte-americano Benjamin Spock, que viria a atingir o impressionante número de trinta milhões de exemplares vendidos. Neste volume, desde logo editado em vinte línguas56,

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A tradução para português saiu no Brasil também em 1946 (Benjamin Spock. Meu filho, meu tesouro. Rio de Janeiro: Editora Record, 1946).

Spock balizava os limites da infância entre o nascimento e os 10 e os 12 anos, respectivamente para raparigas e rapazes.

Quanto à Psicanálise, Freud assentara que «a razão fundamental de todo o sistema psicológico reside numa exigência interna, numa força chamada líbido, cujos pontos de fixação ele segue nas diversas estruturações da actividade» (Dolle, 1979: 29). Definidas em função das fontes de prazer libidinal (a boca, a região anal e a genital), as fases da infância são, para a Psicanálise, as seguintes: a fase oral, correspondente às idades do nascimento aos 12/ 18 meses; a fase anal, daquela idade aos 3 anos; a fase fálica, dos 3 aos 6 anos; a fase de latência – período caracterizado pela acalmia das pulsões, dos 6 anos ao início da puberdade. Com o surgimento da puberdade (cuja idade não é precisada) ressurgiriam as pulsões fálicas, entrando o indivíduo num último estádio, de maturação (fase genital). Segundo Dolle, nas propostas freudianas e dos seus seguidores «não são tomadas em devida conta as aquisições da puberdade e da adolescência»: (id.: 109). Por meados do século XX, o conhecimento destas propostas corroboraria o termo da infância na entrada da puberdade, que, a acreditar nas análises pediátricas, rondaria os 12 anos.

No âmbito da Psicologia foram muitas as tentativas para o estabelecimento de fronteiras etárias, cruzando-as com os tipos de comportamento. Aliás, foram em tão grande número que no Congresso de Psicologia realizado em Genebra em 1955, cujo tema era «a homologação das etapas do desenvolvimento na criança e no adolescente» (Planchard, 1982: 241), houve um extraordinário número de propostas: «dezoito sistemas europeus de notação dos estádios e sessenta e um períodos entre 0 e 18 anos» (id., ibid.).

Logo em 1905, Claparède (médico, psicólogo e pedagogo, recorde-se) apontara três estádios de evolução do indivíduo: o de aquisição e experimentação, entre o nascimento e os 12 anos; o de organização e apreciação, dos 12 aos 18 anos; o de produção, na idade adulta. Centrado na marcha dos interesses, subdividiu o primeiro estádio da seguinte forma: interesses perceptivos, no primeiro ano de vida; interesses glóssicos, entre as idades de 1 e 3 anos; interesses gerais dos 3 aos 7 anos; interesses especiais e objectivos, entre os 7 e

os 12 anos (Planchard, 1982: 236). Claparède não adianta qualquer subdivisão etária para o segundo estádio; ele compreenderia um «período sentimental, interesses éticos e sociais, interesses especializados, interesses ligados ao factor sexo» (id.: 237). Em 1941, o médico e psicólogo francês Wallon, na obra Psicologia da criança e pedagogia experimental, reiteraria o quadro proposto por Claparède, tornando-o apenas «mais preciso» (id., ibid.).

Entre as décadas de 20 e de 70 do século XX, Jean Piaget procedeu ao estudo e à sistematização das idades e respectivas características psicológicas. Da obra de Piaget ressaltam os seguintes estádios de desenvolvimento cognitivo: o sensório-motor (do nascimento aos 2 anos), no qual são organizadas actividades em relação ao ambiente através da acção sensorial e motora; o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), caracterizado pelo desenvolvimento de um sistema de representações simbólicas, em particular a linguagem e o jogo; o das operações concretas (dos 7 aos 12 anos), no qual a criança é capaz de resolver logicamente problemas, centrados no aqui e no agora; o das operações formais (dos 12 aos 16 anos), período em que o sujeito já é capaz de pensar de modo abstracto e de lidar com situações hipotéticas (Dolle, 1979: 46-47). Piaget utiliza o termo criança sempre que se refere a idades até aos 12 anos – assim acontece, por exemplo, em Les Droits de

l’esprit (1948)57; num título mais tardio, em co-autoria com Bärbel Inhelder, La psycologie de

l’enfant (1966)58, continua a delimitar a infância nos 12 anos (Piaget e Inhelder, 1993: 93)59.

A escolarização obrigaria a Pedagogia a uma delimitação das idades da infância. O alargamento do tempo de escolaridade conduziu à proposta de demarcação das idades subsequentes. Nos sucessivos ajustes feitos, são de realçar os que a pedagoga italiana Maria Montessori expôs em diversas obras, entre 1909 e 1952. O plano de Montessori ficou com a seguinte configuração, amplamente divulgada: «do nascimento à idade de 7 anos

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Este ensaio, traduzido para português como «O direito à educação no mundo actual», foi incorporado em: Jean Piaget. Para onde vai a Educação? Lisboa: Livros Horizonte, 1978. Consultei esta edição portuguesa. A propósito da circunscrição da infância nos 12 anos, v., por exemplo, p. 71.

58 Utilizei a tradução portuguesa (A psicologia da criança. Porto: ASA, 1993). 59

Às idades dos 13 aos 15 anos denominam-nas os autores de pré-adolescência, reservando às dos 15 aos 18 anos a designação de adolescência (Piaget e Inhelder, 1993: 133).

(ensino pré-primário); dos 7 aos 12 anos (ensino primário); dos 12 aos 18 anos (ensino secundário); após os 18 anos (ensino universitário)» (Rocha, 1988: 84).

Fazendo uma aproximação ao caso português, num volume de 1945, de J. Dias Agudo60, encontramos esta classificação por idades: 1ª infância, do nascimento aos 3 anos;

2ª infância, dos 3 aos 7 anos; 3ª infância, dos 7 aos 12 anos. O autor especifica que o termo adolescência se refere às idades «dos 12 aos 16 ou 18 anos»61. Também na conferência

apresentada ao I Congresso Nacional de Protecção à Infância (organizado, em 1952, pela Sociedade Portuguesa de Pediatria), Delfim Santos, professor de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras de Lisboa, afirmava peremptoriamente: «Só aos 12 anos de idade [se verifica] o fim de um ciclo da evolução psico-fisiológica da criança» (in Fontes, 1952: 427).

Embora se saiba que as definições etárias, mesmo que prioritariamente baseadas em factores biológicos e psicológicos, «tell us little about the social meaning and significance that is constructed around it and to use age as a unidimensional category can be extremely misleading» (James e Prout, 1997: 236), do exposto parece ser possível concluir que, na sociedade ocidental, no período que interessa a este estudo, fruto das contribuições da Pediatria, da Psicanálise, da Psicologia, da Pedagogia, o vocábulo infância estaria adstrito às idades dos 0 aos 12 anos. No entanto, em 1959, quando foi proclamada a Declaração dos Direitos da Criança, o legislador não sentiu necessidade de delimitar uma idade final para este escalão etário; o conceito de infância envolvia tal padronização de atributos específicos, que enquanto grupo social assinalado por «elementos de homogeneidade» (Sarmento e Pinto, 1997: 23) a infância era reconhecida, mas não demarcado o seu termo62.

60

J. Dias Agudo. A criança e a educação – Como devem as democracias encarar o problema educativo. Lisboa: Gleba, 1945. Neste volume, o autor sintetiza os principais movimentos pedagógicos da primeira metade do século XX e relata experiências de aplicação do método de Decroly.

61

J. Dias Agudo, ibid., p. 145.

62 Em 1989, as diferentes circunscrições etárias, resultantes da diversidade de critérios (pedagógico, psicológico, sociológico, profissional), levaram a que a Convenção sobre os Direitos da Criança, proclamada pela ONU, privilegiando o critério jurídico, definisse o término da infância nos 18 anos. Emerge então um ciclo histórico que, em resultado do alongamento na fixação de idades e da progressiva descaracterização do objecto, sugere the

1.2 A condição da criança portuguesa, de finais dos anos 30 à década de 60