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2 O NEO-REALISMO LITERÁRIO PORTUGUÊS

2.1 Pressupostos ideológicos e estéticos do movimento

O movimento artístico conhecido por neo-realismo português teve por referente a «tendência mundial da arte revolucionária dos anos 30 [do século XX]» (Ferreira, 1992: 11) que, sob uma orientação ideológica essencialmente marxista, estava empenhada em agir sobre a consciência dos destinatários, no sentido de ganhar a adesão destes para as causas de transformação histórica que propugnava. Embora não se tratasse de uma versão nacional dessa tendência, o neo-realismo português, surgido no segundo lustro da década de 30, reivindicava, «pelo menos em parte, como sua directriz de pensamento, as teorias do socialismo científico» (Rodrigues, 1983: X). Visto que a situação nacional se caracterizava por uma forte repressão política, compreende-se que, entre nós, o neo-realismo tenha adquirido «uma importância e longevidade ímpares» (Júdice, 1997: 62), ao passo que nos outros países europeus «a arte comprometida entra[va] em declínio no final da Segunda Guerra Mundial» (id., ibid.).

Especifica Carlos Reis que se «toda a prática ideológica visa, de alguma forma, influenciar um destinatário que normalmente tem a configuração de um colectivo (…), assim se condicionando o trajecto histórico e o destino social dessa comunidade» (Reis, 1997: 1135), a literatura, dada a sua capacidade de inserção social, «parece estar especialmente vocacionada para exercer uma função de activação pragmática da ideologia» (id., ibid.). No panorama literário internacional, inserido na tendência da arte comprometida, registara-se o alastramento de obras que procuravam usar a escrita como vector de transformação social; em finais da década de 30, também em Portugal surgiu uma «plêiade de jovens [escritores] empenhados em colocar a arte ao serviço da revolução» (Silvestre, 1996: 662). Em 1938, Joaquim Namorado, num artigo de O Diabo intitulado «Do neo-realismo. Amando Fontes» – no qual, saliente-se, surgia pela primeira vez a expressão neo-realismo, ao proceder ao enquadramento da obra daquele autor brasileiro num âmbito mais geral, dava conta da

existência de «um vasto movimento neo-realista, que cresce em todos os continentes e se pode julgar iniciado em Gorki e na linha de certo realismo e naturalismo francês, embora se devam afirmar diferenças profundas» (Namorado, 1994: 60). Como pormenoriza Ana Paula Ferreira, «independentemente do teor utópico ou científico do seu socialismo, os escritores que se inscrevem na tradição da literatura comprometida atacam os males da sociedade, preconizando a reforma das suas instituições ou mesmo a sua total transformação» (Ferreira, 1992: 47); por isso, comentando o estatuto do neo-realismo literário português face à tradição, esta autora lembra que ele não pode ser explicável tendo por únicos referentes a literatura comprometida dos anos 30 ou as ideias socialistas, mas que deve ainda «ser perspectivado à luz do legado oitocentista» (id.: 284), posto que «se identifica com a tendência progressista que desde os inícios do romantismo faz da arte um instrumento de denúncia e de intervenção histórica» (id., ibid.).

Sendo impossível desligar os movimentos artísticos do seu contexto histórico particular, lembre-se que o neo-realismo português «teve a precedê-lo todo um complexo emaranhado de acontecimentos políticos e culturais que muito terão influenciado a sua eclosão e desenvolvimento» (Lisboa, 1986: 94). Como acabámos de ver (no cap. 1, ponto 1.2), no segundo lustro da década de 30, no plano internacional, ocorria a Guerra Civil de Espanha, com repercussões imediatas para a política interna do nosso país, e tinha início a Segunda Guerra Mundial, com forte impacte socioeconómico. Ao longo dos anos 40 finda aquela Guerra e tem início a Guerra Fria. No plano nacional, o movimento atravessou o período do Estado Novo, liderado por Salazar. Com vista a uma consolidação do regime, a política cultural do Estado Novo pautava-se por incentivar e apoiar manifestações estéticas que correspondessem aos seus propósitos ideológicos, e por submeter as restantes a uma apertada vigilância. Desde 1933 que as dotações do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) contemplavam o teatro, o cinema, o bailado, as artes plásticas, a edição de obras, a Direcção dos Serviços de Censura78. Em 1940, sob orientação de António Ferro – que então

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Jorge Ramos do Ó. Os anos de Ferro – O dispositivo cultural durante a “Política do Espírito” 1933-1949. Lisboa: Editorial Estampa, 1999; p. 56.

dirigia o SPN, foi organizada em Lisboa a Exposição do Mundo Português, no âmbito das comemorações do Duplo Centenário (da Formação da Nacionalidade e da Restauração); com ela, o regime via culminar a divulgação da sua política cultural, imposta a uma dimensão nacional e internacional (França, 1991: 39).

O neo-realismo português estendeu o seu raio de acção a diversas artes (Silvestre, 1996: 663), como o cinema – se bem que «Aniki Bobó, de Manuel de Oliveira, [seja] exemplo único de um nosso neo-realismo fílmico» (id., ibid.). No domínio das artes plásticas, o reconhecimento do neo-realismo foi mais tardio do que na literatura, e revelou-se bem mais fugaz. Somente em 1946, no âmbito das Exposições Gerais de Artes Plásticas organizadas pelo Movimento de Unidade Democrática, o neo-realismo surgiria como tendência principal, trazendo para a pintura o mundo do trabalho, rural e fabril (França, 1991: 53); três anos depois, a par de uma Exposição do pintor neo-realista Júlio Pomar, preponderavam já exposições dos artistas surrealistas (quer de o Grupo Surrealista, quer de Os Surrealistas). Aliás, no que respeita às artes visuais, José-Augusto França defende que é «magro o balanço da produção artística neo-realista e mais interessa vê-lo através do que o movimento provocou: isto é, na ruptura do formulário folclórico e cosmopolita de uma arte complexada, detida num novo academismo» (id.: 48). Essa «arte complexada» manifestava-se numa arquitectura onde imperava o formalismo monumentalista de inspiração germânica, numa escultura que apostava na estatuária pública, numa pintura cujos temas eram «a paisagem, o retrato, a natureza morta, e os costumes populares [que] eram pretexto de painéis decorativos, alargando ilustrações folclóricas que um novo gosto publicitário tornava mais brilhantes» (id.: 32). A partir de 1945, a estética «definida h[avia] já meia dúzia de anos na poesia e na literatura de ficção (A. Redol, M. Fonseca, R. Feijó), iria então penetrar no domínio das artes visuais» (id.: 45). Em termos estéticos, o neo-realismo português pode ser enquadrado na concepção mais ampla do Modernismo; saindo do domínio plástico, recorde-se que a prática artística de um músico como Fernando Lopes Graça também se inseria numa estética de modernidade.

Entretanto, em reacção à cultura oficial, ia-se expandindo o pensamento estético marxista. Ao longo da década de 30, «uma série de revistas e jornais preparam o terreno para que o movimento neo-realista assente arraiais entre nós nos anos 40» (Rocha, 1985: 452)79. Em algumas dessas publicações, como Altitude ou Síntese, «exprime-se, no

fundamental, um ideário teórico e um movimento político. Ou melhor: desenvolve-se uma lógica anti-fascista cuja ideologia é a valorização de uma cultura democrática, sobredeterminada filosoficamente pelo marxismo e politicamente pelo Partido Comunista Português» (Pita, 1994: 30). A par de jornais e de revistas, para a divulgação da estética marxista, um livro como A arte e a vida social de Plekhanov, publicado em Portugal em 1934, «tornar-se-ia leitura obrigatória» (Torres, 1977: 42) entre os neo-realistas; neste título de Plekhanov refutava-se a arte pela arte, defendendo-se a arte útil.

Face às diferenças, habitualmente apontadas pela crítica, quer de posições teóricas, quer do nível formal apresentado nas produções literárias do neo-realismo português, António Pedro Pita, convencido de que a raiz dessas diferenças assenta «em concepções diversas de marxismo que, em arte, diversamente se exprimem também» (Pita, 1990: 23), esclarece que se há uma «primazia de Plekhanov quanto às ideias gerais expressas, pertence, contudo, a Bukharine uma tese central: a arte é um meio de socialização dos

sentimentos» (id.: 21); avisa ainda que, no período de formação do movimento, o

apetrechamento ideológico foi feito «por intermédio de obras secundárias» (id., ibid.). É à luz de uma informação como esta que se pode inferir que eram tenteadas aproximações ao pensamento marxista em simultâneo com a laboração prática, e que afirmações que poderiam provocar alguma perplexidade se tornam compreensíveis – assim a feita pelo ensaísta Mário Sacramento, que asseverava que o neo-realismo não apareceu «com base numa estrutura ideológica já criada. Ao mesmo tempo que cria[va] literariamente, a geração cria[va] ideologicamente» (Sacramento, 1967: 59).

79 As revistas apontadas por Clara Rocha são as seguintes: Pensamento (1930), Sinal (1930), O Globo (1933),

Gleba (1934), O Diabo (1934), Agora (1935), Gládio (1935), Manifesto (1936), Cadernos da Juventude (1937), Sol Nascente (1937), Altitude (1939) e Síntese (1939) (Rocha, 1985: 452).

Centremo-nos, de seguida, nas demais reacções ideológicas e nas prováveis influências estéticas que contribuíram para o «jogo de tensões culturais, teóricas e políticas» (Pita, 1990: 13) do neo-realismo literário português80, o qual, como define António Pedro

Pita, não constituiu senão «a afloração literária» (id., ibid.) desse jogo.

Num ensaio datado de 1970 (que embora escrito a propósito de Alves Redol reenvia para considerações gerais sobre o movimento), Joaquim Namorado esclarece que, nos primeiros anos da década de 30, como corrente ideológica vingava a Seara Nova; o Integralismo Lusitano, que «nos anos 20 tivera certa projecção teorizante, perdera força e desmembrara-se» (Namorado, 1994: 233). No plano literário e artístico, à parte um ou outro caso isolado (de que Namorado dá os exemplos de Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro), «o modernismo triunfava: a Presença (…) arvorava a bandeira de uma literatura viva (…) e, como única verdade na arte, a predominância dos valores estéticos» (id., ibid.).

A primeira anotação a fazer sobre as observações de Joaquim Namorado é a de que muitos dos membros do movimento neo-realista não podiam pactuar com a ideologia da

Seara Nova. O grupo seareiro, se propunha a reforma da vida portuguesa «através da

aquisição geral de uma nova consciência ideológica» (Namorado, 1994: 233), defendia, simultaneamente, «a não participação na vida política partidária» (id., ibid.). Sucede que a generalidade dos elementos da geração literária emergente pertencia ao Partido Comunista Português – casos de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, João José Cochofel, Ramos de Almeida, Armando Bacelar ou Arquimedes da Silva Santos (Madeira, 1996: 99ss.). Num testemunho recente, este último escritor (que integrou o grupo neo-realista de Coimbra), referindo-se aos inícios dos anos 40, afirma o seguinte:

(…) após a reorganização do Partido Comunista, a questão político-cultural era já fundamental. Enquadrávamo-nos no seu Sector Intelectual de Coimbra, imbuídos do materialismo histórico de um incipiente marxismo, numa

80 Como assinala Carina Infante do Carmo, do ponto de vista teórico, este jogo de tensões conduziu a um «equilíbrio instável», que acabaria por se romper em finais da década de 40, mormente com «a polémica interna do neo-realismo, mais aguda entre 1949 e 1952» (Carina Infante do Carmo. A militância melancólica ou a figura

de autor em José Gomes Ferreira. Tese de doutoramento em Literatura e Cultura Portuguesas. Universidade do

perspectiva de cultura integral do indivíduo, como já preconizara Bento de Jesus Caraça numa conferência que nos fora um breviário. (Santos, 2001: 38)

Arquimedes da Silva Santos esclarece que, para além dele, de Namorado e de Cochofel, daquele Sector faziam ainda parte Carlos de Oliveira e José Ferreira Monte (id., ibid.); todos pretendiam «abalar as consciências para uma mais clara compreensão de todos os problemas humanos» (id.: 39), acreditando que «a utopia» (id., ibid.) era possível. A não filiação partidária estava, portanto, arredada das intenções de muitos dos membros desta geração.

Quanto às consequências do predomínio das realizações literárias da geração da

presença durante a década de 30 – aspecto também apontado no texto de Namorado,

lembre-se que tem sido reiterado que o enfrentamento feito a essa geração por parte dos jovens escritores contribuiu sobremaneira para a afirmação do neo-realismo. A revista

presença, fundada por José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, editada

em Coimbra entre 1927 e 1940, marcou, durante este período, a atmosfera literária nacional. À defesa, feita pelos presencistas, de «uma literatura viva contra todas as formas de estagnação e pelo primado do intemporal sobre o contingente, do individual sobre o colectivo, do psicológico sobre o social» (Mourão-Ferreira, 1977: 46), os neo-realistas contrapunham uma voz coral e solidária, numa «intensa (quase obsessiva) afirmação dos vectores axiológicos, culturais e histórico-sociais» (Reis, 1983: 638), rejeitando temáticas intimistas. Do cansaço da produção literária da presença e, muito especialmente, da discordância com o conceito de literatura por ela propugnado, resultou um forte desejo por parte dos neo-realistas de ruptura com aqueloutra geração, afirmando a necessidade de uma literatura diferente, aberta à «responsabilização político social» (Guimarães, 1981: 125). Na «Breve memória…» com que, em 1965, prefacia a 6ª edição de Gaibéus, Alves Redol, debruçando-se sobre os anos de 1938-39, esclareceria:

Como, porém, esses outros escritores [da presença] se vangloriavam da sua posição extrema de arte pela arte, desfigurando-a, a reacção operou-se também por outro excesso, fenómeno natural no jogo das contradições,

principalmente quando vem de jovens que se supõem, e ainda bem, capazes de renovar o mundo, o homem e a arte. (…)

E daí certo desprezo aparente por tudo o que representasse literatura sem raízes sociais bem vincadas, embora alguns dos seus poetas herdassem exactamente do presencismo a seiva formal para a sua poesia. (Redol, 1965: 33) A antinomia entre neo-realistas e presencistas revelou-se fecunda para os primeiros, pois a pretensão de romper com uma arte não enquadrada no social teve de ser explicada e argumentada, o que concorreu para aumentar a já de si «prolixa reflexão doutrinária neo-realista» (Reis, 1999: 1103).

Ressalve-se que a ruptura não foi tão radical quanto Redol o insinua. Em primeiro lugar, «no horizonte estético do neo-realismo cabia perfeitamente a dimensão de subjectividade que o discurso literário normalmente implica» (Reis, 1983: 76); por sua vez, os presencistas, se «tomavam a literatura como um mundo em si» (Lourenço, 1982: 300), não deixavam de trazer para a escrita preocupações humanistas – assim as que podem ser encontradas em textos de Adolfo Casais Monteiro ou de Alberto de Serpa; ao nível formal, se, por exemplo, estes dois autores praticavam o verso livre, Joaquim Namorado viria igualmente a fazê-lo (aliás, como se verifica no extracto supracitado, Alves Redol dá conta da existência de continuidades formais). Ambas as gerações foram responsáveis por revitalizar o romance, «o género ficcional que, após o apogeu oitocentista, entrara em declínio no primeiro quartel do século» (Júdice, 1997: 64). O desejo de regresso, pós-Orpheu, a uma comunicação com o público81, «numa época em que o poder censório

tentava a todo o custo suprimir a arte viva do horizonte nacional» (id., ibid.), foi sentido como imperioso nos dois movimentos – o que talvez explique marcas comuns de escrita (como seja o insistente recurso a notas explicativas e a epígrafes, para aclarar intentos autorais). Acresce que não só alguns neo-realistas (Joaquim Namorado, Fernando Namora, Mário Dionísio, João José Cochofel) tinham participado com textos na presença, como havia

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Como explica Fernando J. B. Martinho, o que o neo-realismo, «que em muitos aspectos não deixava de se integrar na tradição modernista, criticava no modernismo era precisamente o que considerava ser o seu carácter

elitista, o ele deixar que se cavasse um fosso intransponível entre a arte e o público» (Fernando J. B. Martinho. Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50. Lisboa: Colibri, 1996; p. 108).

escritores, portugueses e estrangeiros (casos de Afonso Duarte e de José Lins do Rego), que geravam consenso entre presencistas e neo-realistas.

Em 1945, Mário Dionísio definia o neo-realismo por contraponto à produção existente da seguinte forma: «o neo-realismo opõe, não (por enquanto) novas técnicas mas uma nova atitude perante os homens e a natureza. Quer dizer: a raiz do neo-realismo é inicialmente de pura natureza ideológica» (Dionísio, 1945). Acrescentando que o movimento estaria «aberto a todas as técnicas, atento a todas as experiências» (id., ibid.), procurando, dessa forma, a melhor maneira de concretizar aqueles propósitos, o crítico propalava:

(…) a tarefa imediata que se põe ao neo-realismo é a do reenquadramento do homem no seu plano social. É esta a razão de se irem buscar personagens, às vezes, a meios até há pouco considerados insusceptíveis de interesse artístico, por isso que as obras se revestem às vezes de aspecto panfletário e por isso que, também às vezes, os personagens parecem esquemáticos e retóricos a olhos armados de lentes diferentes. (id., ibid.)

Na expressão compósita neo-realismo com que o movimento se denominou, o termo

neo traduzia tanto uma reacção no plano ideológico quanto no estético. O prefixo distingue a

novidade, «pelo menos, relativiza a ruptura que pretende instaurar nas letras nacionais [do século XX]» (Ferreira, 1992: 65), remetendo ainda «para todo o modo particular de sentir, de conhecer e de representar o real característico de períodos históricos nos quais a arte é chamada a intervir no destino da sociedade» (id., ibid.) – como havia sucedido com o Realismo do século XIX. A expressão que vingou, apesar de não se ter constituído numa «designação pacífica» (Reis, 1999: 1100), entremostrava a tentativa de ajustar a estética ao referencial ideológico do marxismo. Alexandre Pinheiro Torres esclarece os pressupostos da denominação, explicando como nela se reagia a terminologias utilizadas anteriormente e se encobriam intenções ideológicas perseguidas pelo regime político:

Que pode o Neo-Realismo oferecer, como programa contestatário, a este Socialismo utópico do séc. XIX? A alternativa do Socialismo marxista-leninista que bem cedo aparece sob a designação eufemística de Novo Humanismo ou Neo-Humanismo. A própria designação Neo-Realismo surge como outro disfarce eufemístico para designar o Realismo Socialista, ou

melhor: todo aquele Realismo cujo ideário pressupunha como filosofia básica o materialismo dialéctico, pelo que se superava, por sua vez, o Realismo Burguês, o Naturalismo ou o Realismo-Naturalismo do séc. XIX e princípios do século XX, cujo positivismo, à Comte, também se procurava transcender. (Torres, 1977: 61)

Atente-se agora sobre as influências literárias sofridas pelo movimento. Em 31 de Dezembro de 1938, Namorado, no mencionado artigo «Do neo-realismo. Amando Fontes», procedia ao balanço do ano que findava avisando: «O acontecimento mais saliente da última temporada literária foi, sem dúvida, a descoberta do Brasil realizada através dos seus jovens romancistas» (Namorado, 1994: 59). Para além de Amando Fontes, nomeava Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Érico Veríssimo. Exceptuando o último autor, todos se enquadravam no «chamado Romance Nordestino ou Regionalismo Nordestino de 30, uma das vertentes literárias do Modernismo brasileiro» (Farias, 2001: 672), caracterizado por perspectivar problemas sociais. Ao longo dos anos seguintes, em diversos locais (por exemplo, em Sol Nascente ou em O Diabo), a crítica neo-realista debruçar-se-ia sobre as obras daqueles autores brasileiros, elogiando aspectos temáticos e ideológicos82.

Outros escritores do movimento viriam a dar conta das ascendências sofridas. Alves Redol declarou a influência de Jorge Amado e do norte-americano Michael Gold na sua obra (Redol, 1965: 34). Vergílio Ferreira corroborou que a sua geração fora «largamente influenciada pela literatura brasileira (…). A própria literatura estrangeira – nomeadamente americana, que pudesse interessar-[lhes], dificilmente a poder[iam] conhecer senão em traduções brasileiras» (in Padrão, 1981: 160). Mário Dionísio afirmaria a ascendência daqueles escritores, pormenorizando que os neo-realistas portugueses estavam «mais voltados para Amado ou para Lins do Rego, para Érico Veríssimo ou para Amando Fontes, menos talvez para Graciliano Ramos» (Dionísio, 1984: 12)83. Garcez da Silva, que integrou o

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Salvaguarde-se a posição de Mário Dionísio (um dos principais teóricos e, posteriormente, um dos problematizadores do neo-realismo), que, ainda em 1937, nos artigos que escreveu «A propósito de Jorge Amado» (em O Diabo, nºs 164, 165 e 167, de, respectivamente, 14 e 21 de Novembro e 5 de Dezembro), não deixava de criticar acerrimamente a obra deste autor brasileiro.

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No capítulo seguinte, no ponto 3.2, a propósito da influência dos romances sobre a infância e adolescência de alguns destes autores brasileiros, voltarei a este comentário de Mário Dionísio.

Grupo Neo-Realista de Vila Franca (liderado por Redol), informa acerca das leituras preferidas pelo Grupo: para além dos autores indicados, nomeia Gorki, García Lorca, Gladkov, Steinbeck, John dos Passos, Romain Rolland (Silva, 1990: 93 e 126); nos autores portugueses, aponta nomes da Geração de 70 (Eça de Queirós, Antero de Quental) e os de Fialho de Almeida, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro (id.: 107).

A produção crítica sobre o neo-realismo tem coincidido na inventariação de modelos literários. Urbano Tavares Rodrigues, por exemplo, refere os nomes de Gorki, Steinbeck, Gold e Amado (Rodrigues, 1981: 13). Carlos Reis, comentando a história da formação estrangeira do neo-realismo português, afirma que, «no tocante aos seus precursores literários, essa formação deve muito a uma tríade de realismos (usando o termo numa acepção muito genérica), designadamente o realismo socialista, o realismo americano e o realismo nordestino» (Reis, 2003: 54); ao dissertar sobre a recepção do romance nordestino, «de funda implicação e compromisso social» (id.: 55), avisa porém que tal não implica que tenha havido «uma projecção directa e linear» (id.: 54) no romance neo-realista português. Enfim, a divulgação de «obras capitais da literatura comprometida nos anos 30,