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A governamentalidade como governo da vida e dos corpos

3 BIOPODER E BIOPOLÍTICA

3.1 A politização da vida e a governamentalidade

3.1.2 A governamentalidade como governo da vida e dos corpos

No que tange à problemática da governamentalidade, aspecto importante dentro da biopolítica agambeniana, numa perspectiva de Michel Foucault, é mister pensar na sua proposta para fundamentar a biopolítica, a partir dos conceitos de economia, mercado, teologia, capitalismo, enfim. De acordo com as definições agambenianas acerca da dessa nova concepção de prática de governo, a qual pode ser denominada de biopolítica, é que a governamentalidade de fato trata-se de uma arte de governar. Partindo dessa acepção, é possível entender que as preocupações com a forma de governar têm na história diversos momentos distintos, mas que se afirmam numa única concepção do termo, ou seja, o de ‘saber governar’. E para Foucault, o que está em voga nesse processo de governo, é, precisamente, a

maneira de se saber governar18, de como levar a cabo um governo eficiente através de suas técnicas. Dessa maneira, como explicita Foucault:

Certamente, na Idade Média ou na Antiguidade Greco-romana, sempre existiram tratados que se apresentavam como conselhos ao príncipe quanto ao modo de se comportar, de exercer o poder, de ser aceito e respeitado pelos súditos; conselhos para amar e obedecer a Deus, introduzir na cidade dos homens a lei de Deus, etc. Mas, a partir do século XVI até o final do século XVIII, vê-se desenvolver uma série considerável de tratados que se apresentam não mais como conselhos aos príncipes, nem ainda como ciência da política, mas como arte de governar. De modo geral, o problema do governo aparece no século XVI com relação a questões bastante diferentes e sob múltiplos aspectos: problema do governo de si mesmo – reatualizado, por exemplo, pelo retorno ao estoicismo no século XVI; problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral católica e protestante; problema do governo das crianças, problemática central da pedagogia, que aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problema do governo dos Estados pelos príncipes. Como governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor governante possível, etc. (FOUCAULT, 1982, p. 163)

O que fica evidente nessa passagem é que a prática de governo estivera, em sua essência, voltada para as questões prementes a quem estava exercendo o poder. Nota-se, assim, a importância de como se comportar diante de um poder, de como se apresenta o poder na sua efetivação, ou mesmo como ser visto pelos seus súditos. Com isso, é inevitável a referência ao príncipe como aquele que detém o poder e, através deste, se perpetua na condição de soberano, tendo como base a própria arte de governar. Essa ideia perpassa toda a trajetória da política desde a Idade Média até os dias atuais. Assim, seguindo Foucault (1982, p. 164), a governamentalidade é entendida como “o problema de como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral do governo em geral.” Por outro lado, esta arte de governar também deve responder essencialmente à seguinte questão: como introduzir a economia − isto é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da família − ao nível da gestão de um Estado? (FOUCAULT, 1982, p. 165). Dessa forma, o governo passa a gerir a vida das próprias pessoas, criando, assim, um novo paradigma de governo, um governo que está voltado para a vida direta dos viventes. Assim, as práticas dos governos passam a atuar diretamente nos corpos, transformando a vida privada dos indivíduos em questões públicas geridas pelo próprio estado. Isto se caracteriza, em linhas gerais, na aplicação do biopoder enquanto forma

18Para Gadelha (2013), “a arte de governar o Estado proposta por Maquiavel caracteriza-se pelo imperativo de

manter, reforçar e proteger o principado, “entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e o território,

o principado objetivo, mas como relação do príncipe com o que ele possui, com o território que ele herdou ou adquiriu e com os súditos”. Daí o motivo de o príncipe dever estar permanentemente atento ao que se passa,

demarcando os perigos e desenvolvendo a habilidade de manipular astutamente as relações de forças.” Cf.

de domesticação, de controle da vida privada. A “vida nua”, assim, torna-se como afirmamos antes, a centralidade do governo nessa perspectiva de poder. O espaço doméstico se transforma no alvo inevitável para o paradigma que se inaugura, deixando evidente uma condição de vida alcançada pela biopolítica. Assim, para Foucault (2008a, p. 258), o que se encontra no campo das relações que envolvem o poder é a governamentalidade, isto é, a maneira como se conduz a conduta dos homens. Dessa relação, vem a possibilidade de conduzir a vida dos homens através das políticas voltadas para a gestão, ou seja, o governo do próprio corpo social.

Assim, é basicamente no curso que realizou entre os anos de 1977 e 1978 no Collège de France, intitulado, Segurança, Território e População (2008b), que Foucault se dedica a esta problemática no que tange à segurança. Para Agamben (2011, p.125), o exame foucaultiano se faz na intencionalidade de uma genealogia da governamentalidade, buscando seus motivos intrínsecos, que não fizeram cumprir sua realização. O que fica evidente, para Agamben (2011, p. 125), neste contexto da segurança abordado pelo filósofo francês, é a articulação dessas distintas realidades, a saber, o sistema legal, enquanto força do estado soberano, a quem se deve obedecer seguindo regras prontas diante do proibido e do permitido, em consequência, o estabelecimento das penas, os mecanismos disciplinares, os quais têm toda uma tecnologia disciplinar, ao mesmo tempo em que expõe, da mesma forma, as técnicas policiais, médicas, como instrumentos de dar forma ao corpo social dos indivíduos, e não menos importante, a problemática dos dispositivos de segurança, os quais estão inseridos no estado contemporâneo sobre a pretensão de se considerar o “governo dos homens” inserido no paradigma da segurança das populações. Assim, segue Agamben (2011, p. 125) “Foucault tem o cuidado de precisar que essas três modalidades não se sucedem cronologicamente nem se excluem reciprocamente, mas convivem, articulam-se entre si, de tal maneira, porém, que uma delas constitui a cada momento a tecnologia política dominante.” É por este viés que a governamentalidade se torna um objeto de efetivo na sua realização. Da mesma forma, elucida Azevedo:

Como prática contemporânea de governo, o sistema de segurança (portanto, em minha hipótese, também o estado de exceção tornado regra) não elimina os mecanismos jurídico-penais e biopolítico-disciplinares, pois, em sua pesquisa, Agamben concebe justamente que o poder soberano e o biopoder são inseparáveis, de modo que a vida nua (substância política) é desde sempre aquilo sobre o qual a soberania se exerce. (AZEVEDO, 2013, p. 115)

Destarte, a ideia, segundo Azevedo, é salientar que mesmo atuando em espaços distintos, o governo tende a se afirmar em práticas de segurança e, também, noutros mecanismos, como os jurídicos e disciplinares. Nesse processo, torna-se inevitável o

aparecimento da vida nua como interseção entre soberania e biopolítica. Assim, é sobre este aspecto da vida nua que a soberania exerce a sua força. Como segue Azevedo (2013, p. 115), “o poder soberano é sempre um poder sobre a vida, soberania e biopolítica se constituem essencialmente num só, então é possível pensar igualmente que se identificam conceitualmente o sistema de segurança e o momento histórico em que o estado de exceção se torna paradigmático.” Assim, na mesma direção em que aponta um cuidado com a segurança, inserem-se as práticas voltadas de poder na esfera da biopolítica. Esse discurso se justifica, dessa forma, através da inter-relação entre os conceitos que embasam a biopolítica, no sentido de promover uma política da segurança.

Dentro dessa genealogia, Foucault mira o problema das práticas de governo no pastorado cristão como forma de “governo das almas”. Nesta condição, Foucault identifica o poder pastoral não como uma política, uma pedagogia ou uma forma de convencer através do discurso. Esta consideração válida, para Foucault, traz à baila a discussão da governamentalidade. Ei-la:

[...] esse pastorado, esse poder pastoral não pode ser assimilado ou confundido com os procedimentos utilizados para submeter os homens a uma lei ou a um soberano. Tão pouco pode ser assimilado aos métodos empregados para formar as crianças, os adolescentes e os jovens. Tampouco pode ser assimilado às receitas que são utilizadas para convencer os homens, persuadi-los, arrastá-los mais ou menos contra a vontade deles, Em suma, o pastorado não coincide nem com uma política, nem com uma pedagogia, nem com uma retórica. É uma coisa inteiramente diferente. É uma arte de governar os homens, e é por aí, creio, que devemos procurar a origem, o ponto de formação, de cristalização, o ponto embrionário dessa governamentalidade cuja entrada na política assinala, em fins do século XVI, séculos XVII-XVIII, o limiar do Estado moderno. (FOUCAULT, 2008b, p. 219)

Neste viés, a governamentalidade atua sobre a vida dos homens, transformando-a em um corpo biopolítico. Assim, Foucault afirma ser o pastorado uma espécie de modelo de poder da Igreja até o séc. XVIII, e se torna uma referência para a política moderna. Dessa forma, Agamben (2011, p. 74) afirma que “Uma das características essenciais do pastorado é o fato de se referir tanto aos indivíduos quanto à totalidade, cuidar dos homens omnes et singulatim [todos e singularmente.]” E na mesma direção, a política moderna se faz a partir das categorias individualizante e totalizante ao mesmo tempo. Com isso, a política se apresenta como forma de abarcar tanto a vida particular do indivíduo quanto a vida coletiva, isto é, toda realidade que diz respeito aos homens está ao alcance da política enquanto tal. Por outro lado, o pastorado está voltado também para uma economia, isto é, às coisas e às riquezas, como na vida individual dos homens em seus ambientes familiares. Esta ideia do oikos como objeto da economia reafirma o caráter essencial da política governamental, no sentido de se afirmar tal paradigma biopolítico como uma racionalidade administrativa da

vida dos homens. Assim, para Agamben (2011, p. 75), “pastorado eclesiástico e governo político situam-se ambos no interior de um paradigma essencialmente econômico.”

Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes próximos anos é uma história da governamentalidade. E com esta palavra quero dizer três coisas: 1- o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 - a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo sobre todos os outros - soberania, disciplina, etc. − e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3 - resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 1982, p.171)

Dessa maneira, a governamentalidade busca abarcar a administrabilidade dos corpos dos homens através da própria política. Os aspectos essenciais, tais como controle, segurança e vigilância, estão evidenciados a partir de procedimentos técnicos embasados em conhecimentos empíricos com eventos voltados a elaboração de planos estatísticos. Esta concepção de poder se alastra na política como força motriz para a aplicação de normas de controle, com instrumentos técnicos que garantem a segurança, através de seus vários dispositivos. No entanto, há que se afirmar também que o governo, enquanto esfera de poder se tornou no âmbito político uma condição de poder muito presente, que por sua vez, é também propagador de força e de saberes. Diante disso, o que restou desse processo foi uma transformação desde a Idade Média de um Estado administrativo para uma realidade governamentalizada.

Diante disso, é possível entender diversos desdobramentos em relação ao paradigma da governamentalidade que se afirma a partir das práticas de gestão da vida dos homens. Neste caso, segundo Nascimento (2012, p.399) “O estado de exceção, no qual estão suspensos dispositivos legais e direitos, não é somente uma técnica de governo cada vez mais usada; ele é o paradigma da governamentalidade contemporânea.” Um dos aspectos fundamentais hodiernamente é a condição do estado de exceção como sendo um paradigma da exceção generalizada.