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O homo sacer e a sacralidade da vida

3 BIOPODER E BIOPOLÍTICA

3.1 A politização da vida e a governamentalidade

3.1.5 O homo sacer e a sacralidade da vida

O caminho percorrido até aqui, com os conceitos apresentados tais como, vida nua, formas de vida, a politização da vida, o problema da indistinção homem e não-homem, tudo isso faz referência ao conceito apresentando por Agamben, a saber, o homo sacer.30 Na sua obra seminal, Homo sacer: poder soberano e vida nua (2002b), Agamben faz um trajeto acerca da biopolítica, colocando no centro da sua discussão esta figura tão emblemática do direito arcaico romano. Mas tal conceito se funda no seu próprio projeto filosófico, até hoje articulado e desenvolvido pelo filósofo italiano. O que se nota é que, na obra de Giorgio Agamben, está sempre presente a predominância da problemática da biopolítica, levando em consideração a íntima relação que o homo sacer tem com a nossa contemporaneidade.

O termo homo sacer, aparece, segundo Agamben (2002a, p. 79), nos escritos de Festo31, em que há uma inscrição sacer mons, cujo significado permaneceu na memória de uma figura do direito arcaico onde a sacralidade se identifica com a vida humana. Com isso, a terminologia homo sacer, está carregada de contraditos e paradoxos em sua especificidade. Dessa maneira, o homo sacer está sujeito à efetividade da violência por ser desprovido de

30“A reflexão de Agamben também nos ajuda a identificar outras figuras contemporâneas do homo sacer e do

campo como o nómos secreto da biopolítica moderna, a saber, as cobaias humanas de experimentos médicos, tanto as que não souberam o que se passava com elas, quanto aquelas que estavam privadas das condições para dar seu consentimento em participar do experimento; o ser humano em coma profundo, mantido vivo por meios tecnológicos; os detidos em campos de refugiados; os suspeitos de vínculo com o terrorismo ou de imigração ilegal, detidos em aeroportos e mantidos incomunicáveis, incapazes de recorrer a qualquer autoridade de seu país ou do país que os detém; as periferias das grandes cidades, sobretudo naqueles casos em que o confronto entre duas forças soberanas, a polícia e o crime organizado, gera um duplo espaço de indistinção em que a autoridade (seja ela legal ou para-legal) se encontra puramente diante da vida nua que pode ser descartada sem mais.” Cf. Duarte, 2008, p.15.

31 Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; não é lícito sacrificá-lo, mas não será

condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que: “se alguém matar aquele que por

plebiscito é sacro, não será considerado homicida.” Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma

qualquer direito, sendo que tal instabilidade se deve em decorrência do ato do direito que o excluiu. Trata-se, enfim, de figura jurídico-política do direito arcaico romano, através da qual um indivíduo, ao ser apanhado sacer, era legalmente excluído da lei e da sua prática política. Agamben, dessa forma, para explicitar sua filosofia política, resgata tal figura, a qual se tornaria matável por quem quer que fosse, estando este, isento de qualquer punição quanto ao seu crime que jamais seria visto como um homicídio. Assim, o filósofo pretende mostrar o caráter da matabilidade dentro da insacrificabilidade do homo sacer. É nesta mesma definição que a vida nua se faz presente incorporando o próprio homo sacer em tal política. Explica Agamben (2002a, p. 79): “A contradição é ainda acentuada pela circunstância de que aquele que qualquer um podia matar impunemente não devia, porém, ser levado a morte nas

formas sancionadas pelo rito.” O que se percebe nessa característica do homo sacer, que sua

vida está à mercê de um paradoxo no qual ele mesmo é inserido na medida em que se torna matável, embora sem o caráter do sacrifício. O termo homo sacer, então, para Agamben, necessita de uma interpretação séria, pois se encontra numa zona que antecede a distinção entre sacro e profano, religioso e jurídico.

Agamben aborda a problemática da ambivalência do termo sacro levando em conta a problema do tabu colocando no centro do debate as considerações feitas por Robertson Smith, em sua obra, Lecture on the religion of the Semites. Diz Agamben (2002a, p. 83) “É neste livro, de fato, que a noção etnográfica de tabu deixa pela primeira vez o âmbito das culturas primitivas e penetra firmemente no interior da religião bíblica marcando irrevogavelmente com sua ambiguidade a experiência ocidental do sagrado” Com isso, diante da contradição que sustenta esta dimensão do sacro, para Agamben, o que vem à tona é a similaridade entre tabu e a própria condição do homo sacer. Uma vez que o próprio tabu se afirma em certas contradições, o homo sacer também assume esta condição de estar tanto dentro ou fora dessa sacralidade. Quanto à vida sacra32, termo observado para justificar a matabilidade dentro da impunidade, na qual a exclusão do sacrifício está para o conceito da sacratio, ou seja, da própria sacralidade, Agamben diz que (2002a, p. 90): “a sacratio configura uma dupla exceção, tanto do ius humanum quanto do ius divinum, tanto do âmbito religioso quanto do profano.” A vida sacra se afirma, enquanto forma de uma vida nua, a partir da qual, o fundamento político se coloca como regra.33 Esta indefinição guarda também relações

32 “(...) não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento político

originário” Cf. Agamben, 2002b, p. 95.

33 “Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é uma vida

intrínsecas com a definição de soberania no que diz respeito à exceção, que decorre, por sua vez, de uma dupla captura. Mais adiante, explica Agamben:

Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio. (AGAMBEN, 2002a, p. 90)

O sacer, desta forma, possui uma dimensão excludente do ponto de vista do soberano. A vida do homo sacer se encontra diante da determinação de sua morte, no momento em que esta não pode ser definida nem como sacrifício nem como homicídio. Ela mesma está nessa zona de indeterminação na qual surge a sua vida sacra. Assim, o homo sacer é surge a partir de uma situação de total exclusão, pois a morte é entendida de modo que não haja nenhum imputável, que ninguém seja culpado.34 O homo sacer é suspenso do culto na sua matabilidade, e oscila entre o sagrado e o profano. Eis, então, a figuração do homo sacer:

Um homem sagrado, ou seja, pertencente aos deuses, sobreviveu ao rito que o separou dos homens e continua levando uma existência aparentemente profana entre eles. No mundo profano, é inerente ao seu corpo um resíduo irredutível de sacralidade, que o subtrai ao comércio normal com seus semelhantes e o expõe à possibilidade da morte violenta, que o devolve aos deuses aos quais realmente pertence; considerando, porém, na esfera divina, ele não pode ser sacrificado e é excluído do culto, pois sua vida já é propriedade dos deuses e, mesmo assim, enquanto sobrevive, por assim dizer, a si mesma, ela a introduz um resto incongruente de profanidade no âmbito do sagrado. (AGAMBEN, 2007, p.69)

Aqui está o resultado da junção desses dois aspectos, o primeiro da impunidade e o segundo da exclusão do próprio sacrifício. O caso do homo sacer é de um ser simplesmente submetido à exclusão da condição humana sem ultrapassar os limites do que é divino. O que resta é a zona indefinível em que se encontra a sacerdade do homo sacer.35 Ora, o sacrifício é a continua exclusão da própria comunidade, o que sobra então é a vida sacra, a vida que pode ser matável, e insacrificável. E este resultado da relação entre sacro e profano, enquanto exclusão, é o espaço político da soberania. Nestes termos, diz Agamben (2002a, p. 91), “a soberania é a realidade que pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar sacrifício, e

34 Um caso típico da relação do homo sacer e o nosso tempo presente é o caso do brasileiro Jean Charles de

Menezes que foi morto no metrô de Londres em 2005, e até hoje não se viu nenhum culpado pela sua morte. Este e outros casos, como o Amarildo (2013), também assassinado pela polícia do Rio de Janeiro, configura-se como o paradigma estabelecido do homo sacer. Diante desses exemplos, e de outros tantos não mencionados aqui, expressam a atualidade e efetividade dessa condição de sarcedade, ou seja, de sacralidade, na política hodierna.

35“Dessa forma para Agamben, Acontece assim que, no cristianismo, com a entrada de Deus como vítima do

sacrifício [...] a máquina religiosa parece alcançar um ponto limítrofe ou uma zona de indecidibilidade, em que a esfera divina está sempre prestes a colapsar na esfera humana, e o homem já transpassa sempre para o divino.” Cf. Agamben, 2007, p. 70.

sacra, matável e insacrificável é a vida que foi capturada nesta realidade.” Ora, diante desse

fato, a vida nua que se afirma é a mera vida sobre a qual fala Benjamin. Destarte,

Sacra, isto é, matável e insacrificável é originariamente a vida no bando soberano, e a produção da vida nua, é, neste sentido, o préstimo original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono. (AGAMBEN, 2002a, p. 91)

Em última análise, a sacralidade se firma na dimensão da matabilidade dentro da insacrificabilidade do homo sacer. No entanto, o que o coloca nessa condição é a sua relação de vida no bando, ou seja, fora do ordenamento, expulso, e com isto a produção da sua vida nua. A sua vida se sujeita, assim, como expressão do abandono, à morte, sem que haja o seu sacrifício. Esta relação do abandono é, como diz Agamben, também ambígua, pois nada consegue se desvincular dela. Ora,

O bando é essencialmente o poder de remeter algo a si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto em bando é remetido à própria separação e, juntamente entregue à mercê de que o abandona, ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente capturado. (AGAMBEN, 2002a, p. 116)

Esta condição que se faz presente na exceção expõe o problema da zona de indistinção entre o que está incluído no ordenamento e o que está aquém de toda e qualquer estrutura da ordem estabelecida. O que está no bando, é aquele cuja esfera humana, social, já não lhe pertence, de modo que apenas se encontra fora e ao mesmo tempo capturado por este36. Mais ainda, o bando é o que atrai e repele, o que liga os dois pólos da exceção soberana, ou seja, vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano. Enfim, a estrutura de bando se deve perceber dentro das relações políticas hodiernas nas quais somos também inseridos, se apresenta em nosso tempo como o banimento para a vida sacra. Ora, diz Agamben que (2002a, p.117), se trata da regra, que através do soberano guia todas as condutas, regula toda a política e governa tanto a localização quanto a territorialização.

Dessa forma, enquanto a vida se coloca como fundamento da política moderna, como no caso da biopolítica, seja de Foucault ou do próprio Agamben, todos somos, enquanto cidadãos, virtualmente, ou potencialmente como homines sacri, ou seja, porque o bando se relaciona diretamente na estrutura do poder soberano.

36 Semanticamente, pode-se perceber a origem da ambiguidade no termo bando, pois se refere ao in bando, a

bandono, que expressam em italiano tanto “à mercê de...” quanto “ a seu talante, livremente...” Ora, pois como na expressão correre a bandono e bandido quer dizer “tanto excluído, quanto aberto a todos, livre.” Cf. Agamben, 2002a, p.117. Percebe-se, então que toda esta problematização se fundamenta num caráter essencialmente ambíguo, paradoxal, cuja característica remonta ao que se entende por paradoxo da soberania.